quinta-feira, dezembro 14, 2006

O assassínio do rei D. João VI (1826)

Com a devida vénia a Manuel Azinhal, aqui se reproduz uma importante chamada de atenção aos historiadores portugueses:

O outro regicídio "Já aqui [http://viriatos.blogspot.com/] tinha chamado a atenção para um trabalho colectivo que encontrei na rede intitulado "CAUSAS DE MORTE DE D. JOÃO VI" (no sítio dedicado a São Vicente de Fora).

Repito o alerta, agora movido pelas leituras de uns alfarrábios que me ocuparam este domingo.

O trabalho em causa é de extraordinário interesse para quem se interessa pela história política daquele período conturbado. Constitui um contributo de ora em diante impossível de ignorar em debates que se arrastam desde 1826.

Nem o título dá uma medida aproximada da sua importância: na verdade não se trata apenas das causas da morte de D. João VI, onde traz uma confirmação decisiva sobre a velha suspeita do homicídio por envenenamento. Por arrastamento faz também luz sobre a questão da data da morte, que desde esses dias se suspeitava não ser a anunciada. E continuando entra inevitavelmente na questão da autenticidade da carta régia de 6 de Março, publicada a 8 de Março, em que era indigitada a Infanta Isabel Maria para Regente do Reino... Se sempre tinha havido a dúvida sobre a sua autenticidade, este estudo, o clínico e o grafológico, apontam num sentido inequívoco: não é do Rei aquela rúbrica, e naquela data o Rei já estaria morto. O que torna perfeitamente lógico o arrastar do anúncio do óbito: era preciso forjar o documento (a 6) e publicá-lo (a 8, na Gazeta de Lisboa) e só depois podia o Rei morrer - no dia 10 troaram os canhões de São Jorge e a notícia tornou-se oficial. Mas depois deste estudo restam poucas dúvidas: o Rei ou morreu logo a 5, não resistindo ao envenenamento por arsénico sofrido a 4, ou morreu na madrugada de dia 6, como afirmaram poucos dias depois manifestos de origem realista que circularam em Lisboa. Temos assim presentes um regicídio seguido de um golpe de estado constitucional, que se concretizou nos dias seguintes, com a elaboração do documento para afastar a regência das mãos a quem ela cabia, e conseguir depois decidir a sucessão, através da constituição apressada de um Conselho de Regência de estranha composição, e com a imediata partida para o Brasil, no dia 12, dos representantes desse Conselho a suplicar a vinda de D. Pedro - que ainda pouco antes jurava ser estrangeiro e desejar ser tratado como se o tivesse sido sempre...

Creio bem que os autores deste trabalho, até pela respectiva formação ser de outras áreas científicas, não se deram conta das implicações históricas do que fizeram constar nas suas conclusões.

Mas o que ali está escrito não pode passar despercebido a quem tenha a paixão da História, e de Portugal. Uma semana decisiva da História de Portugal passa a estar esclarecida de um modo impossível de antever ainda há poucas décadas."



Os estudos em referência estão disponíveis em

http://www.fam.org.pt/web/paulomiranda/SVicente/DJoaoVI/DJVI01.htm">http://www.fam.org.pt/web/paulomiranda/SVicente/DJoaoVI/DJVI01.htm

(Já não estão disponíveis on-line nesse espaço. Tivemos conhecimento deste facto em 11.7.2007.)

Perante uma dúvida levantada, Manuel Azinhal respondeu:

Ainda a morte de D. João VI

O estimado e admirado JM deixou um comentário ao meu apontamento sobre a morte de D. João VI que se traduz em recordar a dúvida sobre a autoria: sempre os malhados podiam retorquir a qualquer suspeita contra eles lançada que os homicidas tinham sido os corcundas, e com efeito também esse rumor foi posto a correr na época.
Como a discussão é susceptível de interessar a mais gente, respondo aqui a essa observação (caso o JM pretenda usar da mesma faculdade tem esta casa ao seu dispor, e muito a valorizava).

Já que me espicaçou, agora atura-me.

Com todo o respeito pelo ilustre interpelante, nesta questão não parece haver fundamento para grandes dúvidas.

A haver crime, e era só o que se punha em dúvida, na situação então existente só o podiam ter cometido os que tinham o Rei inteiramente à sua mercê e nas suas mãos.

O rumor sobre os "corcundas" surgiu tardiamente, e claramente em contra-ofensiva.
Mas nunca foi levado a sério por ninguém: repare-se que os factos a que eu aludi só poderiam ser praticados por quem dominasse o "palácio".

E a intencionalidade desses factos resulta clara e iniludível: afastar a Regência de D. Carlota Joaquina, e afastar da sucessão o Infante D. Miguel.

Nem a Rainha, completamente incomunicável no Ramalhão, nem o Infante, então no exílio, podiam ter mantido o Paço de Bemposta em isolamento total e ir elaborando as informações diárias sobre o estado de saúde do Rei, e ainda para mais mandar fabricar um documento que impunha uma Regência contra as normas até aí conhecidas e que obviamente visava mantê-los para sempre afastados do poder. Nem certamente o publicariam na Gazeta oficial…

Os autores e executores do plano foram logo em cima do acontecimento apontados ao público: Lacerda, Barradas e Rendufe, que eram quem tinha as chaves e o poder para comandar estes acontecimentos. O Rei era um refém na Bemposta, ninguém tinha nem teve acesso a ele durante esse período.

Quanto ao documento em que tudo indica residir o essencial da questão, até correu a identidade do autor material da falsificação: terá sido um funcionário do Ministério da Justiça de nome José Balbino. O que bate certo com o pormenor de ser Ministro da Justiça precisamente o referido Barradas.... e bate certo também com a conclusão do exame grafológico quando este diz que a rúbrica foi feita por mão habituada ao uso do aparo, e hábil no ofício, e não condiz nem com a escrita do Rei nem com a imperfeição manual de um moribundo.

Pode objectar-se, e pensei nisso, que quem praticou o envenenamento foram uns e quem a seguir executou o golpe foram os outros. Teria a sua lógica, já que a morte súbita do Rei teria a consequência de chamar à Regência a Rainha, numa reviravolta dramática na situação política: Carlota Joaquina passaria repentinamente de uma situação de prisão domiciliária para o poder, e o governo recente teria que fugir de rabo enrolado. E D. Miguel viria do estrangeiro para reunir Cortes e ser aclamado como Rei. Portanto, o poder que foi surpreendido pela morte do Rei teria sido obrigado a congelar a notícia por uns dias para remediar a situação, elaborar a Carta Régia que indigitava uma Regência anómala e abrir caminho para ir chamar D. Pedro.

Mas mesmo esta hipótese não se apresenta nada provável. A este respeito, como facto interessante, refira-se que pela correspondência do Núncio de então verifica-se que o Rei andava a insistir na "reconciliação" com a Rainha; traduzindo a expressão pode calcular-se o que isto queria dizer em termos políticos para o governo em funções. Também várias fontes referem que o Rei, desgostado pelo desfecho das negociações que conduziram ao reconhecimento da Independência do Brasil, em que dizia ter sido levado a assinar como coisa consumada documentos que não correspondiam à sua vontade, manifestava cada vez com mais insistência a preocupação com o problema dinástico; e propunha-se organizar o regresso de D. Miguel do exílio. Atente-se em que depois de assinados os tratados com o Brasil a situação de D. Pedro aparentava estar esclarecida e consumada, era um Imperador de uma potência estrangeira e abdicava expressamente de quaisquer direitos em Portugal. O Infante D. Miguel era o único filho que restava, afigura-se inevitável que o Rei, como outro qualquer nessa situação, pensasse na sucessão.

Tudo visto, parece poder concluir-se que os governantes de então andavam justificadamente aflitos: se deixassem andar a carruagem teriam previsivelmente que suportar de novo a Rainha e o Infante, que tanto lhes tinha custado a anular.

Acrescento o pormenor curioso do relato do embaixador britânico sobre a sua visita de condolências à Rainha, uns dois meses depois, no Ramalhão, em que este menciona que a Rainha lhe afirmou ter informações de que o Rei tinha sido envenenado com "água tofana". Parece condizer com as descobertas científicas, porque "água tofana" é um composto de arsénico. A Rainha estava prisioneira, mas ainda assim teria os seus informadores. O povo dizia que tinha sido nas laranjas, mas esse pormenor nunca o saberemos; todavia, o que resultou do exame às reais vísceras é que foi na realidade arsénico.

Em resumo: neste caso, face ao que é certo e conhecido, não parece possível defender com um mínimo de seriedade a responsabilidade da Rainha e do Infante, que estavam em posição tal que nunca lhes seria possível executar este golpe, e foram notoriamente os alvos do mesmo.

Quanto ao episódio que conta, de D. Pedro, deixo só uma pergunta: se ele pensava que o pai tinha sido assassinado porque não pediu contas aos seus amigos que tinham assinado todos os comunicados e proclamações sobre a doença e a morte natural? Pelo contrário, todos passaram muito bem. Rendufe ainda passaria de Barão a Conde.

E essa intenção de se vingar de um irmão assassino é compatível com as atitudes de promover o casamento dele com sua filha, Rainha, e de o fazer regressar do exílio para essa função de príncipe consorte? A historieta parece fantasiosa. Acrescento aliás que sobre essa questão não conheço qualquer pronunciamento de D. Pedro que contrariasse a versão oficial.

E de igual modo sempre foi a versão oficial a proclamada pelos responsáveis liberais. De tal maneira que mesmo muito mais tarde, já em 1870 ou 71, quando o jornal miguelista "A Nação" voltou à carga com as acusações que acima referi a única reacção pública foi uma declaração de Saldanha anunciando que estava disposto a juntar-se ao então Duque de Palmela caso este decidisse processar o jornal por caluniar o nome do pai. Para o velho Saldanha o confronto era entre a verdade oficial (morte por doença) e a calúnia miguelista (o envenenamento pelo poder palaciano). Nada mais se discutia (e por sinal que não houve processo nenhum).


A sua síntese é excelente!, meu caro Manuel Azinhal.

JMQ

1 comentário:

Pedro Silva disse...

Os autores do trabalho intitulado as CAUSAS DE MORTE DE D. JOÃO VI desencadearam esse estudo estimulados por diversas razões, sendo a principal a certeza de que poderia contribuir para virar uma página da história de Portugal. Já um anterior trabalho nosso subordinado ao título CAUSAS DE MORTE DE DAMIÃO DE GOES pretendeu alcançar exactamente o mesmo objectivo.
Relativamente a D. João VI conseguiu-se cruzar três informações de natureza e origem totalmente diversa mas que convergem para o mesmo resultado: a confirmação das causas de morte. Estas três vertentes são, muito sucintamente: o relato do cronista do reino, o exame médico e antropológico forense e o exame grafológico ao célebre decreto. Parece-nos muito óbvio que só por acaso ninguém iria cruzar este tipo de informação sem ter a certeza do contributo que esta descoberta traria para a historiografia nacional.
O trabalho está, neste momento (Fevereiro de 2009), editado em Portugal, podendo ser adquirido na Livraria Portugal, Rua do Carmo, 70, Lisboa, ou na Livraria Municipal, Avª da República, Lisboa. Trata-se de uma edição da Câmara Municipal de Lisboa, na comemoração dos 200 anos da chegada de D. João VI ao Brasil.

Qualquer informação que seja possível disponibilizar poderá ser solicitada ao coordenador científico do trabalho através do mail rodriguesferreira@sapo.pt
Atentamente
F.E.Rodrigues Ferreira