segunda-feira, dezembro 04, 2006

O Parlamentarismo em «As Farpas»

Unica Semper Avis inicia hoje a publicação de excertos de As Farpas de RAMALHO ORTIGÃO e EÇA DE QUEIROZ, CHRONICA MENSAL DA POLITICA DAS LETRAS E DOS COSTUMES.

A jornada vai ser longa, mas vale bem a pena encetar a caminhada, em prol da memória portuguesa, deturpada pelos politicantes que o Estado Novo nos deixou por herança.

Começaremos, naturalmente, pelo tema do dia: as virtudes do parlamentarismo. Para abrir a selecta, situemo-nos em 1873, com epígrafe de Proudhon:


Ironia, verdadeira liberdade! És tu que me livras da ambição do poder, da escravidão dos partidos, da veneração da rotina, do pedantismo das sciencias, da admiração das grandes personagens, das mystificações da politica, do fanatismo dos reformadores, da superstição d'este grande universo, e da adoração de mim mesmo.
P. J. PROUDHON



Tanta palavra dispendida, tanto tempo empregado, tanto dinheiro perdido, tantos suores, tantos gritos, tantos copos de agua desbaratados para se assentar nos termos em que o rei tem de cumprimentar o paiz e em quo o paiz tem de responder aos cumprimentos do rei!

Como se, não havendo principios nenhuns de politica interna que affirmar, não havendo nenhuns factos de politica externa que expender, o que um rei tem que dizer ao povo e o que o povo tem que responder ao rei podesse, sem o mais criminoso abuso das prolixidades rhetoricas, alargar-se d'estes termos.

Discurso da corôa: «Meus senhores, Deus lhes dê muitos bons dias!»

Resposta ao discurso da corôa: «Senhor! Deus lhe dê os mesmos!»

Tudo mais é emphatico, é ôco, é ridiculo - e é immoral.

* * *

Ha um mez inteiro que os srs. deputados, sob o pretexto de accordarem na collocação de um adverbio ou no significado de um adjectivo para a confecção de um periodo banal, se discutem a si proprios; chamam-se reciprocamente desordeiros, calumniadores e ineptos; e documentam e provam entre uns e outros, de partido para partido, que são effectivamente desordeiros, conspiradores, calumniadores e ineptos.
As galerias enchem-se. Enchem-se de uma multidão desoccupada e ociosa, que não vae á camara levada pelas curiosidades scientificas, nem pelos interesses patrioticos. Vae apenas disfructar os contendores, rir-se d'elles, apupal-os no fundo da sua consciencia, e - o que é peior que tudo - preverter-se e desmoralisar-se no contacto da corrupção. Vão vêr a maledicencia dilacerar as reputações, como as féras nos circos romanos dilaceravam os martyres, e aprender no exemplo dos novos gladiadores do decoro a desprezar a honra diante do insulto, assim como nas antigas luctas do gladio se aprendia a desprezar a vida diante da peleja.

Durante este mez as galerias do parlamento estiveram sempre cheias, segundo asseveram os jornaes. Encheram-as empregados publicos que desertaram as suas repartições, litteratos ambiciosos que abandonaram os seus livros, burguezes enfastiados que deixaram o seu trabalho, operarios em grève que foram aprender a discursar nos seus comicios, pretendentes de empregos publicos, que foram examinar os pôdres por onde poderão romper os seus empenhos. E toda esta multidão perigosa, que precisaria de ouvir palavras de moralisação, de trabalho, de dignidade, assiste durante um mez inteiro aos exercicios de uma oratoria rasteira, sem elevação moral, sem correcção artistica, cheia de arrebatamentos estudados ao espelho, de improvisos ensaiados em familia, de coleras sobreposse, de indignações requentadas, de despeitos fingidos. Depois da lucta os athletas, com os colleirinhos abatidos e sujos pelas distillações do suor e das tinturas indeleveis, apertam-se entre si as suas pobres mãos inoffensivas e inuteis, e fazem-se gestos amigaveis, surriadas de bom humôr, piscam-se o olho, deitam-se a lingua de fóra, riem todos, e saem juntos de braço dado, amigos e inimigos, como velhos rabulas amaveis e cynicos, que vão comer juntos o jantar que ganharam descompondo-se em serviço da parte, que ficou na cadeia.

E eis ahi no mais alto das instituições a escola publica em que o povo tem de aprender a ser digno e honrado!

Sem comentários: