PERDOAR
Por Teresa Maria Martins de Carvalho
Uma destacada figura do nosso palco político, para justificar as suas posições mais extremas, começou por anunciar “não sou cristão, não esqueço, nem perdoo”. Perguntamo-nos, com espanto, o que fará então? Exigirá justiça? Ou vingança?
Sem o saber (ou talvez não...) indicou (por bravata?) uma das características fundamentais do cristão: perdoar, perdoar sempre, não só sete vezes mas setenta vezes sete, nas palavras de Jesus.
Quem não perdoar está paredes meias com a violência e com a vingança. Substituir o perdão pela justiça, isto é pelo “justo” castigo, é caminho apertado, encostado perigosamente à violência. Não será a prisão uma violência? Violência legal... A pena de morte, essa, então...
O direito é uma das invenções mais extraordinárias do espírito romano, esses tão mal tratados romanos, no que diz respeito às outras suas invenções, aventuras, feitos e descobertas. Imaginar o direito ao direito, na organização e apaziguamento da sociedade dos homens, sempre dispostos a arreganhar os dentes, a concretizar a sua fúria, a matar, até, é um dos feitos históricos mais marcantes da civilização.
Para acompanhar o pensamento lúcido do antropólogo francês René Girard em relação à violência, sempre presente e sempre prestes a eclodir na comunidade humana, teremos de decidir se a violência não estará também presente na justiça? A canalização da violência sobre o bode expiatório, presente nos processos sumários de linchamento, na justiça “por nossas próprias mãos”, tem sido veementemente apelidada de criminosa e automaticamente banida do viver social. Mas está presente, afinal, como diria Girard, com todo o seu poder contagiante, contido pela estrutura frágil das leis.
Ao chamado Estado de direito pede-se-lhe tudo. E até, às vezes, perdoar, como acontece nas diminuições de pessoas, nas amnistias concedidas em comemorações importantes e até na prescrição de longos litígios nos tribunais.
Diante deste aparelho judicial intimidante, parece, de facto, não existir lugar para o perdão cristão. Não é preciso. Tudo se resolve a contento de todos. Já não são necessárias “moralidades”, tão votadas ao desprezo pelos ditadores racionalistas. Será assim?
Aquilo que se passa actualmente em Portugal, com juízes e advogados em plano maior, sujeitos a julgamentos populares, por causa da sua administração da justiça, que aparece ora litigante ora confiante, em maquinações de poder, seja ele político, social ou mesmo o próprio poder judicial, tem gerado um desconforto profundo que faria empalidecer Montesquieu que tão sabiamente preconizou a separação dos poderes para se alcançar paz social....
Será a sociedade racional, à maneira da Luzes, a sociedade última e perfeita? Apesar dos embaraços no caminho, as luzes iluminam o futuro, um futuro laico que ignora a sua herança cristã, como hoje faz a Convenção europeia, ditando uma Constituição muito racionalmente construída, acima das emoções e das recordações das gentes. A filiação cristã, reconhecida e ouvida, daria outra consistência ao planeado, fazendo aparecer, em transparência, o antigo perdão do Evangelho com o seu esquecimento adstrito. Mas não é tida em consideração.
Tanto se fala na “perda de valores” mas ninguém os quantifica e descrimina, com receio de cair no “moralismo” evangélico, fora de moda. Pois lá estão, o perdão e o esquecimento.
Os antigos, com o estabelecimento da lei de Talião, “olho por olho, dente por dente”, tentaram um abrandamento da violência social. A garantia de uma vingança ou de um castigo “justos”, isto é, que não ultrapassassem o peso da ofensa que é justo vingar, foi um grande avanço no regulamento da vivência dos homens uns com os outros. O prazer maléfico que existe em toda a vingança que for pior do que crime, cria uma espiral de violência, sucedendo-se a si própria, sem fim. Esta espiral, encontramo-la nos “acertos de contas” das famílias, mafiosas ou não.
Mas na aplicação das leis, multas ou penas de prisão, não existirá violência? O que é estar preso? Aqui se evoca, de novo, o perdão e o esquecimento recusados a priori pelo nosso exigente político.
Perdoar é também esquecer, como ele reconheceu. Quem esquece? O preso libertado que já pagou “a sua dívida à sociedade” como dizem os bons espíritos, tem dificuldades em nela se reintegrar, o antigo Pide não recebeu a condecoração pelas suas actuais e muito virtuosas acções, o antigo nazi não pode ser presidente da Áustria, Mitterand afinal estava presente em Vichy e logo acabou o mito do tonton Mitterand. Não há esquecimento porque não houve perdão. O ódio, o ressentimento, a desconfiança, a má vontade, o cheiro pegajoso da vingança não desapareceu mesmo com justiça feita. Não há paz.
Um lavrador alentejano, familiar muito próximo, ao receber de volta, pelas mãos dos trabalhadores, a herdade que eles tinham ocupado durante cinco anos, a favor da Reforma Agrária socialista, ao perceber que teria de ouvir confidências maldosas, sobre o que este fez e o que aquele disse, convocou o pessoal e, apesar dos maus tratos que a terra tinha levado, advertiu-o de que, dali em diante não ouviria nada de ninguém, mesmo havendo razões concretas para denúncias. Era preciso recomeçar como se nada tivesse acontecido. E houve paz.
Quando consideramos essa Terra a que chamamos Santa e assistimos à disputa de direitos, entre os dois ofendidos, Sharon e Arafat, cada povo com as suas razões, as suas queixas, a sua ferocidade, as suas naturais vinganças, sentimos que só o perdão e o esquecimento fariam a paz.
Assim, sem esquecer nada, os dois povos, o judeu e o palestino, continuarão a agredir-se mutuamente, carregados de ódio, de frustração, de ressentimento que são como cordas que os amarram e impedem de avançar com as mãos abertas e o espírito lavado.
O perdão cristão e o esquecimento que lhe está associado não são um “truque bonzinho”, feito de moleza e cobardia, mas são urgente e corajosa chamada a uma ultrapassagem espiritual, com efeitos benéficos na sociedade humana, no encontro do homem com o homem, de cara a cara, quando se descobrem e mutuamente se aceitam, em aprendizagem e acolhimento. Como diria Levinas, o indivíduo tem a responsabilidade do seu perseguidor. Por isso, no Evangelho, se pede a seguir ao perdão “amai os vossos inimigos”.
Perdoar é ser livre.
Nos liberi sumus; Rex noster liber est, manus nostrae nos liberverunt... [Nós somos livres; nosso Rei é livre, nossas mãos nos libertaram...]
segunda-feira, julho 28, 2003
segunda-feira, julho 21, 2003
HENRIQUE RUAS
-IN MEMORIAM –
Por Teresa Maria Martins de Cavalho
O primeiro sentimento que nos apanhou de chofre ao saber da morte de Henrique Ruas foi o de terrível orfandade, dor oca da falta sem remédio, de tal modo ele era para nós a referência do pensamento político, o ponto fixo da tradição e da inteligência, o eixo movente da história com os seus acontecimentos, a meditar, a colaborar, a contradizer.
Irmanava-se com todos nós, seus companheiros, participantes do seu amor a Portugal e às coisas portuguesas e do seu pasmo ante o mistério do homem, e à sua atenção à chamada permanente para descobrir, pensando, direcções de acção, à beira da verdade.
Exemplo raro de alguém, trabalhado pela vida, com épocas difíceis, duras até, que foi sempre animado pela Fé, confortado pela cultura e pela roda dos amigos e admiradores.
Ciente do próprio valor, era generoso na dádiva do seu saber e do seu tempo, em gesto incrível de humildade na admiração pelos outros e no optimismo cristão de que estamos neste mundo com as mãos prontas para tarefas e projectos que nos pedem, nos envolvem, nos entusiasmam, enquanto houver forças, até ao fim...
Como disse o Bispo D. Manuel Clemente na Missa de Corpo Presente, devemos dar graças a Deus por Henrique Ruas ter existido, tal a sua qualidade em tantos aspectos. E, acrescentamos nós, por o termos conhecido, este português cristão, por termos apreciado e sentido a força do seu espírito e o calor humano do seu coração, termos ganho a sua bondosa amizade e a riqueza da sua convivência.
“Felizes os que desde agora morrem no Senhor. Sim, diz o Espírito, que descansem dos seus trabalhos porque as suas obras os seguem” (Ap. 14, 13). Esta sentença que se foi buscar ao Livro do Apocalipse, Livro com tão má fama de exóticas catástrofes mas que é, afinal, o livro da esperança. A esperança. É esse o sinal indelével que ele nos deixou, depois do susto e das lágrimas.
“Há pessoas que não deviam morrer”, dizia alguém, acusando essa orfandade tão ressentida que a morte de Henrique Ruas nos causou. Esta pequena homenagem que aqui gravamos em sua memória é assim esperança para continuarmos nos caminhos em que nos acompanhou, caminhos por ele desbravados, continuar porque a sua memória tão forte ser-nos há presença. Pequena homenagem esta, muito pequena. Sempre connosco.
-IN MEMORIAM –
Por Teresa Maria Martins de Cavalho
O primeiro sentimento que nos apanhou de chofre ao saber da morte de Henrique Ruas foi o de terrível orfandade, dor oca da falta sem remédio, de tal modo ele era para nós a referência do pensamento político, o ponto fixo da tradição e da inteligência, o eixo movente da história com os seus acontecimentos, a meditar, a colaborar, a contradizer.
Irmanava-se com todos nós, seus companheiros, participantes do seu amor a Portugal e às coisas portuguesas e do seu pasmo ante o mistério do homem, e à sua atenção à chamada permanente para descobrir, pensando, direcções de acção, à beira da verdade.
Exemplo raro de alguém, trabalhado pela vida, com épocas difíceis, duras até, que foi sempre animado pela Fé, confortado pela cultura e pela roda dos amigos e admiradores.
Ciente do próprio valor, era generoso na dádiva do seu saber e do seu tempo, em gesto incrível de humildade na admiração pelos outros e no optimismo cristão de que estamos neste mundo com as mãos prontas para tarefas e projectos que nos pedem, nos envolvem, nos entusiasmam, enquanto houver forças, até ao fim...
Como disse o Bispo D. Manuel Clemente na Missa de Corpo Presente, devemos dar graças a Deus por Henrique Ruas ter existido, tal a sua qualidade em tantos aspectos. E, acrescentamos nós, por o termos conhecido, este português cristão, por termos apreciado e sentido a força do seu espírito e o calor humano do seu coração, termos ganho a sua bondosa amizade e a riqueza da sua convivência.
“Felizes os que desde agora morrem no Senhor. Sim, diz o Espírito, que descansem dos seus trabalhos porque as suas obras os seguem” (Ap. 14, 13). Esta sentença que se foi buscar ao Livro do Apocalipse, Livro com tão má fama de exóticas catástrofes mas que é, afinal, o livro da esperança. A esperança. É esse o sinal indelével que ele nos deixou, depois do susto e das lágrimas.
“Há pessoas que não deviam morrer”, dizia alguém, acusando essa orfandade tão ressentida que a morte de Henrique Ruas nos causou. Esta pequena homenagem que aqui gravamos em sua memória é assim esperança para continuarmos nos caminhos em que nos acompanhou, caminhos por ele desbravados, continuar porque a sua memória tão forte ser-nos há presença. Pequena homenagem esta, muito pequena. Sempre connosco.
segunda-feira, julho 07, 2003
POR UMA IDENTIDADE NACIONAL ABERTA
Por José Adelino Maltez
Ser Portugal não é apenas conservar Portugal; não é apenas cultivarmos os nossos jardins à beira mar plantados, com as sementes e as ferramentas que os outros nos emprestarem. Isso é aposentar Portugal.
Continuar Portugal terá de ser, forçosamente, reinventar Portugal. Sem as euforias adolescentes do tudo, nem os pessimismos gerontocráticos do nada.
Parafraseando Almada Negreiros, poderemos dizer que, apesar de já estarem escritas todas as frases que hão-se salvar Portugal, continua a faltar uma coisa: salvar mesmo Portugal.
E salvar Portugal será salvá-lo, em primeiro lugar, da própria utopia da salvação, revistam os salvadores a forma de pessoas - por mais carismáticas que seja, - ou apareçam disfarçadas em doutrinas e ideologias - por mais científicas ou revolucionárias que possam parecer.
Uma comunidade política de corpo inteiro, esse algo que vai além do Estado e que procura assumir-se afectiva e culturalmente como uma pátria, um povo ou uma nação, é, sobretudo, uma comunidade de pessoas que partilham significações comuns. Tenta ser mais do que uma simples soma de “eus”, dado procurar atingir a dimensão do “nós”, quando cada um dos membros dessa comunidade consegue identificar-se com o todo, ao comungar símbolos mobilizadores.
Aplicando o princípio enunciado, podemos dizer que, há pouco mais de vinte e cinco anos, os portugueses eram portugueses porque, por exemplo, sentiam de forma idêntica Amália Rodrigues e Eusébio da Silva Ferreira, duas das significações partilhadas geradas pelo ambiente do “Portugal do Minho a Timor” que, mal ou bem, formatou a maioria dos portugueses de hoje. Esse imaginário assentava no tímido esboço de um lusotropicalismo multicultural sonhado por uma minoria de visionários, mas que não conseguiu driblar os ventos da história da guerra colonial e da posterior descolonização pretensamente exemplar.
Outro foi o discurso justificador da pós-revolução, quando, correndo para a integração europeia, nos orgulhámos da “Europa connosco” e de uma unidade nacional assente em bases de homogeneidade etno-histórica, sem os problemas das minorias que afectavam os outros europeus. Até se disse que os portugueses padeciam de uma espécie de “hiper-identidade”, muito especialmente quando nos comparávamos ao Estado Espanhol.
É natural que continuemos a padecer de uma chamada crise de identidade. Porque temos cerca de oito séculos de autonomia temos uma inevitável complexidade quanto aos mecanismos de identidade, dado que esta última sempre foi sendo reinventada ao longo da nossa história.
Talvez seja urgente recordar que, na Idade Média, cerca de um quinto dos portugueses reais seriam mouros e judeus. Saltando alguns séculos, podemos também lembrar que, na região da Grande Lisboa, ainda no século XVIII, existiriam cerca de dez por cento de negros.
Por outras palavras, o mais permanecente dos Estados europeus e a nação mais antiga deste Continente, partiram, afinal, de uma base multicultural e apenas se identificaram unitariamente por terem praticado inquisitorialmente uma espécie de genocídio doce. Mesmo nestes últimos dois séculos, já sem judeus nem mouros, continuámos na mesma senda de construtivismo nacional centralista, quando programámos e aplicámos um modelo de assimilacionismo exacerbado tanto na metrópole como no espaço imperial.
Aliás, importa também assinalar que muito do nacionalismo português do século XX, esse que se baseia no neogarrettismo e no saudosismo, permitindo o patriotismo da I República e do Estado Novo, constitui mera reinvenção de marca estrangeirada, influenciada pelo nacionalismo místico da III República Francesa, onde até nos inspirámos para o neo-imperialismo colonialista.
Feliz ou infelizmente, depois de 1974, não podendo nacionalizar tendências importadas, até porque a nossa descolonização foi atípica e não acompanhou o ritmo europeu, tanto o do modelo francês, entre o socialismo de Mendes-France e o patriotismo gaullismo, como o do modelo britânico, marcado pelo cepticismo conservador da cedência aos winds of change, eis que nos sentimos náufragos no tocante à habitual inspiração estrangeirada.
Feliz ou infelizmente, tivemos que viajar dentro de nós e, sem grandes teorizações e as consequentes vulgatas ideológicas, experimentando o nosso modo de estar no mundo, antes de o julgarmos e reconstruindo uma nova comunidade nacional sem obediência a prévios programas vanguardistas.
Feliz ou infelizmente, o Portugal a que chegámos acabou por ser escrito por aquela mão invisível, segundo a qual o mundo é mais produto da acção dos homens do que resultado das boas ou más intenções de alguns deles.
Tenho, pois, de concluir que os portugueses de hoje, se quiserem continuar portugueses, têm que ter a coragem de reinventar Portugal. Têm que reorganizar a nova comunidade de significações partilhadas que, conservando o essencial da tradição universalista dos nossos oito séculos de história, seja capaz de a enriquecer-se, de alargar-se em novos círculos concêntricos de uma mais complexa identidade. Por isso, tanto rejeito a ilusão assimilacionista dos que querem conservar o que já não há, como me revolto contra o paternalismo de certos pretensos reconstrutores que esquecem as nossas raízes e não conseguem compreender a base do nosso universalismo.
De uma forma radicalmente liberal, direi que não é a história que faz o homem, mas sim o homem que faz a história, mas sem saber que efectiva história vai fazendo. Com efeito, há sempre uma chamada mão invisível que nos condiciona. Porque a polis, a respublica, o regnum ou o Estado, resultam sempre de uma tensão entre os modelos da racionalidade técnica e da racionalidade ética, entre a racionalidade dos fins (a Zweckrationalitat de Weber) e a racionalidade dos valores (a Wertrationalitat).
Tal como o homem não é apenas inteligência e vontade, mas também imaginação e emoção, também as comunidades políticas precisam de conjugar a ética da responsabilidade com a ética da convicção, a frieza da razão do Estado com a emoção da Nação libertadora, a consciência com a memória e a autonomia com a identidade.
Para que Portugal continue a querer viver como pensa, para que os portugueses continuem a querer a independência, importa que, no espaço da memória, essa inteligência que visa a autonomia possa ser compensada por uma reinvenção da identidade que, longe de conservar o que já não há, assuma a criatividade das saudades do futuro, através uma identidade nacional aberta às novas circunstâncias.
Por José Adelino Maltez
Ser Portugal não é apenas conservar Portugal; não é apenas cultivarmos os nossos jardins à beira mar plantados, com as sementes e as ferramentas que os outros nos emprestarem. Isso é aposentar Portugal.
Continuar Portugal terá de ser, forçosamente, reinventar Portugal. Sem as euforias adolescentes do tudo, nem os pessimismos gerontocráticos do nada.
Parafraseando Almada Negreiros, poderemos dizer que, apesar de já estarem escritas todas as frases que hão-se salvar Portugal, continua a faltar uma coisa: salvar mesmo Portugal.
E salvar Portugal será salvá-lo, em primeiro lugar, da própria utopia da salvação, revistam os salvadores a forma de pessoas - por mais carismáticas que seja, - ou apareçam disfarçadas em doutrinas e ideologias - por mais científicas ou revolucionárias que possam parecer.
Uma comunidade política de corpo inteiro, esse algo que vai além do Estado e que procura assumir-se afectiva e culturalmente como uma pátria, um povo ou uma nação, é, sobretudo, uma comunidade de pessoas que partilham significações comuns. Tenta ser mais do que uma simples soma de “eus”, dado procurar atingir a dimensão do “nós”, quando cada um dos membros dessa comunidade consegue identificar-se com o todo, ao comungar símbolos mobilizadores.
Aplicando o princípio enunciado, podemos dizer que, há pouco mais de vinte e cinco anos, os portugueses eram portugueses porque, por exemplo, sentiam de forma idêntica Amália Rodrigues e Eusébio da Silva Ferreira, duas das significações partilhadas geradas pelo ambiente do “Portugal do Minho a Timor” que, mal ou bem, formatou a maioria dos portugueses de hoje. Esse imaginário assentava no tímido esboço de um lusotropicalismo multicultural sonhado por uma minoria de visionários, mas que não conseguiu driblar os ventos da história da guerra colonial e da posterior descolonização pretensamente exemplar.
Outro foi o discurso justificador da pós-revolução, quando, correndo para a integração europeia, nos orgulhámos da “Europa connosco” e de uma unidade nacional assente em bases de homogeneidade etno-histórica, sem os problemas das minorias que afectavam os outros europeus. Até se disse que os portugueses padeciam de uma espécie de “hiper-identidade”, muito especialmente quando nos comparávamos ao Estado Espanhol.
É natural que continuemos a padecer de uma chamada crise de identidade. Porque temos cerca de oito séculos de autonomia temos uma inevitável complexidade quanto aos mecanismos de identidade, dado que esta última sempre foi sendo reinventada ao longo da nossa história.
Talvez seja urgente recordar que, na Idade Média, cerca de um quinto dos portugueses reais seriam mouros e judeus. Saltando alguns séculos, podemos também lembrar que, na região da Grande Lisboa, ainda no século XVIII, existiriam cerca de dez por cento de negros.
Por outras palavras, o mais permanecente dos Estados europeus e a nação mais antiga deste Continente, partiram, afinal, de uma base multicultural e apenas se identificaram unitariamente por terem praticado inquisitorialmente uma espécie de genocídio doce. Mesmo nestes últimos dois séculos, já sem judeus nem mouros, continuámos na mesma senda de construtivismo nacional centralista, quando programámos e aplicámos um modelo de assimilacionismo exacerbado tanto na metrópole como no espaço imperial.
Aliás, importa também assinalar que muito do nacionalismo português do século XX, esse que se baseia no neogarrettismo e no saudosismo, permitindo o patriotismo da I República e do Estado Novo, constitui mera reinvenção de marca estrangeirada, influenciada pelo nacionalismo místico da III República Francesa, onde até nos inspirámos para o neo-imperialismo colonialista.
Feliz ou infelizmente, depois de 1974, não podendo nacionalizar tendências importadas, até porque a nossa descolonização foi atípica e não acompanhou o ritmo europeu, tanto o do modelo francês, entre o socialismo de Mendes-France e o patriotismo gaullismo, como o do modelo britânico, marcado pelo cepticismo conservador da cedência aos winds of change, eis que nos sentimos náufragos no tocante à habitual inspiração estrangeirada.
Feliz ou infelizmente, tivemos que viajar dentro de nós e, sem grandes teorizações e as consequentes vulgatas ideológicas, experimentando o nosso modo de estar no mundo, antes de o julgarmos e reconstruindo uma nova comunidade nacional sem obediência a prévios programas vanguardistas.
Feliz ou infelizmente, o Portugal a que chegámos acabou por ser escrito por aquela mão invisível, segundo a qual o mundo é mais produto da acção dos homens do que resultado das boas ou más intenções de alguns deles.
Tenho, pois, de concluir que os portugueses de hoje, se quiserem continuar portugueses, têm que ter a coragem de reinventar Portugal. Têm que reorganizar a nova comunidade de significações partilhadas que, conservando o essencial da tradição universalista dos nossos oito séculos de história, seja capaz de a enriquecer-se, de alargar-se em novos círculos concêntricos de uma mais complexa identidade. Por isso, tanto rejeito a ilusão assimilacionista dos que querem conservar o que já não há, como me revolto contra o paternalismo de certos pretensos reconstrutores que esquecem as nossas raízes e não conseguem compreender a base do nosso universalismo.
De uma forma radicalmente liberal, direi que não é a história que faz o homem, mas sim o homem que faz a história, mas sem saber que efectiva história vai fazendo. Com efeito, há sempre uma chamada mão invisível que nos condiciona. Porque a polis, a respublica, o regnum ou o Estado, resultam sempre de uma tensão entre os modelos da racionalidade técnica e da racionalidade ética, entre a racionalidade dos fins (a Zweckrationalitat de Weber) e a racionalidade dos valores (a Wertrationalitat).
Tal como o homem não é apenas inteligência e vontade, mas também imaginação e emoção, também as comunidades políticas precisam de conjugar a ética da responsabilidade com a ética da convicção, a frieza da razão do Estado com a emoção da Nação libertadora, a consciência com a memória e a autonomia com a identidade.
Para que Portugal continue a querer viver como pensa, para que os portugueses continuem a querer a independência, importa que, no espaço da memória, essa inteligência que visa a autonomia possa ser compensada por uma reinvenção da identidade que, longe de conservar o que já não há, assuma a criatividade das saudades do futuro, através uma identidade nacional aberta às novas circunstâncias.
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