terça-feira, março 14, 2006

Religiões, guerra e paz

José Manuel Barroso

Jornalista


Duas notícias recentes dão nota da importante questão das religiões no mundo contemporâneo - algo que, afinal, é apenas uma transposição para a actualidade do que se passou ao longo da história da humanidade. A primeira notícia, mais antiga, refere o envolvimento dos serviços secretos da então União Soviética, o KGB, na tentativa de assassínio do Papa João Paulo II. Outra, de há dias, dá conta do apelo do Papa Bento XVI para que África seja uma prioridade para a Igreja Católica europeia. Se a isto juntarmos as questões referentes ao islamismo e ao mundo ocidental e cristão, tão na ordem do dia, constamos quanto a complexa teia feita de religião, sociedade e História se faz e refaz. E de quanto a força das religiões está presente, mesmo num mundo onde uma nova religião - a do laicismo (que não é igual a sociedade laica) e dos seus valores do "politicamente correcto" - tende a impor-se ao cristianismo, nas sociedades democráticas ocidentais.
Nada espanta na questão da falhada tentativa de matar João Paulo II através dos serviços secretos búlgaros, a mando do KGB. Na sua tradicional visão do mundo, baseada na relação de forças e de poder, os comunistas entenderam, como ninguém, quanto a eleição de um Papa polaco - o mais católico dos países do bloco comunista - representava um perigo real para o futuro do império soviético. A antena polaca do KGB descreveu, então, a Moscovo os perigos dessa eleição. E, depois da queda do Muro de Berlim, o Presidente soviético Gorbachev confirmou-o, ao afirmar que "tudo o que aconteceu nos países do Leste europeu, nestes últimos anos [anos 80], teria sido impossível sem a eleição deste Papa". O desaparecimento do homem que, mais do que qualquer outro, contribuiu para a queda do totalitarismo comunista era necessário, para os assassinos, porque ele era um líder religioso e porque essa religião, o catolicismo, era capaz de movimentar consciências e massas. Tal como hoje, massas e consciências são movimentadas pelos líderes radicais do islamismo, na luta contra os valores do Ocidente democrata e cristão.
O apelo de Bento XVI, quanto à importância de África para a Europa e para o Ocidente, inscreve-se nesta grande luta de religiões e de civilizações e não é novo, como raciocínio lógico e político. Lenine defendia que o cerco à Europa passava por África. O último grande czar comunista, Brejnev, entendeu-o bem, avançando para o domínio do Continente Negro nos anos 60 e 70. Quando perdeu a Guerra Fria para o Ocidente, a União Soviética perdeu também os territórios onde exercia já profunda influência - e, entre eles, os do ex-império português. Só isso, de resto, permitiu o rápido processo de reconciliação e de democratização na África do Sul.
Mas a grande verdade - independentemente da colonização e da missionação - é que a África próxima dos valores do Ocidente é a que resulta dos avanços do cristianismo (e, mais ainda, do catolicismo, que tem, sobre as restantes religiões de raiz cristã, a vantagem de se inscrever numa Igreja hierarquizada, força centrípeta e não centrífuga, em termos nacionais).
Ora a mensagem de Bento XVI tem tudo a ver com essa relação Ocidente-África e com a actual luta de civilizações, entre os valores do cristianismo e os do islamismo. O avanço do islamismo na África a sul do Sara é enorme. Apoiados por países islâmicos, os missionários da religião de Maomé instalam-se cada vez mais nas regiões urbanas e mais pobres das grandes urbes africanas, procurando novos adeptos e, decerto, novos guerreiros. Um dos exemplos mais recentes - e mais "nosso" - é o do que se vai passando em Angola e, nomeadamente, em Luanda, onde a preocupação, não publicamente confessada, das autoridades cresce, face ao avanço da doutrinação nos musseques da capital.
Independentemente do posicionamento de cada um perante a religião, é incontestável que a raiz dos valores essenciais das nossas sociedades tem a ver com o cristianismo. A luta da Europa pelos seus valores - o que não significa guerra de civilizações, mas não impede choque de civilizações - é vital para a manutenção desses valores. Incluindo os da sociedade laica, só presentes nas sociedades de raiz cristã. A arquitectura cultural, social, jurídica e política do nosso mundo baseia-se neste legado.
Missionar África, no sentido moderno do termo, o qual inclui mais do que mera difusão de religiões, é um objectivo tão actual hoje como o foi ontem. Bento XVI tem razão. Sem isso, a Europa será cercada. Não pelo leninismo, mas pelo fundamentalismo islâmico. Bento XVI, como João Paulo II, vê mais longe. Quer queiramos quer não, a religião e a Igreja continuam a ser muito mais importantes do que se pensa.


In Diário de Notícias, 14 de Março de 2006

http://dn.sapo.pt/2006/03/14/opiniao/religioes_guerra_e_paz.html

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