quinta-feira, junho 30, 2005

NO FIO DA NAVALHA

CARTA DO CANADÁ

por Fernanda Leitão

O governo minoritário do Canadá, liberal e presidido por Paul Martin, exigiu o prolongamento das sessões parlamentares por entender que era urgente, prioritário e importante votar a proposta de lei sobre o “casamento” dos gays. A lei foi aprovada por 158 votos a favor e 133 contra, tendo-se abstido 25 deputados liberais, faltado 5 da mesma bancada e pedido a demissão um ministro. Os votos a favor foram do Partido Liberal, do Bloc Quebequois (separatista) e do New Democratic Party (socialista). Por conseguinte, os únicos que votaram contra foram os do Partido Conservador.
Esta foi a quadragésima vitória de um governo que, por ser minoritário, tem sido alvo de uma marcação cerrada por parte das oposições. Mas esta vitória foi obtida ao arrepio das grandes religiões monoteístas – cristã, maometana e judaica – que, antes e depois da votação, se manifestaram de modo incisivo quanto ao insulto feito ao casamento de homens e mulheres, uma instituição milenar com foros de sacramento.
A excepção foram franjas residuais de alguns credos protestantes que, servidos por folclóricos pastores agindo em causa própria, têm realizado “casamentos” entre pessoas do mesmo sexo, depois difundidos pela comunicação social. Paul Martin, o primeiro ministro, justificou a lei e a pressa afirmando que o Canadá é feito por minorias e que estas devem ser respeitadas, o que parece uma empatia de minoritário por minoritário, já que, as estatísticas o provam, há no território nacional todo 3% de homossexuais e lésbicas.
Nunca a legalização da união de facto de gays foi contestada, sendo geralmente aceite que os parceiros teriam iguais direitos sociais. O que sempre dividiu a opinião pública foi o “casamento”. De tal modo a animosidada pública era visível que o primeiro ministro anterior, Jean Chrétien, também liberal e velha raposa política, passou o caso ao Supremo Tribunal, no que foi entendido como um ganhar de tempo por estar a terminar o mandato e uma rasteira ao novo governo deixando-lhe a batata quente. A magistratura, repetindo Pilatos, afirmou não ter competência para resolver aquilo que só ao parlamento federal incumbia.
Assim se chegou à aprovação de uma lei que, curiosamente, tem contra si muitos homossexuais de boa educação e vida discreta. O governo não aceitou a sugestão de um referendo nacional que lhe foi feita pelos representantes de várias religiões. A opinião pública acha que, em referendo, a lei não seria aprovada. Está, pois, aberta a porta a uma contestação elaborada em profundidade, olhos postos nas próximas eleições federais. E é aí que já soam as campaínhas de alarme. Estando as religiões dispostas a lutar contra a lei e tendo o Partido Conservador garantido que vai ser o seu leit motiv nas eleições que aí vêm, não se estranhará que, horas depois da votação, os evangélicos tenham vindo a público afirmar que apoiariam quem estivesse disposto a derrubar esta lei que consideram iníqua.
Em resumo: se o povo não tiver serenidade, se der largas aos impulsos emocionais, o Canadá pode vir a ter um regime como o dos americanos, uma cega união entre religião e política. Só não terá se, acima de tudo, lembrar a antipatia que tem pelo regime político do vizinho sul e a completa aversão pelo líder dos conservadores, Steven Harper, a quem sem cerimónia nenhuma chamam de “fascista”.
Esta nova lei vai trazer tempos intensos e agitados ao Canadá. E por esse domingo podemos tirar os dias santos do que, dentro de poucos anos, será o entupimento dos tribunais com pedidos de divórcio e o seu cortejo de partilhas, pensões de alimentos, brigas descomunais. Vai ser um ensaio geral do dia de juízo. Dentro de cinco anos, no máximo, não haverá gay que queira casar por ter aprendido na pele o que isso custa. E se assim for, terá acertado em cheio um sacerdote de uma secularmente prestigiada ordem religiosa que mo disse a rir, numa das conversas que temos ao longo do ano...
Para já, calhando, vai aumentar o turismo. Quando as uniões de facto eram reconhecidas no civil, com papel passado, pela City Hall de Toronto, foi um mundão de candidatos que aí apareceram vindos dos Estados Unidos da América e doutros países. Até duas bombeiras de Leiria vieram a Toronto com esse fim. Vai ser bonito agora...

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