quinta-feira, dezembro 22, 2005

A pureza do artificial

por Nuno Pombo


Parece-me que os Portugueses, fartos de viver o Presente, ignoram o Passado para se agarrarem ao Futuro. Só aparentemente este sentimento é sinal de esperança. Não cravamos os olhos no Futuro como testemunho de Fé em nós próprios e no que somos capazes de fazer. Pomos os olhos além do tempo para que eles não nos castiguem com o que lobrigam aqui, agora. O Futuro que fingimos fitar não é senão a desistência do Presente e o esquecimento do Passado. E o Passado que a nossa Pátria edificou foi honroso e digno, sendo que o politicamente correcto já não nos impede de dizer isto mesmo. Honroso porque nos permitiu ser credores do unânime reconhecimento dos demais Povos, digno porque foi fruto de nós mesmos. Da nossa coragem, da nossa valentia. Da nossa vontade. Do nosso espírito e da nossa Fé. Cobardes sempre os houve, também entre nós. Desertores sempre existiram. Traidores também. Mas as excepções sempre visaram a confirmação das regras. E a nossa regra sempre foi outra.
Não vou cometer a desonestidade intelectual de considerar que o estado de alma que atravessamos é resultado da miseranda implantação da república. Mas não assino o dislate de pensar que a forma como nos organizamos politicamente é indiferente. Na verdade, penso que os próceres republicanos, do alto da sua ingente demagogia, aprisionaram-nos numa redoma estéril de uma representação juridicamente pura mas completamente artificial. E os Portugueses, de há muito a esta parte, dançam a música que lhes tocam e não se dão ao trabalho de constatar que os músicos, por muito boas pessoas que possam ser, e alguns serão, são péssimos, na medida em que não servem a necessária Restauração de Portugal, e a canção, estridente, é um chilrear de interesses inconfessados, assobiado por famintas clientelas várias. Os Portugueses, ao que parece, cansaram-se. Desistiram de querer mais e melhor.

A representação nacional oferecida pelo sistema republicano é, como disse, juridicamente pura. Aliás, não são poucos os juristas que se deixam encadear pela ideia de que, por decreto, tudo se resolve. Do insucesso escolar à Religião, tudo o decreto pode abolir. Mas o decreto é bem mais destro a extinguir, a obliterar, a suprimir do que a edificar, a erigir, a construir. A pureza jurídica desta representação não resulta apenas do sufrágio directo e universal mas sobretudo da capacidade eleitoral passiva. Todos podemos ser chefes do Estado. Esta asserção é inebriante e só aparentemente generosa, porque com ela não se quer elevar todo e qualquer um à suprema magistratura do País, pretendendo-se apenas franquear as suas portas a um punhado de notáveis cujo mérito, nalguns casos, mais frequentes do que a dignidade de Portugal faria prever, é mais do que duvidoso.

Evidente que esta chispa romântica perde o calor e brilho na crua fogueira das evidências. Nem todos podem ser chefes do Estado. Só aqueles que, nos partidos, fazem carreiras brilhantes podem ambicionar (e como ambicionam) esse estatuto. Basta recordar os principais candidatos presidenciais. Todos foram, (ou são!!!) chefes de partidos. Todos menos um, que bem tentou sê-lo, mas agora poeticamente transforma a pretérita derrota em trunfo eleitoral. Por isso, essa representação, sendo pura, será sempre artificial. Como podem os chefes dos partidos esquecer durante uns tempos essa qualidade e assumirem-se como imparciais intérpretes das angústias nacionais? Até quando vamos continuar condenados à pureza do artificial?


Texto publicado no Diário Digital em 21 de Dezembro de 2005

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