terça-feira, novembro 28, 2006

A passeata militar

CARTA DO CANADÁ

por Fernanda Leitão
Recentemente, um grupo de militares andou a manifestar o seu descontentamento pelos vencimentos, promoções e outras razões práticas, na baixa de Lisboa. Uns fardados, outros por fardar, afirmaram que se tratava apenas de uma passeata – o que não convenceu ninguém nem contribuíu para a sua representatividade das Forças Armadas. Como em Portugal as pessoas que menos gostam de fardar-se são os militares e os padres, bastou haver naquele grupo um número não dispiciendo de fardados para a opinião pública concluir que era, de facto, demonstração hostil e de força. De penitência é que não era certamente...
A coisa passou-se perante a indiferença da população civil, o que não é dizer pouco num país que foi forjado, desde a primeira hora, por militares, frades, nobres e arraia miúda com desejo de se pôr independente de Castela-a-Falsa. Mas o tempo desgasta tudo e as coisas são o que são: depois da “descolonização exemplar”, como lhe chamou um burguês internacionalista, a população civil congelou o seu afecto pelos militares, já arrefecido pelo papel de pretorianos que desempenharam durante a ditadura salazarista. A televisão fez o resto. Quem é vai esquecer a “debandada de pé descalço”, como um historiador de esquerda chamou à tal descolonização, com militares a arrastarem a bandeira nacional, ou com ela debaixo do braço à laia de farrapo, com militares em cuecas, com militares que atiravam as armas (pagas pelo povo) pela borda fora das naus do regresso? Quem é que vai esquecer os juramentos de bandeira feitos com o punho fechado, os gangs de militares bandeados com revolucionários de vários países invadindo e ocupando as propriedades agrícolas, primeiro, e depois até prédios das grandes cidades, e até mesmo parques industriais? Quem consegue esquecer os gangs armados, comandados por um militar que não passa de um caso de polícia, responsáveis por assaltos a bancos, ataques à bomba e homicídios?
Tudo isto aconteceu sem que miliares tivessem saído à rua gritando sem medo: “não foi para isto que se fez o 25 de Abril”. Calaram-se. Ou foram para Espanha dar um espectáculo desconchavado de desorganização. Ou foram para o Brasil. Deixaram a resistência a cargo dos civis. Não exigiram, nem que fosse a murro, que justiça fosse feita e os traidores tivessem sido postos fora das fileiras. Pelo contrário, todos eles estão a receber melhores pensões do que o comum dos civis e têm todos os direitos e mais um.
Como nunca foi feita justiça, como está tudo nesta mistura nauseabunda, a população civil vira ostensivamente as costas aos militares. Ignora-os. Sabe, vagamente, que neste tempo de guerras um pouco por toda a parte, com as quais Portugal tem pouco ou nada a ver, os soldados vão de boa vontade para essas guerras ganhar a vida desse modo. É tudo. E tudo embrulhado no politicamente correcto da estafada civilização ocidental.
Desfazer esta mistura, este mal entendido, devia ser a causa primeira dos militares. Andar a fazer passeatas pela baixa, em desobediência clara ao governo civil e às chefias do estado maior das Forças Armadas, é mais uma prova de que têm razão os civis que, desde 1975, dizem que não foi para isto que se fez o 25 de Abril.

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