Crise de identidade da Europa e as bases ideológicas da Constituição Europeia
Na véspera da morte de João Paulo II, no Mosteiro beneditino de Subiaco (Itália), berço do monaquismo ocidental, o Cardeal J. Ratzinger deu uma conferência sobre a actual crise de identidade e de cultura que a Europa está a viver. Com uma extraordinária competência, o actual Santo Padre demonstra como a confusa ideologia da liberdade, vinda do iluminismo radical, que está também na base da Constituição Europeia, conduz a um dogmatismo cada vez mais hostil para com a própria liberdade e não só…
Apresentamos a tradução do texto integral da Conferência, que até agora não se encontrava traduzida nem em português nem em espanhol.
(www.pensaBEM.NET)
Por Card. Joseph Ratzinger
REFLEXÕES SOBRE CULTURAS QUE HOJE SE CONTRAPÕEM
Vivemos num período de grandes perigos e de grandes oportunidades para o homem e para o mundo, um período que é também de grande responsabilidade para todos nós.
Durante o século passado, as possibilidades do homem e o seu domínio sobre a matéria cresceram de um modo verdadeiramente impensável. Mas o poder do homem de dispor do mundo fez também com que o seu poder de destruição chegasse a dimensões que, por vezes, nos horrorizam.
A este propósito, vem espontaneamente à mente a ameaça do terrorismo, esta nova guerra sem fronteiras e sem frentes. O temor de que este possa, em breve, tomar posse de armas nucleares e biológicas, não é infundado e fez com que os Estados de direito tivessem de recorrer, no seu interior, a sistemas de segurança parecidos aos que antes existiam apenas nas ditaduras; contudo, permanece a sensação de que, na realidade, todas estas precauções não bastam, não sendo possível, nem sequer desejável um controlo global.
Menos visíveis, mas nem por isso menos inquietadoras, são as possibilidades de auto-manipulação adquiridas pelo homem.
Ele sondou os recônditos mais íntimos do ser, decifrou as componentes do ser humano e é agora capaz, por assim dizer, de “construir” por si próprio o homem, o qual, deste modo, já não vem ao mundo como dom do Criador, mas como produto do nosso agir, produto que pode portanto ser até seleccionado segundo as exigências por nós fixadas. Assim, sobre este homem, já não brilha o esplendor do seu ser “imagem de Deus” – que é aquilo que lhe confere a sua dignidade e a sua inviolabilidade – mas apenas o poder das capacidades humanas. Ele já não é mais nada senão “imagem do homem” – mas de que homem?
A tudo isto, juntam-se os grandes problemas planetários: a desigualdade na repartição dos bens da terra; a pobreza crescente, ou melhor, o empobrecimento; a exploração da terra e dos seus recursos; a fome; as doenças que ameaçam o mundo inteiro; o choque das culturas.
Tudo isto mostra que o crescimento das nossas possibilidades não é acompanhado por um igual desenvolvimento da nossa energia moral. A força moral não cresceu conjuntamente com o desenvolvimento da ciência, mas, pelo contrário, diminuiu, porque a mentalidade técnica relega a moral para o âmbito subjectivo, enquanto que o que nós precisamos é de uma moral pública, duma moral que saiba responder às ameaças que pesam sobre a existência de todos nós.
O verdadeiro e mais grave perigo neste momento encerra-se precisamente neste desequilíbrio entre possibilidades técnicas e energia moral. Em última análise, a segurança de que precisamos como pressuposto da nossa liberdade e da nossa dignidade, não pode provir de sistemas técnicos de controlo, mas apenas da força moral do homem: onde ela falta ou não é suficiente, o poder do homem transforma-se cada vez mais num poder de destruição.
É verdade que existe hoje um novo moralismo, cujas palavras-chave são justiça, paz, conservação do criado – palavras que chamam a atenção para os valores morais essenciais de que precisamos. Mas este moralismo permanece vago e assim “escorrega”, quase inevitavelmente, na esfera político-partítica. Ele é acima de tudo uma pretensão para com os outros, e demasiado pouco um dever pessoal da nossa vida quotidiana.
De facto, o que significa justiça? Quem é que a define? Para que serve a paz?
Nos últimos decénios, vimos amplamente nas nossas ruas e praças como o pacifismo pode derivar num anarquismo destrutivo e até no terrorismo.
O moralismo político dos anos 70, cujas raízes não morreram de modo algum, foi um moralismo que conseguiu fascinar também jovens cheios de ideais. Mas era um moralismo com uma orientação errada, pois estava privado de serena racionalidade e punha, no fim de contas, a utopia política acima da dignidade do indivíduo, mostrando até poder chegar, em nome de grandes objectivos, a desprezar o homem.
O moralismo político, tal como o vivemos no passado e continuamos a viver, não só não abre o caminho para uma verdadeira regeneração, como até o bloqueia.
O mesmo se deve dizer também, por consequência, em relação a um cristianismo e a uma teologia que reduzem o núcleo da mensagem de Jesus – o “Reino de Deus” – aos “valores do Reino”, identificando estes valores com as grandes palavras de ordem do moralismo político e proclamando-as, ao mesmo tempo, como a síntese das religiões. Contudo, deste modo, esquecem-se de Deus, apesar de Ele mesmo ser o sujeito e a causa do Reino de Deus; em Seu lugar, permanecem as grandes palavras (e valores) que se prestam a qualquer tipo de abuso.
Esta breve panorâmica sobre a situação do mundo leva-nos a reflectir sobre a actual situação do cristianismo e, por isso, também sobre as bases da Europa, daquela Europa que foi outrora – podemos dizê-lo – o continente cristão, mas que foi também o ponto de partida da nova racionalidade científica que nos deu grandes possibilidades, mas que trouxe para nós também grandes ameaças.
É claro que o cristianismo não nasceu na Europa e, por isso, não pode ser sequer classificado como uma religião europeia, como a religião do âmbito cultural europeu. Mas foi precisamente na Europa que ele recebeu a sua marca cultural e intelectual, historicamente mais eficaz, permanecendo portanto ligado de modo especial à Europa.
Por outro lado, também é verdade que esta Europa, desde os tempos do Renascimento – e de forma plena desde os tempos do iluminismo – desenvolveu aquela racionalidade científica que, não só na época dos Descobrimentos levou à unidade geográfica do mundo, ao encontro dos continentes e das culturas, mas que também agora, muito mais profundamente – graças à cultura técnica possibilitada pela ciência – impregna verdadeiramente todo o mundo com a sua marca, ou melhor, num certo sentido uniformiza-o.
Seguindo esta forma de racionalidade, a Europa desenvolveu uma cultura que, dum modo nunca antes conhecido pela humanidade, exclui Deus da consciência pública, quer negando-O totalmente, quer afirmando que a Sua existência não é demonstrável, é incerta, e pertence portanto ao âmbito das escolhas subjectivas, permanecendo de qualquer modo como algo irrelevante para a vida pública. Esta racionalidade puramente funcional, por assim dizer, provocou uma reviravolta da consciência moral, igualmente nova para as culturas até então existentes, uma vez que defende que só é racional aquilo que se pode provar pela experimentação.
Ora, como a moral pertence a uma esfera totalmente diferente, acaba por desaparecer como categoria em si e tem de ser reencontrada de outro modo, dado que se deve admitir que ela, apesar de tudo, é necessária.
Num mundo baseado no cálculo, é o cálculo das consequências que determina o que deve ser considerado moral ou não. E deste modo, a categoria de “bem”, tal como foi evidenciada claramente por Kant, desaparece. Nada em si mesmo é bem ou mal, tudo depende das consequências previsíveis de uma acção.
Se, por um lado, o cristianismo encontrou a sua forma mais eficaz na Europa, por outro, é necessário dizer que foi na Europa que se desenvolveu uma cultura que constitui a contradição absolutamente mais radical não só do cristianismo, mas também das tradições religiosas e morais da humanidade. Daqui se compreende como a Europa está a experimentar uma verdadeira “prova de tracção”; daqui se compreende também a radicalidade das tensões a que o nosso continente deve fazer frente. Mas aqui emerge, sobretudo, a responsabilidade que nós europeus temos de assumir neste momento histórico: no debate sobre a definição da Europa, sobre a sua nova forma política, não está em jogo qualquer batalha nostálgica “de retaguarda” da história, mas sim uma grande responsabilidade pela humanidade de hoje.
Observemos agora mais cuidadosamente esta contraposição entre as duas culturas que caracterizaram a Europa.
No debate sobre o Preâmbulo da Constituição Europeia, esta contraposição tornou-se evidente em dois pontos controversos: a questão da referência a Deus na Constituição e a da menção das raízes cristãs da Europa. Visto que no artigo 52 da Constituição são garantidos os direitos institucionais das Igrejas, dizem que podemos ficar tranquilos. Mas isto significa que as Igrejas, na vida da Europa, têm lugar no âmbito do compromisso político, enquanto que no âmbito das bases da Europa a marca do seu conteúdo não tem qualquer espaço.
As razões que se dão no debate político para este claro “não”, são superficiais, e é evidente que, mais do que indicar a sua verdadeira motivação, encobrem-na. A afirmação de que a referência às raízes cristãs da Europa feriria os sentimentos dos muitos não-cristãos que vivem na Europa, é pouco convincente, dado que se trata, antes de mais, de um facto histórico que ninguém pode negar com seriedade. Naturalmente, este aceno histórico contém também uma referência ao presente, uma vez que, com a menção das raízes, se indicam ao mesmo tempo as fontes residuais da orientação moral, isto é, um factor de identidade desta formação que é a Europa. Quem é que ficaria ofendido? De quem se ameaçaria a identidade? Frequente e voluntariamente são trazidos à baila, a este respeito, os muçulmanos, mas de facto eles não se sentem ameaçados pelas nossas bases morais cristãs, mas sim pelo cinismo de uma cultura secularizada que nega as suas próprias bases. E até os nossos concidadãos judeus não podem ficar ofendidos por causa da referência às raízes cristãs da Europa, pois estas remontam ao monte Sinai: trazem em si a marca da Voz que se fez ouvir no monte de Deus, e nos unem nas grandes orientações fundamentais que o Decálogo doou à humanidade. O mesmo se diga em relação à referência a Deus: não é a menção de Deus que ofende os que pertencem às outras religiões, mas sim a tentativa de construir a comunidade humana absolutamente sem Deus.
As motivações para este duplo “não”, são mais profundas do que aquilo que as motivações avançadas fazem pensar. Pressupõem a ideia que somente a cultura iluminista radical, que chegou ao seu pleno desenvolvimento no nosso tempo, poderia ser constitutiva da identidade europeia. Ao seu lado, podem coexistir diferentes culturas religiosas com os seus respectivos direitos, desde que e na medida em que respeitem os critérios da cultura iluminista e se subordinem a ela.
Esta cultura iluminista é essencialmente definida pelos direitos de liberdade e tem como ponto de partida a liberdade, como um valor fundamental que mede tudo: a liberdade da escolha religiosa, que inclui a neutralidade religiosa do Estado; a liberdade de exprimir a própria opinião, desde que não ponha em causa este mesmo cânon; o sistema democrático do Estado, isto é o controlo parlamentar sobre os organismos estatais; a livre formação de partidos; a independência da Magistratura; e, por fim, a tutela dos direitos do homem e a proibição de discriminações. Neste último ponto, o cânon está ainda em formação, visto que existem também direitos do homem contrastantes, como por exemplo, o caso do contraste entre o desejo de liberdade da mulher e o direito à vida do nascituro. O conceito de discriminação é cada vez mais alargado, e assim a proibição de discriminar pode-se transformar cada vez mais numa limitação da liberdade de opinião e da liberdade religiosa.
Em breve, já não se poderá afirmar que a homossexualidade constitui uma desordem objectiva na estruturação da existência humana, tal como ensina a Igreja Católica. E o facto da Igreja estar convencida de que não tem o direito de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres, é considerado, desde já, por alguns como algo inconciliável com o espírito da Constituição Europeia.
É evidente que este cânon da cultura iluminista, bem longe de ser definitivo, contém valores importantes aos quais nós, precisamente pelo facto de sermos cristãos, não queremos e não podemos renunciar; mas é também evidente que a mal definida - ou de todo não definida - concepção de liberdade que está na base desta cultura, comporta inevitavelmente contradições; e é evidente que, precisamente por causa do seu uso (um uso que parece ser radical), implica limitações da liberdade que há uma geração atrás, não conseguíamos nem sequer imaginar.
Uma confusa ideologia da liberdade conduz a um dogmatismo que se está a revelar cada vez mais hostil para com a própria liberdade.
Teremos, sem dúvida, de voltar a abordar novamente a questão das contradições internas da forma actual da cultura iluminista. Mas, primeiro, temos de acabar de a descrever.
Faz parte da sua natureza, enquanto cultura de uma razão que tem finalmente plena consciência de si mesma, pretender um reconhecimento universal e um conceber-se a si própria como completa em si mesma, não necessitada de ser completada por outros factores culturais.
Ambas estas características tornam-se claramente evidentes quando se põe a questão sobre quem poderá tornar-se ou não membro da Comunidade Europeia, sobretudo no debate acerca da entrada da Turquia nesta Comunidade. Trata-se de um Estado, ou melhor, de um âmbito cultural, que não tem raízes cristãs, mas que foi influenciado pela cultura islâmica. Ataturk tentou depois transformar a Turquia num Estado laicista, procurando implantar num terreno muçulmano o laicismo que tinha amadurecido no mundo cristão da Europa.
Podemos perguntar-nos se isto é possível: segundo a tese da cultura iluminista e laicista da Europa, só as normas e os conteúdos desta mesma cultura iluminista poderão determinar a identidade da Europa e, consequentemente, cada Estado que faz próprios estes critérios poderá pertencer à Europa. No fim de contas, não importa sobre que entrelaçado de raízes é implantada esta cultura da liberdade e da democracia. Afirma-se que é justamente por isso que as raízes não podem entrar na definição dos fundamentos da Europa, uma vez que se trata de raízes mortas que não fazem parte da identidade actual. Por conseguinte, esta nova identidade, determinada exclusivamente pela cultura iluminista, implica também que Deus não tem nada a ver com a vida pública, nem com as bases do Estado.
Assim, tudo se torna lógico, e até de certa forma, plausível. De facto, o que é que podemos desejar de mais belo, a não ser que sejam respeitados em toda a parte a democracia e os direitos humanos?
Mas impõe-se aqui, de qualquer modo, a questão se esta cultura iluminista laicista é verdadeiramente a cultura de uma razão comum a todos os homens, descoberta como finalmente universal. Uma cultura que deveria ter acesso em toda a parte, mesmo que num húmus histórica e culturalmente diferenciado. E perguntamo-nos também se esta cultura está verdadeiramente completa em si mesma, de modo que não tenha necessidade de nenhuma raiz, a não ser dela mesma.
SIGNIFICADO E LIMITES DA CULTURA RACIONALISTA ACTUAL
Temos agora de abordar estas duas últimas questões.
Em relação à primeira – isto é, à questão se de facto se chegou à filosofia universalmente válida e enfim totalmente científica, na qual se exprimiria a razão comum a todos os homens – é necessário responder que se chegou, indubitavelmente, a aquisições importantes que podem pretender ter uma validade geral: a aquisição de que a religião não pode ser imposta pelo Estado, mas que só pode ser acolhida na liberdade; o respeito dos direitos fundamentais do homem iguais para todos; a separação dos poderes e o controlo do poder. De qualquer modo, não se pode pensar que estes valores fundamentais, reconhecidos por nós como geralmente válidos, podem ser realizados do mesmo modo em todos os contextos históricos. Os pressupostos sociológicos para uma democracia baseada em partidos, como é o caso do Ocidente, não existem em todas as sociedades. Assim, a total neutralidade religiosa do Estado, na maior parte dos contextos históricos, deve ser considerada como uma ilusão. E com isto chegamos aos problemas levantados pela segunda questão. Mas esclareçamos primeiro o problema se as modernas filosofias iluministas, consideradas no seu complexo, se podem considerar como a última palavra da razão comum a todos os homens. Estas filosofias caracterizam-se pelo facto de serem positivistas e, por isso, anti-metafísicas, de tal modo que, no fim, Deus não pode ter nelas qualquer lugar. Elas estão baseadas numa auto-limitação da razão positiva, que é adequada para o âmbito técnico, mas que, quando é generalizada, leva pelo contrário a uma mutilação do homem. Consequentemente, o homem já não admite qualquer instância moral para além dos seus cálculos e, tal como vimos, até o próprio conceito de liberdade, que à primeira vista parecia estender-se de modo ilimitado, leva no fim à auto-destruição da liberdade.
É verdade que as filosofias positivistas contêm importantes elementos de verdade. Estes, porém, baseiam-se numa auto-limitação da razão, típica de uma determinada situação cultural – a do Ocidente moderno – não podendo por isso ser, certamente, a última palavra da razão. Apesar de parecerem totalmente racionais, estas filosofias não são a voz da própria razão, mas estão também elas vinculadas culturalmente, ou seja, vinculadas à situação do Ocidente de hoje. Por isso, não são de modo algum aquela filosofia que deveria ser um dia válida em todo o mundo. Mas é necessário dizer, sobretudo, que esta filosofia iluminista e a sua respectiva cultura são incompletas. Esta corta conscientemente as suas próprias raízes históricas, privando-se das forças originárias das quais ela mesma brotou, daquela memória, por assim dizer, fundamental da humanidade, sem a qual a razão perde a orientação.
Com efeito, hoje em dia é válido o princípio segundo o qual a capacidade do homem é a medida do seu agir: tudo aquilo que o homem é capaz de fazer, pode fazê-lo.
Já não existe um “saber fazer” separado do “poder fazer”, porque isso seria contra a liberdade, que é o valor supremo em absoluto. Mas o homem sabe fazer tanto e sabe fazer cada vez mais; e se este “saber fazer” não encontra a sua medida numa norma moral, torna-se, como já podemos ver, um poder de destruição.
O homem sabe clonar homens, e por isso o faz. O homem sabe usar homens como “armazém” de órgãos para outros homens, e por isso o faz; fá-lo porque esta parece ser uma exigência da sua liberdade. O homem sabe construir bombas atómicas, e por isso as faz, estando, em princípio, até disposto a usá-las. Também o terrorismo, no fim de contas, baseia-se sobre esta modalidade de “auto-autorização” do homem, e não sobre os ensinamentos do Corão.
A separação radical da filosofia iluminista das suas raízes torna-se, em última análise, um não ter necessidade do homem. O homem, no fundo, não tem qualquer liberdade – dizem-nos os “porta-vozes” das ciências naturais, em total contradição com o ponto de partida de toda a questão. Ele não deve pensar que é mais do que todos os outros seres vivos e por isso deve ser tratado também como eles – dizem os “porta-vozes” mais avançados de uma filosofia totalmente separada das raízes da memória histórica da humanidade.
Tínhamos colocado duas questões: se a filosofia racionalista (positivista) é estritamente racional e, em consequência, universalmente válida, e se está completa.
Basta-se a si mesma? Pode, ou até, deve relegar as suas raízes históricas para o âmbito do puro passado e, portanto, para o âmbito daquilo que só pode ser válido subjectivamente?
Temos de responder a ambas as questões com um claro “não”.
Esta filosofia não exprime a razão do homem na sua totalidade, mas apenas uma parte dela, e devido a esta mutilação da razão, esta filosofia não pode ser considerada de modo algum como racional. Por isso é também incompleta, e só se pode curar restabelecendo novamente o contacto com as suas raízes. Uma árvore sem raízes, seca...
Ao afirmar isto, não se nega tudo aquilo que esta filosofia tem de positivo e importante, mas afirma-se antes a sua necessidade de ser completada, a sua profunda incompletude. E assim, voltamos aos dois pontos controversos do Preâmbulo da Constituição Europeia, de que falávamos antes.
O pôr de parte as raízes cristãs não é expressão duma tolerância superior, que respeita todas as culturas do mesmo modo sem querer privilegiar nenhuma delas, mas é antes a absolutização de um pensar e viver que se contrapõem radicalmente – entre outras coisas – às outras culturas históricas da humanidade. A verdadeira contraposição que caracteriza o mundo de hoje não é entre as diversas culturas religiosas, mas sim entre a radical emancipação do homem em relação a Deus e em relação às raízes da vida por um lado e as grandes culturas religiosas por outro. Se se chegar a um choque entre as culturas, não será pelo choque entre as grandes religiões – desde sempre em luta umas com as outras, mas que sempre souberam, no fim de contas, viver umas com as outras – mas será antes pelo choque entre esta radical emancipação do homem e as grandes culturas históricas.
Assim, a rejeição da referência a Deus, não é expressão de uma tolerância que pretende proteger as religiões não teístas e a dignidade dos ateus e dos agnósticos, mas expressão de uma consciência que quer ver Deus definitivamente eliminado da vida pública da humanidade e relegado para o âmbito subjectivo de culturas residuais do passado.
O relativismo, que constitui o ponto de partida de tudo isto, torna-se assim um dogmatismo que se crê na posse do conhecimento definitivo da razão e no direito de considerar tudo o resto apenas como um estádio da humanidade, no fundo já superado, e que pode ser adequadamente relativizado.
Na realidade, isto significa que temos necessidade de raízes para sobreviver e que não devemos perder Deus de vista, se quisermos que a dignidade humana não desapareça.
O SIGNIFICADO PERMANENTE DA FÉ CRISTÃ
Será que com isto pretendemos rejeitar simplesmente o iluminismo e a modernidade?
Não, absolutamente. O cristianismo, desde o início, compreendeu-se a si mesmo como a religião do logos, como a religião conforme à razão. Não identificou os seus precursores em primeiro lugar nas outras religiões, mas naquele “iluminismo filosófico” [ndr: o termo ‘iluminismo’ refere-se, neste caso, às filosofias que precederam o cristianismo] que tinha libertado o caminho das tradições, para se dirigir depois à procura da verdade e do bem, do único Deus que está acima de todos os deuses.
O cristianismo, como religião dos perseguidos, como religião universal, acima dos vários Estados e povos, negou ao Estado o direito de considerar a religião como uma parte do sistema estatal, postulando assim a liberdade da fé. Sempre definiu os homens, todos os homens sem distinção, como criaturas de Deus e imagem de Deus, proclamando como princípio a sua igual dignidade, embora nos limites imprescindíveis dos sistemas sociais.
Neste sentido, o iluminismo é de origem cristã e nasceu, não por acaso exacta e exclusivamente no âmbito da fé cristã. Nasceu lá onde o cristianismo se tornou infelizmente, contra a sua própria natureza, uma tradição e religião de Estado. Apesar da filosofia, entendida como procura de racionalidade – também da nossa fé –, ter sido sempre apanágio do cristianismo, a voz da razão tinha sido demasiado domesticada. Foi e é mérito do iluminismo ter proposto novamente estes valores originários do cristianismo e ter dado novamente à razão a sua voz própria. O Concílio Vaticano II, na Constituição sobre a Igreja no mundo contemporâneo, evidenciou novamente esta profunda correspondência entre cristianismo e iluminismo, procurando chegar a uma verdadeira conciliação entre Igreja e modernidade, que é o grande património que deve ser tutelado por ambas as partes.
Assim, é preciso que ambas as partes reflictam sobre si próprias e estejam prontas a corrigir-se.
O cristianismo deve lembrar-se sempre que é a religião do logos. O cristianismo é fé no Creator spiritus, no Espírito criador, do qual provém todo o real. É justamente esta fé que deveria ser hoje a sua força filosófica, pois o problema é se o mundo provém do irracional – e portanto, se a razão não é outra coisa senão um “subproduto”, talvez prejudicial, do seu desenvolvimento - ou se o mundo provém da razão – e se por conseguinte esta é o seu critério e a sua meta.
A fé cristã tende para esta segunda tese, tendo assim do ponto de vista puramente filosófico, muito boas cartas para jogar, embora seja a primeira tese a que hoje é considerada por muitos como a única “racional” e moderna. Mas uma razão que brota do irracional e que, no fim de contas, é ela própria irracional, não constitui uma solução para os nossos problemas. Somente a razão criadora, e que se manifestou como amor no Deus crucificado, pode verdadeiramente mostrar-nos o caminho.
No diálogo tão necessário entre laicos e católicos, nós cristãos devemos estar muito atentos a permanecer fiéis a esta linha de fundo: ou seja, a viver uma fé que provém do logos, da razão criadora e que está por isso também aberta a tudo aquilo que é verdadeiramente racional.
Mas aqui queria, na qualidade de crente, fazer uma proposta aos laicos.
Na época do iluminismo, procurou-se entender e definir as normas morais essenciais, dizendo que elas seriam válidas “etsi Deus non daretur”, mesmo que Deus não existisse. Na contraposição entre as várias confissões e também na incumbente crise da imagem de Deus, tentou-se manter fora das contradições os valores essenciais da moral e encontrar para estes uma evidência que os tornasse independentes das múltiplas divisões e incertezas das várias filosofias e confissões. Foi assim que se procurou assegurar as bases da convivência e, em geral, da humanidade. Naquela época, isto pareceu possível, uma vez que as grandes convicções de fundo criadas pelo cristianismo resistiam em grande parte e pareciam inegáveis. Mas já não é assim. A procura de uma tal certeza tranquilizadora que pudesse permanecer incontestável, para além de todas as diferenças, fracassou.
Nem sequer o esforço verdadeiramente grandioso de Kant foi capaz de criar a necessária certeza partilhada. Kant tinha negado que Deus podia ser conhecido no âmbito da razão pura, mas ao mesmo tempo, tinha representado Deus, a liberdade e a imortalidade como postulados da razão prática, sem a qual, coerentemente, para ele não era possível qualquer agir moral.
A situação hodierna do mundo não nos faz, talvez, pensar novamente que ele pode ter razão?
Por outras palavras: a tentativa, levada ao extremo, de plasmar as coisas humanas sem qualquer necessidade de Deus, conduz-nos cada vez mais à beira do abismo, a pôr totalmente de parte o homem.
Devemos então inverter o axioma dos iluministas e dizer: mesmo quem não consegue encontrar o caminho para aceitar Deus, deve de qualquer maneira, viver e orientar a sua vida “veluti si Deus daretur”, como se Deus existisse. Este é o conselho que já Pascal dava aos amigos não-crentes; e é o conselho que queremos dar, também hoje, aos nossos amigos que não crêem.
Assim, ninguém fica limitado na sua liberdade, mas todas as nossas coisas encontram um apoio e um critério do qual precisam urgentemente.
Aquilo de que mais precisamos neste momento da história é de homens que, através de uma fé iluminada e vivida, tornem Deus credível neste mundo.
O testemunho negativo de cristãos que falavam de Deus mas que viviam contra Ele, obscureceu a imagem de Deus e abriu a porta à incredulidade.
Precisamos de homens que mantenham o olhar fixo em Deus, aprendendo a partir dali a verdadeira humanidade. Precisamos de homens cujo intelecto seja iluminado pela luz de Deus e aos quais Deus abra o coração, de maneira que o seu intelecto possa falar ao intelecto dos outros e o seu coração possa abrir o coração dos outros. Somente através de homens tocados por Deus, é que Deus pode voltar para junto dos homens. Precisamos de homens como Bento de Núrsia, o qual num tempo de dissipação e de decadência, mergulhou na solidão mais extrema, conseguindo, depois de todas as purificações que teve de sofrer, vir novamente à luz, voltar para o meio dos homens e fundar um Mosteiro em Monte Cassino, a cidade sobre o monte que, com tantas ruínas, juntou as forças das quais brotou um mundo novo. Assim Bento, tal como Abraão, tornou-se o pai de muitos povos. As recomendações aos seus monges, no final da sua Regra, são indicações que nos mostram também a nós o caminho que conduz para o alto, para fora das crises e das ruínas. “Assim como há um zelo mau de amargura, que afasta de Deus e leva ao inferno, assim também há um zelo bom que aparta dos vícios e conduz a Deus e à vida eterna. É este zelo que, com ardentíssimo amor, os monges devem exercitar, quer dizer: antecipem-se uns aos outros na estima recíproca; suportem com muita paciência as suas enfermidades físicas ou morais ... amem-se mutuamente com pura caridade fraterna… vivam sempre no temor e no amor de Deus... nada absolutamente anteponham a Cristo, o Qual nos conduza todos juntos à vida eterna” (Capítulo 72).
Cardeal Joseph Ratzinger
Subiaco, Mosteiro de Santa Escolástica, 1 de Abril de 2005
[tradução realizada por www.pensaBEM.net]
www.ratzinger.it/modules.php?name=News&file=article&sid=175
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