Homília na Missa por El-Rei D. Carlos e pelo Príncipe Real
(Igreja da Encarnação, 1-2-2010)
1. Introdução. Começa o ano civil com a comemoração do Dia Mundial da Paz, sob os auspícios da nossa Padroeira e Rainha, Nossa Senhora da Conceição, cuja maternidade divina se celebra também, liturgicamente, nesse primeiro dia de Janeiro. A esse tão feliz início do primeiro mês do ano, segue-se, no primeiro dia do mês seguinte, a trágica recordação de igual data do ano de 1908, em que tombaram, por Deus e pela Pátria, Sua Majestade El-Rei D. Carlos I e Sua Alteza Real o Príncipe D. Luís Filipe, em dramático atentado ocorrido no Terreiro do Paço, onde hoje uma lápide comemorativa recorda tão funesto acontecimento.
É já uma tradição de muitos portugueses, monárquicos ou simplesmente patriotas, recordar esta efeméride com uma Missa de sufrágio pelas Pessoas Reais assassinadas no 1º de Fevereiro, seguida de singela romagem aos seus túmulos, no panteão da Família Real, em São Vicente de Fora. Hoje, por uma singular circunstância, não é possível essa homenagem junto das urnas que guardam os seus restos mortais e, por esse motivo, a celebração eucarística em sufrágio das suas almas ocorre nesta Igreja de Nossa Senhora da Encarnação, por especial favor do seu Prior, o Senhor Cónego João Seabra, a quem agradeço a hospitalidade.
Saúdo também, em especial, Suas Altezas Reais os Duques de Bragança, na sua qualidade de Chefes da Casa Real e, por isso, representantes de El-Rei D. Carlos I e do Príncipe D. Luís Filipe. Cumpre-me também saudar o Senhor Presidente da Causa Real, o Senhor Presidente da Direcção do Instituto da Nobreza Portuguesa, o Senhor Presidente da Associação da Nobreza Histórica de Portugal, o Senhor Presidente da Real Associação de Lisboa, a quem agradeço o honroso convite para presidir a esta celebração, e os outros representantes de todas as outras entidades que, uma vez mais, promovem ou se associam a este acto.
Por último, mas com não menos consideração, cumprimento os numerosos fiéis que quiseram participar nesta liturgia, porque o fazem por um dever de justiça, que muito os honra, para com a memória das vítimas do atentado e na perspectiva de um renovado compromisso com a sua fé cristã e com o futuro de Portugal.
2. Memória e celebração. Que celebra a Igreja quando recorda, mais de um século depois, o passamento de El-Rei D. Carlos e de seu filho, o Príncipe Real? Não poderá resultar anacrónica esta evocação, tanto tempo decorrido já sobre o nefasto acontecimento? Não se estará porventura a incorrer num retrógrado saudosismo de outros tempos e eras? A estas dúvidas quanto à oportunidade desta celebração, poder-se-iam ainda acrescentar outras questões respeitantes à sua pertinência. Com efeito, o facto de esta evocação ocorrer numa igreja e em plena liturgia eucarística, não poderá ser entendido como uma desvirtuação da instituição eclesial e da própria Santa Missa? Não se corre o risco de confundir o temporal com o espiritual, o trono com o altar?
A Eucaristia é sempre uma acção de louvor à Santíssima Trindade, pela qual se realiza verdadeiramente, embora de forma incruenta, o Sacrifício de Nosso Senhor Jesus Cristo no Calvário. É, por isso, uma acção litúrgica, ou seja, de culto divino, que realiza o fim latrêutico que anima toda a vida eclesial, porque a principal finalidade da Igreja, dos seus fiéis e até de cada homem é dar glória a Deus. Mas como a glória de Deus é, como já ensinava São Leão Magno, o homem vivo, a celebração da divindade é também, em Cristo Nosso Senhor, comemoração da humanidade assumida e redimida no Verbo encarnado. Para além de verdadeiro sacrifício, a Missa é também memória e celebração.
Neste preciso sentido, esta evocação é, em primeiro lugar, uma Missa de sufrágio pelas almas do falecido monarca e de seu filho primogénito. Sem desrespeitar a dignidade da sua estirpe real, nem a excelência das elevadas funções que ambos exerceram, é sobretudo enquanto fiéis cristãos que a Igreja os recorda nesta celebração e eleva ao Céu preces pelas suas almas.
A este propósito, vem a talho de foice recordar um cerimonial ainda em uso na Casa Real austríaca, sempre que um membro desta família imperial é sepultado no panteão real, sito na vienense Igreja dos Capuchinos.
À chegada do féretro e do seu acompanhamento, a entrada do templo encontra-se fechada, pelo que um dignitário do cortejo percute na respectiva porta. A esse toque, alguém responde de dentro:
- Quem é?
Nos termos protocolares, enunciam-se então todos os títulos nobiliárquicos e os tratamentos honoríficos a que esse membro da família imperial tivesse direito.
Mas a essa apresentação do defunto, segue-se uma lapidar negativa:
- Não conheço.
Repete-se o acto de bater à porta e, inquirida por segunda vez a identidade de quem deseja entrar, dizem-se de novo, mas de forma mais abreviada, as honrarias inerentes ao falecido. Então, de dentro da igreja fechada, ouve-se mais uma vez uma voz anónima que diz laconicamente:
– Não conheço.
À terceira vez, já não se referem altezas nem títulos, não se citam honras, nem nobiliárquicas prerrogativas, e o corpo insepulto é apresentado apenas como o de um pobre pecador.
E é só então que a porta, que não cedeu ante pergaminhos de imemorial nobreza, que não se rendeu ante séculos de gloriosa história familiar, atestada pela infindável ladainha das honras herdadas, se abre de par em par, dir-se-ia que comovida pela grandeza da humildade de um pobre de Cristo, que suplica a graça de um lugar de descanso para o seu corpo, enquanto não chegar a hora, tremenda e gloriosa, da ressurreição final.
Assim é também a entrada no reino dos Céus, majestoso pórtico que permanece indiferente às mais sublimes dignidades terrenas, sejam elas de natureza política, histórica, intelectual, económica, artística ou outra. Para a salvação eterna, pouco importa o poder, a fidalguia, a beleza, a inteligência ou a riqueza material do cristão. Não é por esses seus atributos que se lhe franqueará a porta do paraíso que, no entanto, se escancará ante a singela grandeza de quem tiver a dita de se reconhecer a si mesmo o que afinal todos somos nesta vida: pobres pecadores em demanda da pátria celestial, que só pela infinita misericórdia de Deus poderemos alcançar.
3. Mártires da Pátria. Se é este piedoso propósito a principal razão desta liturgia, também é verdade que esta celebração é igualmente comemorativa, não do facto lamentável do regicídio, mas das suas vítimas inocentes.
Já os primeiros cristãos se reuniam nos seus templos para a celebração dos mistérios divinos, mas também para a gloriosa comemoração dos seus irmãos que tinham dado a vida pela fé, pois a palma do seu martírio era razão suficiente para concluir, com absoluta certeza, a sua eterna salvação. Foram estes os primeiros santos do calendário cristão, os primeiros também a serem celebrados com festas próprias e a merecerem o culto público dos fiéis, mas sempre subordinado à adoração que só às Pessoas divinas é devida.
Muito embora a definição de martírio pressuponha, por regra, a entrega voluntária da vida por causa da fé, também é verdade que a Igreja tem admitido, ao longo da sua bimilenar história, algumas excepções. Por exemplo, a antiquíssima veneração dos santos inocentes, as crianças assassinadas por Herodes no seu intuito de matar o recém-nascido Rei dos Judeus, parece indiciar uma aplicação sui generis do conceito de martírio, na medida em que aquelas crianças não eram crentes, nem morriam voluntariamente em defesa de uma fé que, por certo, ignoravam absolutamente. Nesse caso, como a sua vida foi ceifada em nome do ódio anti-cristão, que movia o ímpio tirano, a Igreja entendeu que lhes era devida a honra do martírio e, como tal, as festeja no seu calendário oficial, na oitava do Natal.
Outro exemplo significativo e bem mais recente é o caso de São Maximiliano Kolbe, também oficialmente considerado como mártir, mas cuja morte também não se ficou a dever directamente à sua fé. Prisioneiro num campo de concentração nazi, este bem-aventurado ofereceu voluntariamente a sua vida em resgate de um outro detido, cuja morte tinha sido decidida como medida de retaliação. Não obstante a sua morte não ter sido provocada directamente pelo facto de ser cristão, o dicastério competente da Santa Sé entendeu que este santo religioso tinha sido mártir, senão em nome da fé, pelo menos em nome da caridade, pois ninguém tem maior amor do que aquele que dá a sua vida pelos seus amigos.
Neste sentido mais amplo, não repugna considerar El-Rei D. Carlos I e o Príncipe Real como vítimas do ódio dos seus assassinos e ainda das associações em que os mesmos militavam e foram também, por esse motivo, cúmplices morais do regicídio, pois ninguém pode pôr em dúvida que a morte de ambos foi uma consequência directa da sua heróica entrega ao seu país e ao seu povo, que souberam amar e servir até ao fim.
Os Reis D. Carlos e D. Sebastião são, curiosamente, os únicos monarcas portugueses que faleceram de morte violenta. Se o penúltimo rei da dinastia de Avis pereceu no campo de batalha, às mãos dos inimigos do império e dos infiéis, o penúltimo monarca da quarta dinastia tombou no Terreiro do Paço, sob as balas dos inimigos do trono e do altar. A tragédia de Alcácer-Quibir foi o princípio do fim da independência e da grandeza de Portugal de aquém e além-mar, como o drama da Praça do Comércio foi um atentado contra a independência nacional, o princípio do fim da monarquia e também do Portugal ultramarino.
Não me cabe a mim reconhecer a grandeza do supremo sacrifício de El-Rei D. Carlos I e de Dom Luís Filipe, mas creio que expresso uma convicção comum a todos os verdadeiros portugueses, qualquer que seja a sua ideologia política, se disser que ambos foram, sem favor, mártires da Pátria.
Dos primeiros fiéis que foram martirizados dizia-se que eram sementes de novos cristãos, porque o seu sangue, tão heroicamente derramado, não podia deixar de dar frutos de verdadeira santidade. Mutatis mutandis, atrever-me-ia a dizer que as vítimas inocentes do regicídio são também um título de glória para Portugal: são penhor da nossa esperança, na certeza de que o seu sacrifício não foi inglório, antes prenúncio de outros heroísmos, de outros portugueses igualmente capazes de se darem sem medida pela sua fé e pela sua pátria.
4. A Igreja e a República. Este ano de 2010, centésimo segundo aniversário do regicídio, é também o ano em que se recorda a proclamação da república portuguesa. Como é sabido, a alteração do regime político ficou-se a dever ao golpe de Estado de 5 de Outubro de 1910 e, mais remotamente, ao atentado que vitimou El-Rei D. Carlos I e o Príncipe Real.
A relação entre o regicídio e a posterior instauração do regime republicano não é já uma simples conjectura ou uma mera hipótese científica, mas uma verdade histórica indesmentível. Não será portanto desprovido de fundamento que esta reflexão incida também sobre este particular, tendo em conta que esta celebração ocorre precisamente no centenário da república, cujas comemorações oficiais tiveram ontem o seu começo.
A Igreja não tem preferências de carácter institucional, não apenas porque respeita a legítima autonomia dos povos no que concerne à sua organização política, mas também porque o seu fim é transcendente. Contudo, não pode deixar de se pronunciar sobre aqueles regimes que, de algum modo, atentam contra a liberdade da Igreja e dos fiéis, nomeadamente violando os mais elementares direitos fundamentais. Neste sentido, a Igreja não é, nem nunca foi ou poderá ser, republicana ou anti-republicana, monárquica ou anti-monárquica, mas será sempre contra todos os sistemas políticos que, qualquer que seja a sua configuração constitucional, oprimam o homem e se oponham ao bem comum.
Sem ânimo para me espraiar sobre um tema que é mais próprio de uma sessão académica do que de uma homilia, gostaria no entanto de enumerar, a título de exemplo, algumas das medidas levadas a cabo pelo primeiro governo provisório republicano, logo após o golpe de 5 de Outubro de 1910, portanto numa época em que o supremo órgão executivo nem sequer contava com nenhum tipo de legitimidade democrática.
Dois dias depois, a 7 de Outubro de 1910, todos os feriados religiosos foram suprimidos, mantendo-se apenas o 25 de Dezembro, mas como festividade laica, ou seja, como Dia da Família portuguesa. Por sinal, as anticlericais leis da família, que estabeleceram o divórcio e acintosamente previam pensões para as «viúvas» e filhos dos padres, foram publicadas no dia 25 de Dezembro de 1910, numa provocatória ofensa ao santo dia de Natal.
Foi também em Outubro de 1910 que se procedeu à encarceração e à posterior expulsão dos religiosos da benemérita Companhia de Jesus, dando por vigentes os correspondentes decretos pombalinos. De imediato, proibiram-se os juramentos religiosos, bem como a presença de crucifixos nos edifícios públicos e, ainda, o uso de vestes talares pelos clérigos e religiosos. O ministério da Guerra mandou retirar de todas as fortificações militares os nomes dos santos que até então as designaram e impediu-se o ensino da doutrina cristã nas escolas. Fechou-se ao culto a capela da Universidade de Coimbra, que foi convertida, à boa maneira bolchevique, num museu de arte sacra. As matrículas no primeiro ano da Faculdade de Teologia foram anuladas, por decreto do governo, e abolida a cadeira de Direito Eclesiástico nas faculdades estatais. Foi vedada aos membros das Forças Armadas a participação em actos religiosos e, já em 1911, à imagem e semelhança da Revolução Francesa, foi determinado pelo governo que, nos tribunais, cartórios e repartições do Estado, não se fizesse menção à era de Cristo.
Não é preciso prosseguir para poder concluir, mesmo sem necessidade do aval de nenhum historiador, a matriz profundamente anti-cristã do regime instaurado em Portugal em 5 de Outubro de 1910. Uma tal afirmação não nasce de nenhum preconceito, mas de um juízo desapaixonado dos factos, de que a precedente lista não é mais do que uma significativa e eloquente amostra. Negar o seu carácter essencialmente anti-católico é negar uma evidência e, como se costuma dizer, contra factos não há argumentos.
No contexto desta política, tão anticlerical como anti-democrática, entende-se que o regicídio fosse indispensável para a implementação de medidas que, pelo seu carácter profundamente sectário e injusto, nunca poderiam ter o patrocínio de um rei. Nenhum soberano cristão digno desse nome, nenhum verdadeiro Rei de Portugal, nação fidelíssima, se sujeitaria nunca a uma tal tirania e, por isso, os revolucionários de 5 de Outubro aperceberam-se de que só a queda da monarquia poderia permitir a vitória do seu ideário. E como a realeza era então, como sempre foi, querida pelo povo, não restava outro expediente para a sua abolição que não fosse o crime e a traição.
Triste regime o que nasce de mãos assassinas, tingidas com o sangue inocente de dois dos maiores mártires da história de Portugal: El-Rei D. Carlos e o Príncipe Real!
5. Salvar a família, salvar Portugal. Talvez alguém pense que o carácter profundamente anti-democrático e anti-cristão da primeira república é apenas uma desastrada reminiscência, uma triste página de um passado que, felizmente, nada tem a ver com o nosso tempo.
É verdade que o Portugal de 2010 é muito diferente do de 1910, mas talvez não seja temerário afirmar que o espírito laicista de outrora permanece vivo no regime que, talvez por se identificar tanto com os seus centenários fundadores, se presta a festejá-los com tanta pompa e circunstância, a expensas do exausto erário público. Não obstante as convicções cristãs da grande maioria dos portugueses, insiste-se numa política contrária à mais elementar liberdade, através de medidas que, embora não hostilizando directamente a Igreja Católica, procuram a sua destruição. Não se impede formalmente a acção da Igreja, mas silencia-se a sua voz, atenta-se contra o seu magistério e contra as suas instituições.
Medidas que seriam impensáveis para os republicanos de 1910, são hoje uma triste realidade. Pense-se no aborto, impunemente realizado e pago pelas instituições do Estado, que não têm contudo verbas para os doentes crónicos, nem consegue atempadamente satisfazer todos os pedidos de intervenção cirúrgica. Pense-se no divórcio, entendido como um simples repúdio que banaliza a família e atenta contra a dignidade do cônjuge mais desfavorecido. Pense-se na iníqua equiparação do casamento civil às uniões entre pessoas do mesmo sexo, por alguns festejada como ponto alto das celebrações do centenário republicano, talvez para vincar que os actuais governantes se revêem na índole anticristã dos seus predecessores.
Para salvar a família e salvar Portugal, é preciso que muitas famílias cristãs se não demitam da sua responsabilidade social!
Para salvar a família e salvar Portugal, é preciso que a Família Real, que é a fiel depositária de oito séculos de tradição cristã e de glória nacional, nos continue a guiar pelos caminhos da nossa História, na fidelidade à Igreja e à nossa memória e independência nacional!
Para salvar a família e salvar Portugal, é preciso que o exemplo heróico de El-Rei D. Carlos I e do Príncipe Real sejam fermento de muitos portugueses que hoje, como naquele fatídico 1º de Fevereiro de 1908, dêem a sua vida pela fé e pela Pátria!
6. Conclusão. Quando Suas Majestades El-Rei D. Carlos I e a Rainha D. Amélia, e Sua Alteza Real o Príncipe Dom Luís Filipe atracaram, pelas 17 horas do dia 1 de Fevereiro de há 102 anos, na estação fluvial do Terreiro do Paço, voltavam a Lisboa depois de uma estadia em Vila Viçosa. Junto ao seu Paço Ducal, ergue-se o Santuário da veneranda imagem de Nossa Senhora da Conceição, pelo que talvez não seja excessivo supor que a Santíssima Virgem Maria terá acompanhado a Família Real no seu regresso à capital, retribuindo assim a sua boa vizinhança. E como Nossa Senhora é Mãe que quer sempre o nosso bem e Rainha que tudo pode, é certo que assistiu a El-Rei e ao Príncipe Real na sua última hora. Que os tenha pois em Sua santa glória!
A Nossa Senhora da Conceição dirigimos uma última prece, pedindo à nossa Padroeira que seja agora de novo – como foi, em 1385, para o Santo Condestável e, em 1640, para El-Rei D. João IV – a nossa bandeira, sob a qual nos comprometemos a defender a fé, para salvar Portugal.
P. Gonçalo Portocarrero de Almada