CARTA DO CANADÁ
por FERNANDA LEITÃO
Em ano de grande aperto político-social, a classe política aproveitou largamente a boleia do centenário da República para despejar sobre o povo, desconfiado de quem manda mas sempre de pé pronto para a festa e de feriados para a praia, uma verdadeira cascata de espectáculos e cerimónias com que comemorou o golpe militar de 25 de Abril de 1974. Enquanto os credores do país se desdobram em campanhas de arrasar na grande comunicação mundial, deitando mão de argumentos e manobras de verdadeiros mafiosos, a classe parlamentar tem-se entretido a macaquear os tribunais plenários do salazarismo, agora abastecidos de informação por uma nova pide de nítido cariz piroleiro e rasca, ao mesmo tempo que a principal central sindical, a de inspiração comunista, promove a paralização de todo o território. Nenhum tem sentido de estado nem mostra amor por Portugal, mas todos se julgam aptos a governar a nau lusa neste mar encapelado.
Deitada no sofá das 15 às 24 horas locais pude, graças ao empenho e diligência da RTP-Internacional, seguir passo a passo o que e como se celebrou. Foram nove horas de trabalho árduo e não remunerado... À parte os documentos que trouxeram a memória do que aconteceu naquele Abril, antes e depois do 25, apreciei o apontamento feito no Largo do Carmo: oitenta crianças e jovens de várias escolas fizeram perguntas a alguns capitães de Abril. Eram cravos viçosos diante da actual Brigada do Reumático, porque o tempo não perdoa. E assim pude ver que Victor Crespo, suponho que almirante, tem agora um aspecto muito mais respeitável do que da última vez que o vi, no Botequim do marido de Natália Correia, animado pela poetisa e onde todas as noites desaguavam a desoras os figurões do Conselho da Revolução. Nessa madrugada, ao saír com Melo Antunes, Victor Alves e outros, Crespo tropeçou no scotch e quase se esbarrondou sobre o piano, onde pontificava a actriz Maria Paula para acompanhar cantigas de escárnio e mal dizer. Pois gostei de ver que está agora calmo como um quarto de água das Pedras. Embora um pouco desmemoriado. É que, respondendo a um jovem, afirmou que o MFA tinha trazido e implantado a amizade e a generosidade. Confesso que estou perplexa. Então foi por amizade e generosidade que o MFA saneou cerca de mil militares, mil companheiros de armas? Foi por amizade e generosidade que os acusou de serem afectos ao regime deposto, sendo verdade que todos eles, MFA incluído, foram a guarda pretoriana do salazarismo e do marcelismo? Um deles, o Otelo, até foi da Legião Portuguesa e, no funeral de Salazar, pegou em lágrimas na urna.
Então foi por amizade e generosidade que cruzaram os braços diante dos militares vendidos ao comunismo, esses que ajudaram o partido a destroçar a economia, a perseguir pessoas, a encher prisões? Foi por amizade e genrosidade que precipitaram a descolonização, com o resultado sangrento e de vidas perdidas que todos conhecemos? Foi por amizade e generosidade que deixaram instalar as escutas telefónicas vindas da antiga Alemanha Oriental? Foi por amizade e generosidade que deixaram prender tantos oficiais moderados, sem um assomo de virilidade e desafronta? Foi por amizade e generosidade que permitiram as barricadas que enxovalhavam pessoas, as invasões de propriedade privada, o verdadeiro roubo que foi a reforma agrária, os bandos de marginais estrangeiros que vieram vandalizar a terra portuguesa? Então, por amizade e generosidade, Portugal não merecia ser poupado a tudo isto mediante uns tiros, umas cabeças partidas, uns murros bem dados? Estou como o outro da anedota: já lhe tenho ouvido chamar muita coisa, mas amizade e generosidade é que não.
Talvez muitos pensem como eu pois, durante todas as celebrações, quem pairou bem alto foi Salgueiro Maia, o bravo alentejano que estudou em Tomar, o homem honesto e despojado que deu a cara e a coragem, tendo-se retirado sem participar do fórró das promoções de aviário. Esse, sim, personificou a nobreza das Forças Armadas e, deiam-lhe as voltas que quiserem, é a ele que todos agradecemos o derrube da ditadura. Todos, não. Houve um primeiro ministro, hoje a viver no Palácio de Belém, que recusou a pensão ao Salgueiro Maia. Mas, na mesma ocasião, não a recusou a um pide. É por estas e por outras que eu não gosto de ver economistas metidos na política. Porque, parafraseando um antigo PR, há mais vida para além dos números.
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