quinta-feira, dezembro 04, 2008

Pedro Teotónio Pereira e a «pretalhada»



Através do espaço Caminhos da Memória tive conhecimento de um interesante documento histórico. Na sua apresentação, o editor escreveu o seguinte:

"Este texto insere-se num conjunto de cartas e documentos trocados entre Salazar e Pedro Teotónio Pereira. João Miguel Almeida concretizou a recolha de correspondência trocada entre estas duas figuras do regime de 1945 a 1968. Esta carta não se encontra datada mas foi certamente escrita em 31/10/1961 ou pouco depois."

Eis o texto da carta:

EMBAIXADA DE PORTUGAL

WASHINGTON

Senhor Presidente

Escrevo de corrida porque a mala vai partir.

Muito lhe agradeço o telegrama ontem recebido. O caso dos Metodistas precisa de séria consideração. Não podem ser postos em liberdade depois de todas estas semanas na cadeia e da tempestade que eu tenho aguentado aqui, sem a conclusão natural que só pode ser o julgamento. Temos de os libertar depois de bem provada a culpabilidade, até para a política futura a seguir com esta qualidade de «missionários».

A fita aqui, continua mas mais atenuada e com o Departamento de Estado guardando silêncio prudente.

Com a maior alegria mando a V. Excia o texto do discurso de Williams anteontem à noite em New York. Não o posso traduzir porque chegou agora mesmo o texto completo. Representa indiscutivelmente uma grande mudança. Deixou de falar em self-determination e só usa a expressão self-expression. Tudo indica que estamos em face dum princípio de evolução na sua vinda a público. E é bem significativo que seja o Williams a fazê-lo. Compare V. Excia os termos deste discurso com a conversa de há um mês!

Já deve ter sido transmitido pelas agências mas os resumos são sempre muito insuficientes. Este texto precisava de ser habilmente usado aí em Lisboa sem levar muito longe a nossa satisfação mas aparentando certa confiança num melhor entendimento.

Se não surgir um incidente, pode dizer-se que está estabelecida a ponte.

A pretalhada vai dizer que o Williams os está a atraiçoar.

Vou já prevenir o Franco Nogueira em N. York. Ele vem para aqui em 6 e começará as conversas em 7.

Tenho recebido uma nuvem de cartas de apoio ao meu artigo do United States News de todos os pontos da América.

Jantei anteontem com o Sr. Mikinski que manda cordiais saudações a V. Excia.

Fez excelente serviço aqui a declaração de Delgado acerca de Galvão. A parte relativa ao caso do Santa Maria foi especialmente construtiva.

Respeitosos cumprimentos
PedTheoPereira


(In João Miguel Almeida, António Oliveira Salazar - Pedro Teotónio Pereira. Correspondência Política (1945-1968), Lisboa, Instituto de História Contemporânea. Círculo de Leitores. Temas e Debates, 2008, p. 660.)


Esta carta é na verdade um documento muito interessante, revelando-nos que bastava a um membro da administração americana mudar um pouco a sua linguagem para que um agente diplomático do governo de Lisboa logo pensasse que se estava perante uma importante mudança de política.

A fraqueza estrutural da política externa do governo de Salazar está aqui bem patente. Pela carta se depreende que Teotónio Pereira está de braço dado com o seu Ministro, Franco Nogueira, numa política em que se confundiam os alhos com os bugalhos: os "alhos" eram a política americana de substituição das potências europeias na África Austral, longamente pensada e preparada, e em clara execução pelo menos desde a administração Eisenhower e a independência do Ghana (1957); os "bugalhos" eram as pequenas mudanças de linguagem dos americanos que, naquela conjuntura, não podiam deixar de ser interpretadas à luz dos recentes reveses sofridos em Lisboa e no norte de Angola, num momento em que tinham entre mãos uma nova crise em Berlim.

No segundo semestre de 1961, os americanos estavam com efeito a aliviar a pressão que tinham vindo a fazer sobre o governo de Salazar no sentido da "descolonização", mas havia elementos suficientes para se perceberem as razões dessa nova atitude. Em Abril de 1961, falhara o golpe (com patrocínio americano) do ministro da Defesa, Botelho Moniz, e, em 31 de Outubro (data provável desta carta), os americanos já sabiam que, com as tropas portuguesas a dominarem de novo o norte de Angola (Nambuangongo fora retomada à UPA em Agosto), só depois de ficar aberta a "frente" de Moçambique (e aí as coisas estavam muito atrasadas, com Eduardo Mondlane ainda em Nova Iorque) poderiam voltar a pensar no derrube do governo de Lisboa. Humberto Delgado, bem a salvo no Brasil depois do incidente do «Santa Maria», ficava a aguardar uma conjuntura mais propícia para a detonação. Não tinha Teotónio Pereira informação sobre o que se passava em África e no Brasil?

A "grande mudança" na política americana, assinalada por Teotónio Pereira, não era afinal nenhuma mudança de fundo, limitando-se Williams a substituir a palavra "autodeterminação" por "auto expressão". Se Teotónio Pereira fosse um diplomata atento, teria percebido as implicações militares da crise de Berlim, que estalara em Julho: os americanos poderiam vir a necessitar de utilizar os Açores para transportarem tropas e armas entre os EUA e a Europa. Em 30 de Agosto, com efeito, Kennedy ordenara a mobilização dos reservistas e de mais de 148 mil homens da Guarda Nacional. Naquela altura, bastava ler os jornais para se saber que tinha sido já iniciada a mobilização dos esquadrões de aviação de caça, reconhecimento, e transporte, que vêm a participar na operação "Stair Step".

Outro aspecto interessante desta carta está na linguagem que Teotónio Pereira utiliza a respeito dos nacionalistas negros. Uma linguagem de desprezo, e que afinal escondia um outro erro grave de avaliação. Para o caso, não tinha grande importância o que os dirigentes negros – a "pretalhada" como lhes chama Teotónio Pereira – pudessem dizer. Em 1961, os chamados "movimentos de libertação" estavam ainda sem outros recursos para além daqueles que lhes eram fornecidos por, entre outros, americanos, russos, e chineses; que importância tinha o que dissessem? Era no Conselho de Segurança da ONU que estavam os seus principais patrocinadores. A influência sobre os "movimentos de libertação", e os novos estados africanos, era porém objecto de acesa disputa entre as potências. Se o governo de Portugal pretendia ter alguma influência em África, não seria importante subtraí-los a esse domínio e dependência? Só em finais de 1972, quando estava já perdida a guerra na ONU, é que Spínola enceta contactos com Amílcar Cabral. Foi tarde demais, e de forma bem desajeitada, fazendo com que o nacionalista Cabral pagasse com a própria vida.

Teotónio Pereira escreve que "se não surgir um incidente, pode dizer-se que está estabelecida a ponte." Em finais de 1961, uma ponte ficou na verdade estabelecida entre os governos de Washington e de Lisboa, mas apenas porque os americanos precisavam de uma outra "ponte": a que permitia realizar, sem percalços de maior, o trânsito de aviões e tropas entre os EUA e Berlim Ocidental. Mais tarde, aquela ponte será ainda necessária para o Médio Oriente. Durante a "crise de Berlim", que vem a terminar no Verão de 1962, as bases na Terceira e em Santa Maria terão já intensa utilização: mais de 14 mil descolagens, atingindo-se uma média de cerca de 40 voos por dia. Não havia qualquer exagero quando no Pentágono se dizia então que "a perda dos Açores degradaria seriamente a capacidade de resposta, a prontidão e o controlo de importantes forças dos Estados Unidos".

A política americana para África e Portugal, essa, vai continuar sem alterações de fundo. Até 1964, não houve incidentes de maior e, depois do assassínio de Humberto Delgado, os americanos tiveram que esperar ainda pela morte de Salazar, para poderem começar de novo a pensar num golpe de Estado em Portugal. A geração política encarregada do "25 de Abril" só começa verdadeiramente a despontar em 1969. O apoio americano à UPA e à formação da FRELIMO, esse, vai ainda continuar por muitos anos; até ao fim, no caso da UPA; no caso da FRELIMO, talvez até bem perto do assassínio de Mondlane.

A publicação da correspondência entre Teotónio Pereira e Oliveira Salazar é na verdade um importante contributo para a compreensão da catástrofe que representou a 2ª República portuguesa. Ali existe pelo menos uma carta onde fica atestada a falta de visão e a arrogância de um dos mais destacados membros da sua classe política.


JMQ

(Comentário a carta publicada em Caminhos da Memória)

* * *

6 comentários:

João Miguel Almeida disse...

Excelente comentário. É interessante retomar via blogosfera um contacto há tanto tempo interrompido. Também já fiz a minha incursão no mundo dos blogues e agora estou em fase de «jejum» da blogosfera embora de vez em quando talvez envie um poste para os «Caminhos da memória». Mas vou colocar este blogue nos meus «favoritos» e irei seguindo o que se for escrevendo por aqui.

andre t pereira disse...

Por muitos erros que o Estado Novo tenha cometido,nimguém tem autoridade moral nem politica para o condenar.Principal mente depois de o Senhor e os seus amigos terem aberto a porta a muitos" Holocausto" em Àfrica. È caso para dizer que contra factos não argumentos

José Manuel Quintas disse...

Ao André,
A 2ª República (Estado Novo), entre 1933 e 1974, apesar de ter sempre no poder um partido único que se designava “União Nacional”, e depois “Acção Nacional Popular”, não teve uma só política para os territórios portugueses de África e do Oriente. Entre 1933 e 1951, vingou a política colonialista, a do “Acto Colonial”, uma cópia na letra e na forma da política do "Colonial Act" britânico. Nessa altura, quase todos os portugueses apoiavam a política do governo português, incluindo os comunistas do PCP. Foi nesse tempo que, dentro do regime da 2ª República, mais influência tiveram personalidades como Armindo de Sttau Monteiro e Marcello Caetano, este último como Ministro das Colónias. Porém, em 1951, a política colonial transformou-se em política ultramarina, com o apoio de largos sectores da oposição, com destaque para Norton de Matos e Sarmento Pimentel (Ministro do Ultramar). A ideia era de fazer de Portugal uma "Nação Una", plurirracial e pluricontinental. Marcello Caetano, convertido ao europeísmo racista passou então a chefiar a oposição ao regime, dentro do regime, até que tomou definitivamente o poder na sequência da morte de Oliveira Salazar. Nessa altura, não podendo ser já colonialista, Caetano passou a defender o “federalismo” e as “independências brancas”. Foi esse o projecto, de matriz racista e europeísta, que acabou por falhar em 1974-76.

A carta de Teotónio Pereira, aqui transcrita, é de 1961. Nessa conjuntura, o erro de avaliação de Teotónio Pereira teve duplo aspecto: desprezava os africanos e pensava que os americanos podiam vir a ser nossos aliados na questão ultramarina. Curiosamente, foi esse também o erro mais tarde cometido pelos marcelistas, defensores da integração europeia e das “independências brancas”. Os americanos prometiam então uma renovada amizade, mas apenas para poderem continuar a usar a base das Lajes. Tal como tinham feito no final de 1961. E foi em resultado desse erro de avaliação de Marcello Caetano – o mesmo erro que já fora cometido por Teotónio Pereira - , que as forças da Internacional Socialista (costela americana incluída) conseguiram abrir espaço político para a aliança que se vem a celebrar entre o PCP e o PS, em Paris, decorria já o ano de 1973.

A tragédia - o holocausto dos africanos – decorre directamente do “pacto de 1973”, mas é preciso notar que o projecto europeísta de Marcello Caetano se estava então a afundar, e precisamente por desprezar os africanos e por não ser verdadeiramente apoiado pelos americanos. Desde a independência do Gana, em 1957, que os americanos estavam apostados em algo de essencial para o seu projecto de domínio global: expulsar os europeus de África. Ora, nem Teotónio, nem Marcello, perceberam isso, ao contrário de Mário Soares, que se pôs a jeito.

andre t pereira disse...

E não esquecer que em Abril de 74 os Americanos estão a viver o wataergate e a retirada do Vitname.Não há presidente americano no nosso verão quente.O Ocidente em geral (França ,RU e USA)deixam cair o Império Português nas mãos de Paises da esfera da URSS.O Ocidente está a perder em toda a linha,30% do povo europeu em 72 vota no Partido comunista.
A burguesia em Portugal queria poder já tinha dinheiro e somos um milagre financeiro o 2º a seguir a Singapura.
Resumindo ,morremos na praia.
Mais 5 anos com o Reagen Tatcher e Joaao paulo 2.A historia era outra
Tiveram sorte.O Soares só teve que ir na honda não há duvida que ninguém deu tanto a tantos como o Soares ,não há nimguém directa ou indirectamente no mundo que não tenha dado uma dentada no Imperio Portuguès graças a uma geração que agora reformada matou um pais com 800anos de História.È só ler o Franco Nogeira que ele explica bem que os maiores inimigos de Portugal são alguns portugueses,e verdade seja dita não temos a capacidade de resistencia de um Boeer ou Chileno esses aguentaram a guerra fria e ganharam.Nós Perdemos na secretaria.Graças a si

José Manuel Quintas disse...

Caro André,

Não percebo esse seu "graças a si" do final da sua mensagem.

Graças a mim?... Em Abril de 1974 eu tinha apenas 13 anos e levo já mais de três décadas a procurar entender como e porque é que Portugal entrou nesta "apagada e vil tristeza".

Na verdade, a minha geração abriu os olhos para a cidadania portuguesa no meio de um imenso desastre nacional. Foi essa a herança que recebemos da 2ª República, é certo, mas conto-me entre os portugueses que ainda não desistiram de lutar pela restauração de Portugal. Acredito em Portugal e nos portugueses. E acredito também que os ventos da História não param de soprar e que o futuro continuará a pertencer aos que ousarem içar a vela e navegar.

andre t pereira disse...

Portugal voltou ás fronteiras do sec xiv.Somos a 1ºgeração em 500 anos história que tem que viver neste rectangulo.Tivemos oportunidade de ser ricos e recusámos.Estamos com hábitos de ricos e não somos.Vamos morrer pobres depois da geração que vendeu Portugal morrer e o Senhor quando se reformar não vai ter dinheiro nem para uma aspirina.Sores e companhia levaram tudo com aval do povo português.
Sou novo o sufeciente para ver o povo a fazer uma estátua gigante a Salazar e ver cuspir na campa do Soares.A verdade ás vezes vem ao de cima.Ouviu falar no concurso o grande Português?