CARTA DO CANADÁ
por Fernanda Leitão
Tinha Salazar caído da cadeira há uma temporada e vivia-se aquele tempo enervado que por inteiro cabia na corriqueira frase “mas quando é que esta chatice acaba?”, quando apareceu em Lisboa um pitoresco casal de literatos oriundo da alta burguesia do Porto. Ambos bonitos e jovens, ambos vestidos e penteados pelo mais romântico figurino do século XIX, ambos irreverentes e dados a provocar agitação.
Um belo dia convidaram o Chiado em peso, o que incluia territórios tão rapioqueiros como o Bairro Alto, o Rossio e zonas aderentes, para um sarau de poesia na Sociedade de Belas Artes. Caíu lá o Carmo e a Trindade, ao cheiro de uma seroada catita. O salão rebentou pelas costuras e, pelo agitado colorido da multidão, mais parecia o ensaio geral dos comícios políticos a vir. O espectáculo começou por uma saborosa explicação do literato que, nessa noite, parecia arrancado a uma página de Eça de Queiroz: vários declamadores iriam dizer poesia, sem indicar título nem autor, sendo os aplausos cronometrados e assim se apurando o Grande Poeta.
Os declamadores não eram conhecidos mas debitaram com garra um caudal de poemas de que os aplausos eram cronometrados compenetradamente, muito à séria, pelo literato de olho azul, cabelo loiro, barbicha mefistofélica e risinho de má promessa. Quando foi proclamado o resultado final, fiscalizado por uma comissão ad hoc, tinha ganho o poeta Zé dos Anzóis e atirados à humilhação de uma derrota imensa Fernando Pessoa, Almada-Negreiros, Mário de Sá Carneiro e... até Camões. Ainda hoje oiço o berro indignado de Natália Correia, logo abafado pela estrondosa gargalhada da multidão. Era o primeiro sinal de que o povo não se deixa enganar por impostores mal amanhados.
Parece que a BBC levou com ligeireza e sentido de humor o concurso, esse mesmo que, vertido para Grandes Portugueses, tão a sério foi levado em Portugal por aqueles a quem certamente Alexandre O´Neil se referia quando escreveu “Portugal engravatado todo o ano/ a assoar-se à gravata por engano”. Só assim se compreende a gritaria de que a democracia estaria em perigo por terem ocupado lugares de destaque Salazar e Cunhal... Num país de 10 milhões de habitantes no território europeu e cerca de 5 milhões espalhados pelo mundo, 19 mil votos são uma gota de água. E absolutamente esperados de minorias sempre activas e muito mais o são quando se trata de terem alguma visibilidade, enfim aquelas que praticam o voto militante.
Devo confessar que me diverti a ouvir a declaração de amor, em voz empostada, a Cunhal por uma deputada que, visivelmente, gostaria de ter pisado as tábuas do palco do Teatro Nacional no tempo da Senhora Dona Amélia Rey Colaço.
E também devo confessar que fiquei edificada com a evolução de linguagem de Jaime Nogueira Pinto, que eu conheci rapaz salazarista a mil por cento, radical e odiando Marcelo Caetano. Tem agora um discurso de direita ma non tropo, a reconhecer a ausência de liberdades cívicas no anterior regime, que vai bem com a sua anafada postura de instalado na vida. Bourgeoisie oblige.
Os portugueses que estão muito para além dos poucos milhares de votantes nos ditadores Salazar e Cunhal, mais se revêem nos poetas, nos navegadores, nos reis que fizeram grande a nossa terra. Não se duvide que bem sabem como José Júdice acertou ao convocar documentos insofismáveis que provam, uma vez mais, a pior faceta do regime anterior: a hipocrisia, o farisaísmo. Nem se duvide que não esquecem também a falsidade e desamor a Portugal do ditador comunista.
Tirando isto, que é a sério, o resto é para rir. Que país tão engraçado este que em tudo o que cheire a política logo leva a brigas de Sporting-Benfica... Ainda falta um bocado para se chegar à serenidade, à naturalidade, isto é, à democracia digna desse nome.
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