segunda-feira, julho 09, 2007

A Constituição que desmente a Europa

por João César das Neves

professor universitário
naohaalmocosgratis@fcee.ucp..pt

A União Europeia planeia um enorme embuste: a aprovação da famigerada Constituição, a mesma que foi chumbada há dois anos. Para isso limita-se a fazer cedências de cosmética e, sobretudo, a conceber uma linha de argumentação que evite os referendos nacionais. Trata-se de uma aldrabice tão grande e evidente que é difícil acreditar que alguém no seu juízo a tente nesta era da informação.

Será pedido às populações europeias que acreditem em várias contradições. Primeiro, que este tratado é novo e diferente do anterior, mas faz exactamente o mesmo. Depois, que se trata de um texto curto e reduzido, embora demasiado grande para ser lido. Além disso, que é indispensável e decisivo na vida da Comunidade, exigindo-se a sua aprovação rápida, mas tão ligeiro e pouco importante que se torna inútil a consulta popular. Não será preciso perguntar, visto toda a gente o apoiar, embora quando se perguntou a resposta fosse negativa. Finalmente, todos devem acreditar que ele consagra os princípios de uma Europa democrática, governada pela vontade popular e respeitadora das diversidades nacionais, embora este mesmo processo seja prova do oposto.

Quem apontar estas contradições é acusado de antieuropeísta, mas são elas próprias os argumentos preciosos para os verdadeiros antieuropeístas, que aí vêem a perversidade da integração. Deste modo os líderes europeus transformam-se nos maiores inimigos daquilo mesmo que pretendem promover. A Europa abandona os seus princípios fundamentais precisamente no momento em que os proclama.

Por coincidência, quem dirigirá a fase final do processo é precisamente o país cuja liderança está ligada a dois dos maiores embustes europeus. No primeiro semestre de 1992 a presidência portuguesa fez assinar a primeira reforma da Política Agrícola Comum, a qual é a principal candidata ao título de maior roubo, desperdício e distorção da CEE. A reforma de 1992 melhorou aspectos pontuais, mas contribuiu para perpetuar a infâmia. Depois, no primeiro semestre de 2000, cá foi assinada a mais patética declaração de incapacidade e menoridade da Europa. A Estratégia de Lisboa marcou as linhas de orientação da década, a que ninguém ligou, e manifestou à evidência as nossas fraquezas e dependências. Agora, a terceira presidência lusa tem de conduzir a suprema impostura constitucional.

Um disparate deste calibre só é possível em circunstâncias bizarras. E essas não faltam à União. O ponto de partida é a supina desconfiança mútua entre dirigentes e cidadãos. Os líderes e funcionários da Comunidade, que têm puxado este processo de integração desde o início, desprezam as populações como ignorantes, chauvinistas e antiquadas. Pelo seu lado, os eleitores há muito deixaram de entender este estranho aglomerado de 27 países, preso numa incompreensível teia de regulamentos. Está completo o cenário para um desastre democrático.

O desastre aconteceu: os burocratas conceberam um texto pomposo e absurdo, que os cidadãos chumbaram e agora os burocratas, revendo-o, insistem que o melhor é o chumbado. A União tem uma longa experiência destas piruetas legais. Há documentos que vigoram numa realidade oposta ao articulado (como o Pacto de Estabilidade), proclamações bombásticas sem substância (Estratégia de Lisboa) e até já foram aprovados textos depois de recusados em referendo (o Tratado de Maastricht na Dinamarca). A construção europeia constitui um incrível amontoado de negociações tortuosas, eufemismos enganadores, cedências comprometedoras, mas até hoje pudicamente encobertas. Desta vez o nervosismo fez perder a vergonha.

A UE tem 27 países, 23 línguas oficiais, três alfabetos e fronteiras da Rússia ao Brasil (na Guiana Francesa). Esta Babel de povos só funcionaria na humildade e pragmatismo do equilíbrio. Os líderes insistem na arrogância do sonho unitário, enquanto os problemas reais - decadência demográfica, desorientação cultural, ambiguidade diplomática - se agravam no mundo global. Depois lamentam a perda de credibilidade das instituições comunitárias.

in Di

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