quarta-feira, dezembro 20, 2006

Documentos do Arquivo Secreto Vaticano

Documentos do Arquivo Secreto Vaticano sobre II República e Guerra Civil espanhola

Entrevista ao sacerdote e historiador Vicente Cárcel Ortí

ROMA, terça-feira, 19 de dezembro de 2006 (ZENIT.org).- Estão injetando «muito veneno» no corpo da Espanha: é a constatação que faz à agência Zenit o sacerdote e historiador espanhol Vicente Cárcel Ortí, que na terça-feira passada falou em Roma sobre os novos documentos do Arquivo Secreto Vaticano que oferecem uma luz sobre a etapa da II República Espanhola e a Guerra Civil (1931-1939).

Cárcel Ortí ofereceu uma conferência no Centro de Estudos Eclesiásticos -- ligado à Igreja de Santiago e Montserrat -- sobre esse período histórico preciso de divisão na Espanha e de perseguição religiosa à luz de novos achados nos Arquivos Vaticanos, de recente abertura por decisão de Bento XVI.

Desde 18 de setembro, a documentação relativa ao pontificado de Pio XI (6 de fevereiro de 1922 – 10 de fevereiro de 1939) está à disposição dos historiadores. Cárcel Ortí foi o primeiro espanhol que esse mesmo dia começou a examinar estes textos com o fim de publicá-los na íntegra nos próximos anos em uma obra dividida em vários volumes, que se titulará «Documentos do Arquivo Secreto Vaticano sobre a Segunda República e a Guerra Civil» (1931-1939).

Vicente Cárcel Ortí, natural de Manises (Valência), foi Chefe da Chancelaria do Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica até o ano passado, em que se aposentou voluntariamente para dedicar-se à pesquisa histórica e ao ministério pastoral em uma paróquia romana.

Também é atualmente Vigário Episcopal para os sacerdotes valencianos residentes em Roma. Desde 1967, vive no Colégio Espanhol da capital italiana.

--Estes documentos vaticanos concernentes à história da Espanha, em concreto da Igreja, ofereceram surpresas?

--Carcel Ortí: Mais que surpresas, ofereceram dados até agora desconhecidos para precisar alguns pontos polêmicos e discutidos, que devem ser esclarecidos e reforçam a tese de que a República atacou abertamente a Igreja e os católicos e de que o Vaticano aconselhou sempre moderação e prudência para não provocar males maiores, sobretudo quando começou a perseguição religiosa.

--Brevemente, qual era a situação da Igreja durante a II República e durante a Guerra Civil espanhola?

--Carcel Ortí: A Santa Sé reconheceu imediatamente a República e pediu aos bispos e católicos em geral que a aceitassem lealmente e colaborassem com ela pelo bem comum de todos os espanhóis.

A Igreja demonstrou muita paciência ao suportar a política abertamente hostil, discriminatória e humilhante dos republicanos, que violaram o primeiro e fundamental dos direitos humanos, que é a liberdade religiosa.

Quando começou a Guerra Civil, a Santa Sé continuou reconhecendo a República como governo legítimo da Espanha, e somente em maio de 1938 decidiu reconhecer o Governo nacional, ainda que com muitas reservas, devido às infiltrações de paganismo nazista na ideologia da Falange; mas então a República havia perdido muito crédito no âmbito internacional. De fato, outras nações começaram a reconhecer o novo regime e a enviar embaixadores a Franco.

Os bispos demoraram exatamente um ano em pronunciar-se, com a carta coletiva de 1º de julho de 1937, a favor dos nacionais; mas para essa data, já haviam sido assassinados mais de quatro mil sacerdotes e religiosos.

--O senhor fala de «holocausto de sacerdotes, religiosos e católicos» entre 1936 e 1939. Holocausto?

--Carcel Ortí: Certamente, porque estava programada a destruição total da Igreja em seu conjunto, e aí estão os dados que demonstram isso.

Não só foram assassinados milhares de sacerdotes, religiosos e católicos por motivos de fé, mas também milhares de templos foram destruídos e incendiados, e com eles desapareceu para sempre um ingente patrimônio histórico, artístico e cultural que nunca mais voltaremos a ver.

O ministro republicano da Justiça, Manuel de Irujo, denunciou, em um Conselho de Ministros a princípios de 1937, que a República se havia convertido em um «regime verdadeiramente fascista, porque cada dia a consciência individual dos crentes era ultrajada pelas forças do poder público».

E o professor Dominguez Ortiz escreveu: «A perseguição à Igreja foi, além de uma atrocidade, um tremendo erro, e dos que mais prejudicam a causa republicana. Por isso, não têm razão os que hoje exigem da Igreja que peça perdão por isso; não têm razão porque não é lógico que as vítimas peçam perdão aos verdugos». Refere-se ao apoio da Igreja aos nacionais, porque os republicanos realizaram uma perseguição de morte.

--Ser imparcial quando se fala de guerra, por exemplo, da Guerra Civil espanhola, é possível e desejável?

--Carcel-Ortí: É desejável, mas muito difícil, porque custa muito admitir as razões do outro.

Devemos fazer, todos, um grande esforço, setenta anos depois, apesar da parcialidade inerente em cada pessoa, para reconhecer que, entre tantos vícios e defeitos, republicanos e nacionais também tinham algumas virtudes: a sagacidade, a valentia, o vigor e a lealdade a seus próprios ideais políticos.

--Há quem compara os anos da República espanhola com a política hostil e discriminatória dos católicos na Espanha de hoje. Exageros?

--Carcel Ortí: Estão se repetindo pontualmente muitos dos erros que levaram fatalmente à divisão trágica dos espanhóis, porque não se busca a concórdia, mas a confrontação aberta,; não a tolerância, mas o totalitarismo ideológico; não a democracia, mas a partidocracia; não o respeito das idéias e símbolos cristãos, mas a ofensa permanente dos mesmos. E isso cria divisão.

Desenterram mortos com fins políticos e não podemos continuar vivendo de cadáveres, que alimentam polêmicas infinitas e, com freqüência, indecentes.

O passado é passado. Não o liquidemos, não o arquivemos, mas não o usemos mais uns contra outros, para sustentar as teses de que gostamos ou que nos acomodam, nem para condenar as que não coincidem com as nossas ou as contradizem.

A razão não estava em uma parte e o erro em outra: esta é uma visão maniqueísta, falsa e inaceitável. Bons e maus, valentes e covardes militaram em um e outro bando. Mas tudo isso já passou e não deve repetir-se nunca mais.

Mas agora se está injetando de novo muito veneno no corpo de uma Espanha que durante o qüinqüênio republicano dividiu profundamente os cidadãos e, depois de uma guerra terrível, após quarenta anos, não conseguiu reconciliá-los.

A Transição o tentou, mas agora voltamos a ter uma Espanha dividida em facções rancorosas e litigiosas. E não podemos continuar vivendo assim.


ZP06121908

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