CARTA DO CANADÁ
Fernanda Leitão
Numa descuidada passeata pela internet, caíu debaixo dos meus olhos esta saraivada dada à estampa no SOL:
“O Processo chamado “Face Oculta” tem as suas raízes longínquas num fenómeno que podemos designar por “deslumbramento”. Muitos dos envolvidos no caso, a começar por Armando Vara, são pessoas nascidas na Província que vieram para Lisboa, ascenderam a cargos políticos de relevo e se deslumbraram. Deslumbraram-se, para começar, com o poder em si próprio. Com o facto de mandarem, com os cargos a distribuír pelos amigos, com a subserviência de muitos subordinados, com as mordomias, com os carros de luxo, com os chauffeurs, com os salões, com os novos conhecimentos. Deslumbraram-se, depois, com a cidade. Com a dimensão da cidade, com o luxo da cidade, com as luzes da cidade, com os divertimentos da cidade, com as mulheres da cidade. Ora, para homens que até aí tinham vivido sempre na Província, que até aí tinham uma existência obscura, limitada, ligados às estruturas partidárias locais, este salto simultâneo para o poder político e para a cidade representou um cocktail explosivo”.
Interrompo a transcrição para fazer alguns comentários a esta prosa de prego-e-racha, sem estilo nem graça, quase a lembrar as da agit-prop usadas pelo”sol da terra” de má memória. Para o autor, nascer na Província é ser inferior, atrasado, geneticamente esquisito e, portanto, vulnerável à cidade que fascina e corrompe. Na província, segundo ele, todos estão mortinhos por se corromperem na cidade, o que não é caso dos alfacinhas de gema, todos sem excepção, incorruptíveis. A honra e a força de carácter é, de acordo com esta saraivada, apanágio dos nascidos à beira Tejo. Deve ser por isso que falam de cátedra e se comportam como donos de tudo, incluindo dessa Província donde vêm os maraus e a paparoca. Porque o lado maçador é esse, a paparoca e a água vêm da Província, mailos braços para trabalharem. Uma fatalidade que já deu o que deu, em 1975, quando o PC mais o Movimento das Forças Armadas decidiram, também, insultar a inteligência e o patriotismo da Província: os da dita cortaram as estradas, em Rio Maior e como já estavam com a mão na massa, incendiaram as carrinhas que transportavam os jornais pejados de insultos, ao mesmo tempo que o Tio Abílio fazia mocas ao torno, para o que desse e viesse. Foi o princípio do fim dos autoproclamados donos do país.
Não sei se o autor da prosa conhece bem a Província ou que espécie de gente conhece ele no interior do país. Posso adiantar-lhe que, na Província, há um grande número de gente culta, a meter num chinelo os sapateiros que teimam em tocar o rabecão do jornalismo, há muita gente fina, civilizada e de bom carácter. Há milhões de pessoas da Província que vivem em cidades maiores, mais luxuosas do que Lisboa, embora não necessariamente mais bonitas, e não vivem de expedientes nrm de boca aberta. Entre esses milhões de expatriados, há centenas ocupando altos cargos na banca, nas empresas, no poder municipal, na política, e não consta que sejam corruptos. O autor da saraivada parece, ele sim, um “deslumbrado” com aquilo que considera uma fortaleza inexpugnável: um jornal teúdo e manteúdo por um sócio de uma angolana que compra tudo quanto vê em Portugal, mais dois angolanos ensopados em milhões. O que foi trombeteado como um acto de “libertação” por Felícia Cabrita, a babada biógrafa de Pinto da Costa, quando chamada a depor numa comissão parlamentar que mais parece, nesta quaresma, o baile dos trapalhões. Resta-nos aguardar que o jornal passe a publicar saraivadas contando a verdade do que se passa em Angola. Porque, enfim, ninguém pode acreditar que por lá haja censura e asfixia democrática.
A mim mais me parece cisma contra quem é da Província. Já um familiar do autor da saraivada, num tempo em que ainda andava muito ligado ao PC, cismou contra um professor de português na Universidade de Amesterdão, transmontano honrado, escritor de mérito e respeitado, cidadão que nunca comeu da gamela partidária, pondo a correr a difamação de que ele seria da pide. E não há muitos meses, um outro familiar do autor da saraivada, através da RTP, visto e ouvido por milhões de pessoas em Portugal e no estrangeiro, pôs nas ruas da amargura o cônsul Aristides Sousa Mendes, um beirão, deixando claro que o tinha por pessoa desonesta, enquanto endeusava a perseguição movida por Salazar ao diplomata que salvou da morte largos milhares de judeus. Estas cismas,às vezes, passam de geração em geração.
Para finalizar, recomendo ao autor da saraivada que não repita generalizações que insultam. Que saia de Lisboa e verifique que toda esta balbúrdia apenas interessa a políticos carreiristas e jornalistas que vivem dos políticos. Quem, na Província, pega na enxada, se desdobra nas fábricas, quem tem de labutar para pôr na mesa o pão da família, reage mal a estas confusões. Deixe a Justiça trabalhar.
Sem comentários:
Enviar um comentário