terça-feira, outubro 06, 2009

A República morre pela traição burguesa


A Traição burguesa no caminho da história

Francisco Rolão Preto


O primeiro espírito de traição burguesa sopra bem longe nos confins dos tempos quando a civilização humana que nascera nos Deltas fecundos e crescera no embalar das águas genésicas dos grandes rios, ensaiava os primeiros passos na terra sagrada do Egipto.
Bubastes, Hermopólis, Atríbis, Busíris, Letopólis... Viram bem cedo surgir dentro dos seus muros, e como um bolor alastrar e corromper a consciência virginal dos homens, o espírito do mal burguês, que se alimentava do suor e do sangue de quantos subiram o Nilo até aos confins da Núbia, à procura do marfim, do ébano e do oiro para logradoiro da ganância alheia.
Cedo também é esse sopro maléfico que segreda aos sacerdotes de Osíris ou de Ámon as solicitações de riqueza, tornando uma classe que era poderoso motor vital do país no entrave permanente a todos os grandes esforços que procuram assegurar ao Egipto a sua marcha na História.
E assim dos Faraós das velhas dinastias aos Thotomés e Ramsés do Egipto restaurado, bem como à Era dos Ptolomeus, um longo rasto de lutas, intrigas, pactos com o invasor, assinala a acção dessa classe sacerdotal que um impulso de ambição sem limites conduz, até mesmo nos lances cruciais da vida do povo egípcio. Por ser este o mais poderoso índice da traição do espírito burguês naquele tempo, não era porém a única. A burguesia capitalista propriamente dita, enriquecida pelo comércio marítimo, logo se mostra e mantém oligarquia opressora, especuladora e avara, que em todas as crises graves ajuda a escravizar o país, feudalizando-o e atraiçoando-o tanto como o clero.
É aqui, neste «clima» do Egipto, que os judeus de Jacó se contaminam da ganância burguesa, demudando-se este povo primitivo de pastores de gado, de que fala a Bíblia, em mercadores de tal maneira especuladores que se tornam um quisto para o País, obrigando o Faraó a persegui-los.
Assim soprava o espírito burguês no Egipto.
Mas, já então, na Grécia, essa terra singular onde a consciência humana floresceu nos prodígios de uma revelação nunca mais excedida em claridade e graça - na Grécia onde a sabedoria de Sólon e o génio de Péricles ordenavam instituições, onde Aristóteles e Platão disciplinavam os sentimentos - onde Demóstenes descobria o génio alado das palavras e Fídias descortinava a beleza mística das formas - já então, nessa divina Grécia, como num belo fruto, a traição do bicho que a mina e decompõe - o mal burguês - mesquinhez, susceptibilidade, visão rasteira, inveja, dispersão e ganância - corroía e envenenava os destinos gregos.
Toda a história da Grécia é o testemunho dessa traição que incessantemente renova ou promove rivalidades fatais entre cidades e ligas, numa persistência alucinante e mesmo diante da ameaça bárbara da Ásia ou da Macedónia.
Hípias, ateniense, alia-se com Dario contra Atenas; Demarate, espartano, faz o mesmo contra Esparta; a cidade de Corinto joga na perda de Mileto, como Argos joga na perda de Esparta e Egino na perda de Atenas... O mesmo sucede quando é Filipe quem se propõe dominar o mundo grego. Com efeito, nas cidades gregas divididas, o partido do oiro favorece decididamente o invasor e a Macedónia, apesar de Demóstenes, triunfa.
A traição burguesa está no fundo de todos os desastres do mundo grego, porque é bem o seu espírito que governa as cidades, dita os costumes e orienta os destinos... É ela, evidentemente, quem desvia Atenas de realizar a sua vocação helénica, pela visão de estreito exclusivismo que sempre dominou a cidade perante os povos que de fora a cobiçam, quando os não tinha em suas mãos por lei da guerra. Jamais, nem mesmo com Demóstenes, ela consegue ultrapassar o estreito horizonte do seu ideal de cidade livre, cidade insolidária com os destinos do mundo que a rodeava, cabeça hegemónica e beneficiária, porventura, em qualquer liga efémera das cidades, mas não cidade-mãe, centro-motor de energias imperiais, mão benéfica dispensadora da equidade para quantos topava em seu caminho. Pelo contrário, sempre a dominou o critério de uma motora de negócios ou pertinaz exploradora de indústrias, para quem o verdadeiro mundo era o circuito estreito do seu burgo e para quem os outros homens só em verdade podiam interessar como tristes e míseros escravos.
E é assim que a Liga Achaia condena Cleómene e esmaga a revolução que visava abater o capitalismo; é assim que Agis paga com a vida a sua ousadia de ter abolido as dívidas...
Gente ciosa das suas regalias de cidadãos e capaz de aplaudir Sófocles, mas incapaz de outorgar essas regalias seja a quem for. Anaxágoras não hesita em condenar e fazer beber cicuta a Sócrates...
Um pensamento, porventura, dentre o pensamento grego, pôde exprimir o conceito de vida burguesa daquele tempo e de todos os tempos: é o pensamento de Epicuro.
Epicuro é a expressão suprema da moral burguesa, materialista e egocêntrica; é fundamentada no desejo de encontrar a felicidade - doa a quem doer - dentro dos limites rasteiros e moderados em que não surgem duras contrariedades, e refractária por isso a grandes voos sobre largos horizontes, onde esbarra com a «sabedoria» e a «prudência» do seu próprio egoísmo.
Não está aqui pintada toda a paisagem moral de uma traição que sacrifica à sua «virtude» toda a grandeza do Homem, toda a grandeza da Comunidade, toda a grandeza do vasto Mundo Humano?
Ao contrário da Grécia, Roma nasce, cresce e caminha sob o signo da «terra» - todas as virtudes próprias da aristocracia, das classes médias e da plebe são temperadas no apelo da gleba...
A vocação de Roma é pois, em primeiro lugar, a Conquista, a extensão territorial, a base forte assente na «terra» forte; depois, o mar, como segurança ainda da terra; e só por último o mar como meio de expansão comercial e hegemonia imperial.
Enquanto na Grécia, a não ser Esparta, todas as cidades nasceram ribeirinhas ao mar, e para o mar naturalmente voltadas no seu sonho de expressão mercantil, Roma alicerça-se no interior, no alto de sete colinas, não tem porto natural, e traduz a intenção de uma associação de interesses e aspirações rurais que só na terra apoiavam o seu destino.
Nascidas sob signos tão diversos, bem diverso teria de ser o sentido da sua vocação histórica. A Grécia, encontrando no desenvolvimento da sua evolução económica as reacções da sua evolução social e política, mostra-se naturalmente mercantil e dispersa, sob o comando de uma burguesia rica e gananciosa. Roma, mesmo quando se desenvolve a ponto de abraçar todo o Mediterrâneo, mantém uma convergência, se não uma unidade essencial, o que é o sinal de um limite imposto às ambições, dispersivas e sem tino, de quantos não conseguem antepor o interesse geral ao interesse de cada um.
E, no entanto, Roma bem depressa significa o triunfo das classes médias, o habeas corpus, o direito e a liberdade dos cidadãos, alargando-se a todos e estendia a sua conquista do mundo.
Roma, república popular, suprime a servidão por dívidas, vence a aristocracia, estabelece a igualdade jurídica, organiza um exército de cidadãos. Roma é o primeiro império em que o povo toma consciência de si mesmo.
Democracia e meia fortuna tornam-se sinónimos; os muito ricos perdem pouco a pouco a sua influência política.
Eis, porém, que a Nobreza solicita e obtém o apoio da Burguesia contra as pressões do Povo. Esta primeira traição vai alterar, para todo o sempre, a evolução das instituições romanas.
Pouco a pouco a burguesia passa a ter características capitalistas; e o Senado, dominado por uma oligarquia, sobretudo depois de Canas e das guerras púnicas, seduz em seu proveito a influência do Povo. Roma é já então um centro poderoso de especulação comercial. A traição burguesa surge assim na febre com que a pequena e média fortuna rural trocam o brasão do seu ruralismo pela ganância cómoda das «acções» e do jogo da bolsa.
A República, exactamente porque liberal e universalista, menos armada estava então para se defender da traição capitalista, que não só absorveu rapidamente toda a fortuna romana e imperial, mas também depressa começou a dominar as próprias instituições, servindo-se delas como instrumento dos seus desígnios.
Como sempre, o capitalismo já então se serviu do seu melhor instrumento, que é a guerra, para realizar esses fins. A guerra, com todo o cortejo de especulações na sua preparação, de especulações nos serviços que a mantinham e de especulações nos lucros que ela comportava em escravos e espólio de vencidos - tal foi na verdade o signo sob o qual a sociedade capitalista romana lançou a república pelo caminho de novos destinos.
Ficou célebre a resposta de Catão ao Senado: a guerra pagará a guerra.
Agora Roma, sob a tutela e impulso da oligarquia financeira que a subjuga em absoluto, não é mais do que um povo de rapina sem quaisquer escrúpulos, afogando no sangue a Sardenha, a Macedónia, a Ilíria, para que não surgisse estorvo à plena posse das minas, do comércio e de toda a riqueza que suscitasse cobiças. Da Grécia, onde Perseu sai imolado à febre capitalista romana, até ao Egipto, a Loba austera e generosa passa a hiena insociável, por dura.
Entretanto, o mesmo clima do brutal domínio da Riqueza inspira e orienta as instituições de Roma. As classes médias liquidam totalmente, as massas rurais são contidas e impossibilitadas de obter a terra, que o seu suor fecundava. A tirania do capitalismo por toda a parte as vai esmagando...
A guerra civil e a revolta dos escravos surgem, então, como um aviso.
Caius Grachus é o primeiro tribuno que cai vítima da traição burguesa - assassinado por querer fazer triunfar a justiça.
Drusus, que tenta imitá-lo, tem a mesma sorte.
Mário encabeça a reacção popular, um momento vitoriosa; mas Sila, salvador da ordem burguesa, elaborando fria e inabalavelmente listas de condenados no próprio banquete do triunfo, chega por seu turno, para logo um dia desaparecer no mistério de uma abdicação que parece um remorso.
Espártaco ergue a bandeira dos escravos, outra vez revoltados e outra vez esmagados pela burguesia capitalista, que em Crassus, o riquíssimo Crassus, encontra o algoz que, para salvar os seus privilégios, deixa na História um largo rasto de sangue.
Eis os massacres da Sicília, os massacres de Mário, os massacres de Sila...
O sangue que corre durante o triunvirato é o que sela as lutas do Senado com os Césares. Eis o sangue que rompe do peito de César pela mão assassina de Bruto - desse Bruto que a história burguesa nos pinta como um austero salvador da República, aquele que brande o punhal em nome das liberdades espezinhadas pelo tirano, e que afinal não passa de um mandatário da burguesia capitalista, de um usurário de Salamina, de um defensor das regalias burguesas, a quem o poder de César limitava a extensão gananciosa.
Assim, o povo romano acaba por se divorciar das instituições republicanas, que as traições da burguesia converteram em instrumento de uma oligarquia capitalista e cosmopolita que o oprime e apela para a autoridade libertadora dos Césares, apoio das suas reivindicações sociais e políticas, restituidores das terras e da liberdade perdida.
A República morre pela traição burguesa.
Mas pela traição burguesa mostra-se logo contaminado o próprio Império. Debalde a voz eloquente de Cícero se ergue num protesto de inteligência e de humanismo, desenhando o perfil austero e sereno da República «guardiã de lei, mãe generosa, de universal grandeza e universal justiça... Edifício perfeito e forte construído pela clara metafísica para escalada segura do Direito das Gentes». Ninguém o escuta. A batalha dos interesses sem limites, de especulação sem freio, não tarda em reacender-se. Indiferente a Cícero, ignorando Lucrécio, numa luta sem tréguas, outro aspecto de traição surgiu, ameaça bem evidente para a própria integridade de Roma. A especulação capitalista, dividindo-se em duas correntes, a Continental e a Oriental, foi o ponto de partida da divisão futura do Império.
A traição capitalista não dá entretanto descanso aos Césares e assim, apesar de todos os massacres de Tibério, é ela que assassina Calígula e é ela quem se apodera definitivamente de toda a riqueza do Império: toda a indústria e toda a terra.
E assim, falhada a última tentativa de equilíbrio de forças entre os Imperadores e a oligarquia burguesa, falhada a tentativa de Séneca, a Roma só restaram dois caminhos: a tirania asfixiante do capitalismo ou a tirania dura do Cesarismo.
Por vezes César não foi mais do que um mandatário da tirania burguesa, um aventureiro que a sorte escolheu no jogo das aventuras militares que retalhavam o Império; outras, César foi o aristocrata implacável, que apoiava no povo, e só no povo, o seu domínio. De ditadura em ditadura, de reacção em reacção, o Estatismo tornou-se de cada vez mais um imperativo dos tempos, dominando tudo, intervindo em toda a parte, esmagando as últimas liberdades, vencendo as derradeiras resistências da plebe romana.
Por fim, a última traição da burguesia, foi a traição da sua cumplicidade com os invasores, os Bárbaros, o último recurso contra César. E os Bárbaros destruindo o Templo, não pouparam quem lhes ficou sepultado debaixo das ruínas trágicas.

(In A Traição Burguesa, Lisboa, 1945; Capítulo I)



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