CARTA DO CANADÁ
por Fernanda Leitão
Estando o céu bem disposto com o Canadá, os primeiros dias de Novembro em Toronto vêm soalheiros e macios, honrando assim a tradição do Verão dos Indios, que vem a ser como o portuguesíssimo Verão de S. Martinho. Um sol especialmente brilhante, que acaricia e não queima, perde-se por entre as derradeiras árvores quase despidas do dourado esplendor do Outono, e torna quase irreais os longos tapetes de folhas caídas ao longo dos jardins e parques que voam ao de leve sob a brisa que, delicadamente, avisa que o Inverno vem a caminho.
Nesses dias poucas são as lapelas e botoeiras que não ostentam uma rubra papoila que centenas de voluntários do Salvation Army e de outras instituições cívicas põem ao peito dos que depositam nas suas caixas a contribuição para as associações dos antigos combatentes. Nas horas de ponta, quando as multidões fazem rios caudalosos, as papoilas correm, reflectem-se nas vidraças, dobram esquinas, sobem escadas rolantes, enchem os transportes, tomam conta da cidade, como se esta fora uma seara abundante. Na Primeira Guerra Mundial, um poeta soldado anglo-saxónico, em combate na Flandres, ficou emocionado ao encontrar papoilas nos vastos campos sulcados de trincheiras, entre pedras, em tufos de perdido trigo. Escreveu um poema que para sempre ficou como memória dos milhares de homens que o Canadá e os Estados Unidos perderam em campos de batalha da Europa em guerra.
As papoilas saltaram dos versos para as lapelas e botoeiras dos que fizeram do Norte da América o lar que os seus países não lhes puderam ou souberam dar.
Resulta natural que, de papoila ao peito, desde a Governadora Geral até ao mais humilde cidadão, todos participem, no dia 11 de Novembro às 11 horas, das cerimónias provinciais em memória dos que tombaram nas guerras, desde a primeira até às actuais. E que todos sigam pela televisão as cerimónias em Otava, na colina onde está o parlamento federal. Cerimónias que, contando com a oração pública dos chefes das grandes religiões e com a deposição de coroas de flores nos monumentos dedicados aos combatentes, exibem um cortejo de guardas da Raínha, dos regimentos escoceses e dos batalhões actuais, com as suas bandeiras e fanfarras. A nota emocionante é a do cortejo que se lhe segue, os antigos combatentes, eles mesmos, fardados e com as medalhas, muitos deles em cadeiras de rodas, mas todos de cabeça erguida e a postura humilde de quem serviu bem. Ao longo das ruas, dezenas de milhares de pessoas, aplaudindo. Mares de crianças com bandeiras do Canadá, muitas delas agitando bandeirolas onde se pode ler THANK YOU. Crianças a quem foi ensinado que devemos a nossa liberdade e bem estar àqueles homens e mulheres que arriscaram a vida na luta contra a besta sanguinária e tirana, dizem OBRIGADO. O Canadá não é um país militarista, antes é um país de paz que conta com forças armadas de grande profissionalismo e dedicação, com abundantes provas dadas em missões um pouco por todo o mundo.
Nem eu, que escrevo estas linhas, sou militarista. Mas, porque a História é quem manda, sei bem que Portugal foi fundado por um Príncipe e seus próximos, pelos servidores da Igreja e pelos militares. Não é um país de acaso. É um país com destino marcado. Os militares portugueses foram estimados pelo povo sempre que este se revia neles, e daí vinha a sua força. A sua fraqueza adveio da fatalidade de, no curto espaço de pouco mais de meio século, terem sido pretorianos de um regime ditatorial, de que se tentaram redimir fazendo o golpe militar de 25 de Abril de 1974. Passada a euforia, um bando de militares vendidos a partidos e interesses internacionais, caíram na fraqueza de serem a guarda pretoriana do novo totalitarismo, desta vez, comunista. Toda a Nação sofreu com isso, e ainda sofre. Penso, no entanto, que estes 31 anos de novo regime deram razão aos militares que se rebelaram ou afastaram, servindo de crua lição a todos os militares jovens. É esta ala jovem a força das actuais forças armadas. Do mesmo modo que a juventude remoça e fortalece a Igreja.
Creio ser tempo de se ensinar às crianças o que quer dizer um OBRIGADO que contempla a força subterrânea de um povo sofrido, mal amado, mas em quem a esperança não desfaleceu ainda.
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