Corrupção e justiça
por António Barreto
Tudo isto me faz impressão, mas não seria mais do que o resultado da pobreza secular, da miséria cultural e moral, da arrogante tradição dos banqueiros e empresários de regime e da pequenez de políticos videirinhos... Mas é bem pior. É o resultado das deficiências da Justiça. Pior do que
a corrupção é a falta de justiça pronta e eficiente
Um presidente de Câmara que recebe luvas e comissões em "dinheiro vivo" para não deixar traços? Um ministro que sai de um empresa para ir para o governo, que concede benefícios a essa mesma empresa no exercício das suas funções e que regressa, depois de terminado o seu governo, à dita empresa? Uns acessos ao estádio e umas instalações desportivas construídas e pagas a preço forte, com dinheiros da câmara e do Estado, em troca de umas comissões para os autarcas e para o partido, com a certeza prévia de que a empresa construtora seria a vencedora de um concurso público e isento? Uma autorização para derrogação do plano director municipal? Uma câmara que cede terrenos públicos, a preços ridículos, para os negócios imobiliários de um clube de futebol? Uma licença para construir casa privada em parque de reserva ecológica absoluta? Um alvará para modificar um monumento classificado, a benefício de um comércio privado e de uma casa de habitação de um antigo ministro? Olhos fechados para as dívidas ao fisco e à segurança social por parte de poderosos grupos de futebol? Perdão e benefício fiscal excepcional concedidos a um banco particularmente complacente e amistoso nas suas relações com todos os governos? Um empresário que, para levar a cabo projectos de construção, obtém benefícios fiscais, empréstimos bonificados e autorizações governamentais através das suas relações com um partido e aproveitando as suas próprias actividades financeiras dentro desse partido? Um presidente de câmara, um ministro e um secretário de Estado que mentem descaradamente nas suas declarações de interesses, das quais ocultaram fortunas fugidas ao fisco e propriedades postas em nome de familiares? Um autarca que recebe regularmente comissões por obras que deixa fazer nos limites do seu município? Um ministro que circula impunemente entre uma administração de empresa, uma posição de redactor de pareceres para grupos privados, uma avença a uma instituição pública, um lugar de favor num grupo privado, uma tença numa empresa pública, a Assembleia da República e o governo, sendo que ainda lhe sobra tempo para dar uma mãozinha à sua autarquia de origem e a umas comissões criadas pelo governo? Um especialista em gestão e um génio da administração de interesses que já foi representante do Estado num grande grupo, instrumento da respectiva privatização, administrador delegado dos privados que venceram o "concurso", membro do governo responsável por uma pasta directamente interessada no sector da dita empresa e autor da privatização, deputado em tempos de defeso e membro de instituições consultivas nacionais, ora representando os interesses do Estado, ora dando voz aos interesses privados? Um grande financiador de um dos maiores clubes de futebol do país que se gaba de nunca ter declarado ao fisco mais do que o salário mínimo nacional? Um ministro que encomenda serviços a um banco e a uma empresa de peritos, ligada ao mesmo banco, a fim de executar avultadas compras do governo, sendo que os intermediários, os empresários e os especialistas são figuras gradas do partido do ministro? Membros do governo que, já depois de derrotados nas eleições ou três dias antes da sua realização, assinam despachos pelos quais se tomam decisões relevantes implicando muitos milhares de contos, talvez mesmo milhões? Ministro que, dias antes de deixar de o ser, ainda consegue adjudicar empreitadas e declarar vencedor de concursos empresas de conveniência que, por acaso, pertencem a colegas ou antigos colegas de governo? Uma Câmara que faz negócios estranhos de permuta de terrenos, absolutamente à margem da lei? Ministros que, no interesse dos seus amigos, alteram as datas de documentos oficiais? Governos de gestão que, a arrepio da lei e da honestidade, nomeiam altos funcionários e gestores para empresas, vendem património do Estado a preços de favor, concedem autorizações especiais para estabelecimentos empresariais e atribuem licenças para construção de unidades produtivas em sectores submetidos a condicionamento? Um governo demissionário que aproveita o período de transição para adjudicar a construção e o desenvolvimento de uma importante e dispendiosa rede de comunicações a uma empresa que mantém relações com um membro do mesmo governo?
Ministros, deputados e autarcas que se consideram acima da lei e são, na verdade, impunes? Empresários, banqueiros, proprietários, aristocratas, burgueses, empreiteiros e patos-bravos que se comportam com a convicção de que tudo lhes é devido e de que o nome, por vezes, o dinheiro, sempre, lhes conferem direitos de extraterritorialidade perante a lei?
Tudo isto me faz a mesma impressão do que a milhares de cidadãos. Mas tudo isto não seria mais do que o resultado da pobreza secular, da miséria cultural e moral, da voracidade de quem quer enriquecer depressa, da arrogante tradição dos banqueiros e empresários de regime e da pequenez de políticos videirinhos... Não seria mais do que isso... Mas é bem pior. É o resultado das deficiências da Justiça. É a consequência da falta de justiça. Pior do que a corrupção. Pior do que a voracidade. Pior do que a impunidade das "classes altas" e dos políticos. Pior do que tudo, é a falta de justiça pronta e eficiente.
A opinião pública já percebeu. Em estudo recente orientado por António M. Hespanha ("Inquérito aos sentimentos de justiça num ambiente urbano", Almedina, Janeiro de 2005), os lisboetas são claros. Apesar de afirmarem, em maioria e em abstracto, que "confiam na Justiça", mostram as suas convicções relativamente a aspectos concretos da mesma. 67 por cento, contra 14, entendem que a justiça não funciona bem. 53 por cento, contra 18, afirmam que as instituições judiciárias não são independentes dos interesses políticos, económicos e financeiros. 70 por cento, contra 10, admitem que é difícil a uma pessoa comum entender a linguagem utilizada nos tribunais. 75 por cento, contra 11, crê que a justiça é ineficaz na punição dos infractores. E 80 por cento, contra 7, acha que a Justiça é ineficaz na compensação das vítimas. Números que dão para pensar... Uma vez mais, se houvesse Justiça, a corrupção não seria um mal maior.
No meio desta ansiedade, uma notícia ajuda a dormir em paz. Uma só certeza: a de que os jacarandás voltaram! Esta semana, apesar da seca e mau grado o clima errático, que provocaram um estado vegetativo desequilibrado, os jacarandás floriram. Nas Trinas e nas Praças, na D. Carlos I e no Salitre, na Burra e em Belém, apareceram, tímidos e frágeis. Já não era sem tempo. Lisboa precisa de cor. Isto precisa de esperança.
fonte: Público
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