CARTA DO CANADÁ
por Fernanda Leitão
O governo minoritário do Canadá, liberal e presidido por Paul Martin, exigiu o prolongamento das sessões parlamentares por entender que era urgente, prioritário e importante votar a proposta de lei sobre o “casamento” dos gays. A lei foi aprovada por 158 votos a favor e 133 contra, tendo-se abstido 25 deputados liberais, faltado 5 da mesma bancada e pedido a demissão um ministro. Os votos a favor foram do Partido Liberal, do Bloc Quebequois (separatista) e do New Democratic Party (socialista). Por conseguinte, os únicos que votaram contra foram os do Partido Conservador.
Esta foi a quadragésima vitória de um governo que, por ser minoritário, tem sido alvo de uma marcação cerrada por parte das oposições. Mas esta vitória foi obtida ao arrepio das grandes religiões monoteístas – cristã, maometana e judaica – que, antes e depois da votação, se manifestaram de modo incisivo quanto ao insulto feito ao casamento de homens e mulheres, uma instituição milenar com foros de sacramento.
A excepção foram franjas residuais de alguns credos protestantes que, servidos por folclóricos pastores agindo em causa própria, têm realizado “casamentos” entre pessoas do mesmo sexo, depois difundidos pela comunicação social. Paul Martin, o primeiro ministro, justificou a lei e a pressa afirmando que o Canadá é feito por minorias e que estas devem ser respeitadas, o que parece uma empatia de minoritário por minoritário, já que, as estatísticas o provam, há no território nacional todo 3% de homossexuais e lésbicas.
Nunca a legalização da união de facto de gays foi contestada, sendo geralmente aceite que os parceiros teriam iguais direitos sociais. O que sempre dividiu a opinião pública foi o “casamento”. De tal modo a animosidada pública era visível que o primeiro ministro anterior, Jean Chrétien, também liberal e velha raposa política, passou o caso ao Supremo Tribunal, no que foi entendido como um ganhar de tempo por estar a terminar o mandato e uma rasteira ao novo governo deixando-lhe a batata quente. A magistratura, repetindo Pilatos, afirmou não ter competência para resolver aquilo que só ao parlamento federal incumbia.
Assim se chegou à aprovação de uma lei que, curiosamente, tem contra si muitos homossexuais de boa educação e vida discreta. O governo não aceitou a sugestão de um referendo nacional que lhe foi feita pelos representantes de várias religiões. A opinião pública acha que, em referendo, a lei não seria aprovada. Está, pois, aberta a porta a uma contestação elaborada em profundidade, olhos postos nas próximas eleições federais. E é aí que já soam as campaínhas de alarme. Estando as religiões dispostas a lutar contra a lei e tendo o Partido Conservador garantido que vai ser o seu leit motiv nas eleições que aí vêm, não se estranhará que, horas depois da votação, os evangélicos tenham vindo a público afirmar que apoiariam quem estivesse disposto a derrubar esta lei que consideram iníqua.
Em resumo: se o povo não tiver serenidade, se der largas aos impulsos emocionais, o Canadá pode vir a ter um regime como o dos americanos, uma cega união entre religião e política. Só não terá se, acima de tudo, lembrar a antipatia que tem pelo regime político do vizinho sul e a completa aversão pelo líder dos conservadores, Steven Harper, a quem sem cerimónia nenhuma chamam de “fascista”.
Esta nova lei vai trazer tempos intensos e agitados ao Canadá. E por esse domingo podemos tirar os dias santos do que, dentro de poucos anos, será o entupimento dos tribunais com pedidos de divórcio e o seu cortejo de partilhas, pensões de alimentos, brigas descomunais. Vai ser um ensaio geral do dia de juízo. Dentro de cinco anos, no máximo, não haverá gay que queira casar por ter aprendido na pele o que isso custa. E se assim for, terá acertado em cheio um sacerdote de uma secularmente prestigiada ordem religiosa que mo disse a rir, numa das conversas que temos ao longo do ano...
Para já, calhando, vai aumentar o turismo. Quando as uniões de facto eram reconhecidas no civil, com papel passado, pela City Hall de Toronto, foi um mundão de candidatos que aí apareceram vindos dos Estados Unidos da América e doutros países. Até duas bombeiras de Leiria vieram a Toronto com esse fim. Vai ser bonito agora...
Nos liberi sumus; Rex noster liber est, manus nostrae nos liberverunt... [Nós somos livres; nosso Rei é livre, nossas mãos nos libertaram...]
quinta-feira, junho 30, 2005
NO FIO DA NAVALHA
sexta-feira, junho 24, 2005
24 DE JUNHO - DUAS EFEMÉRIDES
Hoje, 24 de Junho, é dia de São João Baptista. E, na História de Portugal, há pelo menos duas efemérides a não esquecer:
- Recontro de São Mamede (1128).
- Nascimento de D. Nuno Álvares Pereira (1360).
Celebrando tais acontecimentos marcantes da nossa História, editamos hoje um breve texto de Henrique Barrilaro Ruas refutando a ideia de que D. Afonso Henriques teria batido na Mãe.
http://www.lusitana.org/il_br_1999_afonso_henriques.htm
- Recontro de São Mamede (1128).
- Nascimento de D. Nuno Álvares Pereira (1360).
Celebrando tais acontecimentos marcantes da nossa História, editamos hoje um breve texto de Henrique Barrilaro Ruas refutando a ideia de que D. Afonso Henriques teria batido na Mãe.
http://www.lusitana.org/il_br_1999_afonso_henriques.htm
domingo, junho 19, 2005
IMIGRAÇÃO= PÃO E JUSTIÇA
CARTA DO CANADÁ
por Fernanda Leitão
O século XX, devido a guerras e revoluções, originou os maiores movimentos migratórios de sempre, a deslocação de milhões de pessoas que, acossadas pela violência ou pela fome, partiram para onde julgaram encontrar segurança e pão. Foi assim na Europa, na África, na Ásia, na América Latina. Esta foi, sem dúvida alguma, a mais pesada herança recebida pelo séxulo XXI, a par dos crimes ecológicos perpetrados por países dominados pelo obscurantismo e ela ganância pura e simples. Os organismos internacionais, em que todas as nações estão representadas, mal puderam usar os mecanismos básicos da justiça que deveria ser imposta aos países prevaricadores porque se viram literalmente inundados por milhões de desalojados famintos, despojados do que de mais elementar é dado ao homem para sobreviver.
Essas multidões de deserdados têm rumado a países mais prósperos e seguros, onde deitaram raízes e construíram a vida, porque as organizações internacionais e as chamadas grandes potências mundiais não souberam, ou puderam, evitar o êxodo promovendo o desenvolvimento, económico e social, nos países em crise. Em vários países ditos desenvolvidos, o capitalismo selvagem viu com gula a chegada dessa mão de obra faminta e pouco exigente quanto a condições de vida. Foi assim que, em vários países, nasceram e cresceram os bairros da lata que passaram a ser tristes guetos de marginais porquanto, por falha do país de acolhimento, as crianças e jovens se viram condenados a viver a mesma pobreza que escorraçou os pais dos países de origem. Esta ausência de política imigratória, a total falta de educação ministrada a crianças e jovens com o objectivo da sua completa integração no país em que nasceram de famílias emigrantes, foi o mais perfeito caldo de cultura para o desabrochar da criminalidade e do desespero. Não podem autoproclamar-se de cristãos ou defensores dos Direitos do Homem os países que, por inépcia ou erro de cálculo, propiciaram este estado de coisas.
Digamos que, em vários países onde este erro foi cometido, a massa informe de imigrantes não integrados constitui uma bomba-relógio. Mas, a exemplo do que acontece com as bombas propriamente ditas, esta pode ser despoletada por meio de uma acção social de grande envergadura, feita em profundidade e não à laia de penso rápido. Uma acção dessas implica a mobilização de toda a população e dos imigrantes já integrados, e também os sectores missionários da Igreja.
Opor a este fenómeno manifestações racistas, com o nojento folclore dos símbolos nazis e fascistas a denunciar o seu escondido objectivo, é opor uma boçalidade à boçalidade de nada ter sido feito para integrar os imigrantes. Ou dito de forma mais clara, duas boçalidades de sentido contrário por muito cultos e finos que se possam clamar os seus ideólogos.
Numa democracia, há liberdade para se manifestarem em público a extrema-direita e a extrema-esquerda – como, há dias, se manifestaram em Lisboa os que, quadradamente, pensam resolver o caso da imigração com insultos, expulsões, espancamentos e braços ao alto, numa estafada repetição do que praticava Hitler ou Mussolini, ou os que, estupidamente, procuraram endeusar dois políticos mortos que, todos o sabemos, não foram mais do que instrumentos servis de criminosos como Lenine e Estaline. Numa democracia cabem todos, incluindo os quadrados e os estúpidos, os que nunca aprenderam nada, os que nunca vão aprender nada. Mas como democracia implica vigilância, é obrigatório que as autoridades sigam de perto as movimentações desses extremos e a comunicação social, especialmente a televisão, tenham seriedade e decência. Para não dizer mais.
As generalizações são sempre injustas, mas passam a criminosas quando se fazem sobre a Imigração. No Canadá há 40 portugueses presos por crimes cometidos e, entre os milhares de ilegais portugueses que desde há tempos têm arribado a esta margem, sabe-se que há criminosos, alguns até foragidos da justiça lusa. Este painel, mais coisa, menos coisa, é o que se verifica em todas as grandes comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo. Os emigrantes portugueses não têm sido insultados por manifestantes de rua. Não seria justo. Os departamentos de Justiça e de Imigração fazem o seu trabalho, sem pressa, com todo o cuidado. Serão deportados os que tiverem de o ser. Mas ninguém insulta o português que faz o trabalho que o canadiano deixou de fazer. Ninguém devia insultar os imigrantes que, em Portugal, fazem o trabalho que os portugueses há muito deixaram de fazer (como estamos todos fartos de saber, desde que apareceu o maná das baixas prolongadas, dos subsídios de desemprego que se podem prolongar, dos pseudo-cursos de aperfeiçoamento, etc. etc.).
Devo acrescentar que, no Canadá e em muitos outros países, há todo um programa de apoio aos recém-chegados que abrange a escola, os serviços de saúde, o alojamento, o enquadramento comunitário.
A democracia portuguesa tem ainda muito que aprender e é bom que aprenda depressa para o povo não ter de sofrer a boçalidade, o atraso de vida de uma ditadura de extrema-direita ou de extrema-esquerda.
por Fernanda Leitão
O século XX, devido a guerras e revoluções, originou os maiores movimentos migratórios de sempre, a deslocação de milhões de pessoas que, acossadas pela violência ou pela fome, partiram para onde julgaram encontrar segurança e pão. Foi assim na Europa, na África, na Ásia, na América Latina. Esta foi, sem dúvida alguma, a mais pesada herança recebida pelo séxulo XXI, a par dos crimes ecológicos perpetrados por países dominados pelo obscurantismo e ela ganância pura e simples. Os organismos internacionais, em que todas as nações estão representadas, mal puderam usar os mecanismos básicos da justiça que deveria ser imposta aos países prevaricadores porque se viram literalmente inundados por milhões de desalojados famintos, despojados do que de mais elementar é dado ao homem para sobreviver.
Essas multidões de deserdados têm rumado a países mais prósperos e seguros, onde deitaram raízes e construíram a vida, porque as organizações internacionais e as chamadas grandes potências mundiais não souberam, ou puderam, evitar o êxodo promovendo o desenvolvimento, económico e social, nos países em crise. Em vários países ditos desenvolvidos, o capitalismo selvagem viu com gula a chegada dessa mão de obra faminta e pouco exigente quanto a condições de vida. Foi assim que, em vários países, nasceram e cresceram os bairros da lata que passaram a ser tristes guetos de marginais porquanto, por falha do país de acolhimento, as crianças e jovens se viram condenados a viver a mesma pobreza que escorraçou os pais dos países de origem. Esta ausência de política imigratória, a total falta de educação ministrada a crianças e jovens com o objectivo da sua completa integração no país em que nasceram de famílias emigrantes, foi o mais perfeito caldo de cultura para o desabrochar da criminalidade e do desespero. Não podem autoproclamar-se de cristãos ou defensores dos Direitos do Homem os países que, por inépcia ou erro de cálculo, propiciaram este estado de coisas.
Digamos que, em vários países onde este erro foi cometido, a massa informe de imigrantes não integrados constitui uma bomba-relógio. Mas, a exemplo do que acontece com as bombas propriamente ditas, esta pode ser despoletada por meio de uma acção social de grande envergadura, feita em profundidade e não à laia de penso rápido. Uma acção dessas implica a mobilização de toda a população e dos imigrantes já integrados, e também os sectores missionários da Igreja.
Opor a este fenómeno manifestações racistas, com o nojento folclore dos símbolos nazis e fascistas a denunciar o seu escondido objectivo, é opor uma boçalidade à boçalidade de nada ter sido feito para integrar os imigrantes. Ou dito de forma mais clara, duas boçalidades de sentido contrário por muito cultos e finos que se possam clamar os seus ideólogos.
Numa democracia, há liberdade para se manifestarem em público a extrema-direita e a extrema-esquerda – como, há dias, se manifestaram em Lisboa os que, quadradamente, pensam resolver o caso da imigração com insultos, expulsões, espancamentos e braços ao alto, numa estafada repetição do que praticava Hitler ou Mussolini, ou os que, estupidamente, procuraram endeusar dois políticos mortos que, todos o sabemos, não foram mais do que instrumentos servis de criminosos como Lenine e Estaline. Numa democracia cabem todos, incluindo os quadrados e os estúpidos, os que nunca aprenderam nada, os que nunca vão aprender nada. Mas como democracia implica vigilância, é obrigatório que as autoridades sigam de perto as movimentações desses extremos e a comunicação social, especialmente a televisão, tenham seriedade e decência. Para não dizer mais.
As generalizações são sempre injustas, mas passam a criminosas quando se fazem sobre a Imigração. No Canadá há 40 portugueses presos por crimes cometidos e, entre os milhares de ilegais portugueses que desde há tempos têm arribado a esta margem, sabe-se que há criminosos, alguns até foragidos da justiça lusa. Este painel, mais coisa, menos coisa, é o que se verifica em todas as grandes comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo. Os emigrantes portugueses não têm sido insultados por manifestantes de rua. Não seria justo. Os departamentos de Justiça e de Imigração fazem o seu trabalho, sem pressa, com todo o cuidado. Serão deportados os que tiverem de o ser. Mas ninguém insulta o português que faz o trabalho que o canadiano deixou de fazer. Ninguém devia insultar os imigrantes que, em Portugal, fazem o trabalho que os portugueses há muito deixaram de fazer (como estamos todos fartos de saber, desde que apareceu o maná das baixas prolongadas, dos subsídios de desemprego que se podem prolongar, dos pseudo-cursos de aperfeiçoamento, etc. etc.).
Devo acrescentar que, no Canadá e em muitos outros países, há todo um programa de apoio aos recém-chegados que abrange a escola, os serviços de saúde, o alojamento, o enquadramento comunitário.
A democracia portuguesa tem ainda muito que aprender e é bom que aprenda depressa para o povo não ter de sofrer a boçalidade, o atraso de vida de uma ditadura de extrema-direita ou de extrema-esquerda.
quinta-feira, junho 16, 2005
O pensamento cristão perde Paul Ricoeur
Fala o filosofo Carlos Díaz, fundador do Instituto Mounier
MADRID, quarta-feira, 15 de Junho de 2005 (ZENIT.org).- No dia 20 de maio, falecia serenamente enquanto dormia em Chatenay Malabry (Paris), aos 92 anos de idade, Paul Ricoeur, um dos maiores filósofos do século XX.
Sua morte aconteceu como ele a havia desejado, confirmaram a Zenit fontes próximas ao pensador francês: em sua casa e não no hospital, sem sofrimento traumáticos, sem perder a consciência. Os funerais foram como os pediu, discretos, em sua paróquia protestante.
Com Ricoeur, vai-se uma das últimas vozes cristãs de maior influência na filosofia atual, explica a Zenit o professor Carlos Díaz, fundador do Instituto Mounier, professor de fenomenologia da religião na Universidade Complutense de Madrid, que conhecia pessoalmente o filósofo.
João Paulo II entregou a Ricoeur em Julho de 2003 o qüinqüenal Prêmio Internacional Paulo VI e reconheceu que a investigação do filósofo «manifesta como é fecunda a relação entre filosofia e teologia, entre fé e cultura».
--Que se perdeu com Paul Ricoeur?
--Díaz: Com a morte de Paul Ricoeur, vai-se uma das últimas vozes cristãs de mais amplo alcance e de maior autoridade no pensamento filosófico mundial de hoje.
Esta aceitação deve-se fundamentalmente ao caráter hermenêutico de seu discurso, que se abre com todos os sistemas buscando o melhor deles.
O revés ou a contrapartida desta atitude paga o preço de uma certa vontade de «não querer levar razão». No pensamento contemporâneo, tal forma de enforcar os problemas resulta mais aceitável que a que se apresenta aberta e taxativamente.
--Em que se notará sua herança, e quem a levará adiante?
--Díaz: Sua herança --como se disse-- ninguém disputará exclusivamente, mais bem sua recordação será a de um pensador acolhedor e amável.
Não aparecerá com sinais destacados em nenhuma parte. Que Ricoeur seja um dos grandes filósofos do momento não significa que --em minha opinião-- vá passar às histórias da filosofia, ainda que seguramente será conhecido pelos mais especialistas. E tudo isto porque Ricoeur é mais analítico que propositivo, em minha opinião.
--Pessoalmente, que aspecto do pensador o fascina mais?
--Díaz: Primeiro a fidelidade de sua amizade e o reconhecimento do magistério que sobre ele exerceu Emmanuel Mounier.
No plano meramente humano, quando tive a sorte de encontrar-me com ele me chamou a atenção sua brincadeira, seu trato delicado, alinhado por uma certa capacidade de humor, que não desemboca contudo em mordacidade. Junto a isto, sua humildade --eu diria que até sua ternura-- para dialogar com qualquer um, inclusive com os supostos mais ignorantes.
No que se refere ao terreno intelectual, o que me chama a atenção de Ricoeur é sua capacidade de entender qualquer autor em qualquer idioma, sua inteligência para discernir analiticamente os problemas me parece quase inigualável.
--Ficamos órfãos de grandes intelectuais cristãos do nível de Ricoeur?
--Díaz: Não, de maneira alguma. Primeiro, porque já disse que sua contribuição ao cristianismo como tal não foi demasiado temática, e depois porque como caberia não esperar de entre tanto cristão a emergência de mais teólogos, ou seja, daqueles que pensam no Senhor reclinando sua cabeça no Senhor?
Fonte: www.zenit.org
MADRID, quarta-feira, 15 de Junho de 2005 (ZENIT.org).- No dia 20 de maio, falecia serenamente enquanto dormia em Chatenay Malabry (Paris), aos 92 anos de idade, Paul Ricoeur, um dos maiores filósofos do século XX.
Sua morte aconteceu como ele a havia desejado, confirmaram a Zenit fontes próximas ao pensador francês: em sua casa e não no hospital, sem sofrimento traumáticos, sem perder a consciência. Os funerais foram como os pediu, discretos, em sua paróquia protestante.
Com Ricoeur, vai-se uma das últimas vozes cristãs de maior influência na filosofia atual, explica a Zenit o professor Carlos Díaz, fundador do Instituto Mounier, professor de fenomenologia da religião na Universidade Complutense de Madrid, que conhecia pessoalmente o filósofo.
João Paulo II entregou a Ricoeur em Julho de 2003 o qüinqüenal Prêmio Internacional Paulo VI e reconheceu que a investigação do filósofo «manifesta como é fecunda a relação entre filosofia e teologia, entre fé e cultura».
--Que se perdeu com Paul Ricoeur?
--Díaz: Com a morte de Paul Ricoeur, vai-se uma das últimas vozes cristãs de mais amplo alcance e de maior autoridade no pensamento filosófico mundial de hoje.
Esta aceitação deve-se fundamentalmente ao caráter hermenêutico de seu discurso, que se abre com todos os sistemas buscando o melhor deles.
O revés ou a contrapartida desta atitude paga o preço de uma certa vontade de «não querer levar razão». No pensamento contemporâneo, tal forma de enforcar os problemas resulta mais aceitável que a que se apresenta aberta e taxativamente.
--Em que se notará sua herança, e quem a levará adiante?
--Díaz: Sua herança --como se disse-- ninguém disputará exclusivamente, mais bem sua recordação será a de um pensador acolhedor e amável.
Não aparecerá com sinais destacados em nenhuma parte. Que Ricoeur seja um dos grandes filósofos do momento não significa que --em minha opinião-- vá passar às histórias da filosofia, ainda que seguramente será conhecido pelos mais especialistas. E tudo isto porque Ricoeur é mais analítico que propositivo, em minha opinião.
--Pessoalmente, que aspecto do pensador o fascina mais?
--Díaz: Primeiro a fidelidade de sua amizade e o reconhecimento do magistério que sobre ele exerceu Emmanuel Mounier.
No plano meramente humano, quando tive a sorte de encontrar-me com ele me chamou a atenção sua brincadeira, seu trato delicado, alinhado por uma certa capacidade de humor, que não desemboca contudo em mordacidade. Junto a isto, sua humildade --eu diria que até sua ternura-- para dialogar com qualquer um, inclusive com os supostos mais ignorantes.
No que se refere ao terreno intelectual, o que me chama a atenção de Ricoeur é sua capacidade de entender qualquer autor em qualquer idioma, sua inteligência para discernir analiticamente os problemas me parece quase inigualável.
--Ficamos órfãos de grandes intelectuais cristãos do nível de Ricoeur?
--Díaz: Não, de maneira alguma. Primeiro, porque já disse que sua contribuição ao cristianismo como tal não foi demasiado temática, e depois porque como caberia não esperar de entre tanto cristão a emergência de mais teólogos, ou seja, daqueles que pensam no Senhor reclinando sua cabeça no Senhor?
Fonte: www.zenit.org
domingo, junho 12, 2005
O PPM morreu!
por António de Sousa-Cardoso
«Não deixaremos que, junto da opinião pública, confundam os monárquicos portugueses com o PPM»
REALIZOU-SE este fim-de-semana o Congresso Eleitoral do PPM. E é sobre as circunstâncias em que decorreu e sobre os resultados já previsíveis deste Congresso que vale a pena tirar algumas ilações
O PPM formou-se em 1974, empurrado por uma activa participação dos monárquicos na SEDES. Todos quantos trabalharam nalguma clandestinidade no período salazarista/marcelista, encontraram na formulação partidária a forma de expressarem as suas convicções na sequência da revolução dos cravos. E este erro histórico foi cometido por personalidades de grande destaque no Movimento Monárquico que, no fervilhar de uma revolução que construía então o sistema partidário, não quiseram perder por «falta de comparência». Muitos monárquicos filiaram-se entretanto noutros partidos - o próprio Francisco Sá Carneiro foi militante da Causa Monárquica - convencidos que estavam que a monarquia era uma alternativa para a questão de regime e nunca para a questão do governo.
Apesar disso, o PPM teve uma muito interessante dinâmica política e social que motivou que tivesse integrado a Aliança Democrática, num claro reconhecimento dos méritos do partido e dos seus principais dirigentes. Esta integração na lógica do poder republicano acabou por ser o começo do fim do PPM, com os seus principais intervenientes embrenhados no jogo do poder e da governação, muito pouco compatível com a defesa de um regime novo para todos os portugueses. Foi necessário encontrar bandeiras seguras da governação, como a defesa do espaço rural e do ambiente, num exemplo de grande pioneirismo dos dirigentes de então, mas claro está, no afastamento do seu principal código genético - a defesa da monarquia.
Com o desaparecimento da AD muitos dos dirigentes do PPM acabaram por sair, alguns deles fundando mais tarde um outro partido, o Partido da Terra, agregador das propostas de governação aprofundadas pelo partido. Muitos dos militantes sairiam também, percebendo o pecado original de terem optado pela formulação partidária, e reunindo-se mais tarde nas Reais Associações e na Causa Real, representativa dos monárquicos portugueses, independentemente da filiação ou sensibilidade partidária.
Desde aí que o PPM não passa de um pequeno grupelho político, de exígua expressão eleitoral e com total falta de relevância na vida nacional.
A quota marginal de relevância do PPM é, deste modo, garantida por recurso a meios mais ínvios. Ou através de manobras de diversão, tão ao gosto da nossa comunicação social, envolvendo recorrentemente a Casa Real Portuguesa que tem granjeado crescente credibilidade e notoriedade. Ou apostando na confusão que os cidadãos e até os dirigentes partidários fazem ainda, entre o PPM e os monárquicos portugueses.
As recentes diatribes de um conhecido fadista constituíram não só o condimento necessário para a ressurreição desta marginalidade política, mas ainda a prova de que o populismo e a mediocridade que lhe está associada pegaram há alguns anos de estaca no sistema partidário português, e só serão definitivamente erradicados através de um assomo genuíno de coragem política da nova geração de dirigentes políticos.
O PPM representou nas últimas eleições cerca de 12.000 votos. Um estudo recente realizado pela Causa Real com um Centro de Sondagens de reconhecida credibilidade mostra que quase 20% dos portugueses confessam convictamente a sua preferência pela instituição real. Os números dobram quando as coisas passam para o plano da simpatia e da abertura para com as vantagens da instituição real numa democracia moderna, igual à de muitos dos nossos parceiros europeus.
Quer dizer que não precisamos de falar em simpatias para afirmar que só 1 em cerca de 120 monárquicos portugueses votam hoje no PPM - se é que quem vota no PPM é monárquico, e não amante do fado ou da «Quinta das Celebridades».
Provavelmente, as diatribes dos actuais dirigentes do partido continuarão, reforçadas pelo triunfo eleitoral assegurado com o voto de 61 militantes (?) no último Congresso. Provavelmente, este estado de coisas interessa a muita gente, preocupada com a maior relevância e credibilidade que o movimento monárquico e a Casa Real portuguesa têm assumido.
Não deixaremos por isso que, junto da opinião pública, confundam os monárquicos portugueses com o PPM ou com a sua insignificante expressão eleitoral. Seria, a partir de agora, a mesma coisa que confundir os mesmos 12.000 votos do Partido da Terra com os amantes da natureza, do ambiente e do espaço rural.
O PPM - a sua história e as suas motivações mais genuínas - morreu já há alguns anos, talvez de remorso pelo pecado original inerente à sua formulação partidária. O PPM dos actuais 12.000 votos é um grupo marginal que seguramente representa sede de protagonismo e que provavelmente envolve interesses menos claros de «guetização» do movimento monárquico.
Os monárquicos portugueses de todos os partidos políticos saberão denunciar, até pela sua crescente afirmação e relevância, os aproveitamentos políticos que se fizerem sobre a respeitosa memória de um partido que já não existe entre nós.
Presidente da Causa Real
«Não deixaremos que, junto da opinião pública, confundam os monárquicos portugueses com o PPM»
REALIZOU-SE este fim-de-semana o Congresso Eleitoral do PPM. E é sobre as circunstâncias em que decorreu e sobre os resultados já previsíveis deste Congresso que vale a pena tirar algumas ilações
O PPM formou-se em 1974, empurrado por uma activa participação dos monárquicos na SEDES. Todos quantos trabalharam nalguma clandestinidade no período salazarista/marcelista, encontraram na formulação partidária a forma de expressarem as suas convicções na sequência da revolução dos cravos. E este erro histórico foi cometido por personalidades de grande destaque no Movimento Monárquico que, no fervilhar de uma revolução que construía então o sistema partidário, não quiseram perder por «falta de comparência». Muitos monárquicos filiaram-se entretanto noutros partidos - o próprio Francisco Sá Carneiro foi militante da Causa Monárquica - convencidos que estavam que a monarquia era uma alternativa para a questão de regime e nunca para a questão do governo.
Apesar disso, o PPM teve uma muito interessante dinâmica política e social que motivou que tivesse integrado a Aliança Democrática, num claro reconhecimento dos méritos do partido e dos seus principais dirigentes. Esta integração na lógica do poder republicano acabou por ser o começo do fim do PPM, com os seus principais intervenientes embrenhados no jogo do poder e da governação, muito pouco compatível com a defesa de um regime novo para todos os portugueses. Foi necessário encontrar bandeiras seguras da governação, como a defesa do espaço rural e do ambiente, num exemplo de grande pioneirismo dos dirigentes de então, mas claro está, no afastamento do seu principal código genético - a defesa da monarquia.
Com o desaparecimento da AD muitos dos dirigentes do PPM acabaram por sair, alguns deles fundando mais tarde um outro partido, o Partido da Terra, agregador das propostas de governação aprofundadas pelo partido. Muitos dos militantes sairiam também, percebendo o pecado original de terem optado pela formulação partidária, e reunindo-se mais tarde nas Reais Associações e na Causa Real, representativa dos monárquicos portugueses, independentemente da filiação ou sensibilidade partidária.
Desde aí que o PPM não passa de um pequeno grupelho político, de exígua expressão eleitoral e com total falta de relevância na vida nacional.
A quota marginal de relevância do PPM é, deste modo, garantida por recurso a meios mais ínvios. Ou através de manobras de diversão, tão ao gosto da nossa comunicação social, envolvendo recorrentemente a Casa Real Portuguesa que tem granjeado crescente credibilidade e notoriedade. Ou apostando na confusão que os cidadãos e até os dirigentes partidários fazem ainda, entre o PPM e os monárquicos portugueses.
As recentes diatribes de um conhecido fadista constituíram não só o condimento necessário para a ressurreição desta marginalidade política, mas ainda a prova de que o populismo e a mediocridade que lhe está associada pegaram há alguns anos de estaca no sistema partidário português, e só serão definitivamente erradicados através de um assomo genuíno de coragem política da nova geração de dirigentes políticos.
O PPM representou nas últimas eleições cerca de 12.000 votos. Um estudo recente realizado pela Causa Real com um Centro de Sondagens de reconhecida credibilidade mostra que quase 20% dos portugueses confessam convictamente a sua preferência pela instituição real. Os números dobram quando as coisas passam para o plano da simpatia e da abertura para com as vantagens da instituição real numa democracia moderna, igual à de muitos dos nossos parceiros europeus.
Quer dizer que não precisamos de falar em simpatias para afirmar que só 1 em cerca de 120 monárquicos portugueses votam hoje no PPM - se é que quem vota no PPM é monárquico, e não amante do fado ou da «Quinta das Celebridades».
Provavelmente, as diatribes dos actuais dirigentes do partido continuarão, reforçadas pelo triunfo eleitoral assegurado com o voto de 61 militantes (?) no último Congresso. Provavelmente, este estado de coisas interessa a muita gente, preocupada com a maior relevância e credibilidade que o movimento monárquico e a Casa Real portuguesa têm assumido.
Não deixaremos por isso que, junto da opinião pública, confundam os monárquicos portugueses com o PPM ou com a sua insignificante expressão eleitoral. Seria, a partir de agora, a mesma coisa que confundir os mesmos 12.000 votos do Partido da Terra com os amantes da natureza, do ambiente e do espaço rural.
O PPM - a sua história e as suas motivações mais genuínas - morreu já há alguns anos, talvez de remorso pelo pecado original inerente à sua formulação partidária. O PPM dos actuais 12.000 votos é um grupo marginal que seguramente representa sede de protagonismo e que provavelmente envolve interesses menos claros de «guetização» do movimento monárquico.
Os monárquicos portugueses de todos os partidos políticos saberão denunciar, até pela sua crescente afirmação e relevância, os aproveitamentos políticos que se fizerem sobre a respeitosa memória de um partido que já não existe entre nós.
Presidente da Causa Real
quinta-feira, junho 02, 2005
EM QUE CONSISTE EXACTAMENTE O PERIGO ESPANHOL
por Henrique Barrilaro Ruas
Quando dois impérios se conjugam, e o menos forte se submete ao mais forte, os terceiros têm tudo a perder
...o “perigo espanhol” é hoje, numa Europa outra vez egoísta e carolíngia, que se confunda Portugal com o (aliás, nobilíssimo) Euzkadi.
O “perigo espanhol” é doença quase endémica entre portugueses. A bem dizer, só recentemente, com o fenómeno um tanto snob do anti-nacionalismo, é que se tem perdido essa antiga sensação. Pessoalmente, com sangue materno de origem espanhola (mas andaluz – de ascendência genovesa – e basco), com uma educação de patriotismo quase romântico, com muita acentuada atenção aos factos históricos mais simbólicos, devo confessar que sempre senti esse perigo e a vontade de o enfrentar. Mas nunca deixei de ter simpatia e admiração pela Espanha, e sempre tenho procurado levar os meus amigos mais exaltadamente desconfiados e hostis a aceitarem que os Espanhóis não são um perigo por odiarem Portugal, mas por amarem Portugal inadequadamente, ou de modo insensato.
Ao longo dos tempos, o “perigo espanhol” manifestou-se de várias maneiras: desde o altivo paternalismo de Afonso VII (apesar do encontro de 4 e 5 de Outubro de 1143), até à paixão incontrolada de João I ou de Filipe II; desde o absorvente imperialismo de Filipe IV até à idolatria napoleónica de Godoy; desde o insolente intervencionismo de Afonso XIII até ao de Franco (já perto de morrer).
De todas essas modalidades, nem todas elas postas em prática ou sequer experimentadas, a mais grave terá sido a de Godoy. Porque foi então que o imperialismo castelhano (muitas vezes apenas sonhado) se conjugou com outro imperialismo mais poderoso, e um e outro decidiram acabar com Portugal. E também porque, de esse absurdo e vergonhoso conluio, fica no corpo de Portugal a “chaga do lado”: ainda hoje, Olivença está sob o domínio espanhol.
Direi, pois, que acredito no “perigo espanhol”. Direi que, para mim, o perigo espanhol está mais forte, mais opulento, mais complexo e mais extenso; porque se confunde com o que chamo o perigo europeu, que para nós, portugueses, está propriamente representado por aquele primeiro perigo. Estou convencido de que os espanhóis aceitaram facilmente o projecto europeu (que não parecia poder ser simpático ao seu profundo e sensível nacionalismo), exactamente por assim se lhes oferecer a ocasião propícia para pôr em prática o antigo sonho da unidade peninsular. Foi uma coisa que logo entendi (ou intuí) quando, em 1948, ouvi Denis de Rougemont defender, na Cidade Universitária de Paris, a tese da Federação Europeia. Proposta pelo orador a sua visão da futura Europa, a imensa maioria da larga assistência (em que havia bastantes espanhóis) votou a favor, contra dois votos (o meu e o de uma belga) e com meia dúzia de abstenções, algumas das quais eram espanholas. Nunca mais deixei de compreender como coisa natural a posição espanhola favorável à europeização crescente.
Quando dois impérios se conjugam, e o menos forte se submete ao mais forte, os terceiros têm tudo a perder. O absurdo tratado de Fontainebleau não foi avante. Mas o tratadozinho de Badajoz, que devia ser desfeito no Congresso de Viena, como primeiro ensaio da destruição de Portugal por Napoleão e Godoy, ultrapassou vitoriosamente a barreira da Política geral, e ainda hoje pesa nas relações luso-espanholas. Tal foi a força dessa coligação imperialista.
Mas eu prefiro abordar o tema numa perspectiva diferente. Não a partir de experiências, de casos concretos, de anormalidades, mas antes a pensar em grandes linhas da História. No rosto positivo da História.
O que mais importa, penso eu, é considerar o que é que está – ou pode estar – em perigo, quando se fala em “perigo espanhol”. Uma coisa é ver, conhecer o perigo em si mesmo, na matéria que o compõe, nas formas que tem assumido ou pode vir a assumir. Outra coisa, bem mais interessante, é saber em que consiste esse perigo quanto ao que é ameaçado. (Há fortíssimas tempestades que varrem os desertos e os mares e as montanhas – e que nada ou quase nada significam para a gente humana. Há tempestades – ou sismos – bem mais pequenos em si, e que provocam terríveis desastres para a humanidade.) Interessa, pois, para pesar o “perigo espanhol”, olhar claramente para aquilo que está ou pode estar em perigo.
Neste sentido, ao menos para nós, portugueses, o “perigo espanhol” ganha significado bem concreto, e revela uma inesperada transcendência.
1. “Perigo espanhol” é negar, ou contradizer, ou pôr em causa, ou desprezar a soberania do povo português. Pode ser que, para alguns grandes povos, a soberania não tenha importância essencial. Mas nós, portugueses, aqui, na Península, sempre precisámos dessa alta muralha, dessa defesa insubstituível, desse sinal esplêndido. Quisemos a independência – e não foi por capricho. Ganhámos a independência. Criámos o Pacto Sucessório, que iria permitir a D. Afonso Henriques a Conferência de Zamora e a espantosa salvação do reino quando do desastre de Badajoz.
Criámos um vasto sistema de alianças de base matrimonial, dentro e fora da Península. Criámos a Aliança Inglesa (que já tem formas vivas no primeiro reinado), que nos vai ajudar a contra-balançar o poderio castelhano ainda em tempos de D. Fernando. Organizámos as Forças Armadas com estruturas defensivas que tinham atingido, no reinado de D. Sebastião, tal densidade e qualidade que nos viriam a dar a vitória da Guerra da Restauração e nas Invasões Francesas.
2. “Perigo espanhol” é negar ou pôr em dúvida a realidade comunitária dotada de consciência “para-nacional” (Pierre David) e que constituía já uma “república” antes de assumir a forma de Estado nacional. (De certa maneira, essa comunidade tinha por fundamento os Lusitanos de Viriato e, como reino dos Suevos, chegara a aliar-se ao Império Romano do Oriente.)
3. “Perigo espanhol” é, também, negar ou contradizer, ou sobretudo, menosprezar como ornato barroco o carácter institucional permanente do centro-cume do Estado nacional: uma realeza hereditária mas aberta ao critério absoluto do Interesse Nacional, como se viu em 1245, em 1383-85, em 1640-1641, em 1667-68, em 1698, e na controvérsia de 1826-34. Abater ou conservar abatida essa instituição cria uma forma notável de “perigo espanhol”, sempre que a Espanha é regida em monarquia. Porque logo Portugal tende a ser tomado como análogo à Galiza, ao País Basco, à Catalunha... O que já tem visto e sofrido, de vários modos; por exemplo, em Santiago de Compostela, num falhado “frente a frente” do Rei de Espanha com o Presidente Jorge Sampaio.
4. “Perigo espanhol” é, também, negar, adormecer, pôr em banho-maria a indiscutível prioridade portuguesa das Descobertas marítimas, na colonização sistemática, na evangelização permanente fora da Europa. Esquecer que os arquipélagos da Madeira, dos Açores, de Cabo Verde, foram os pioneiros da Cultura Europeia (como tal nascente) na época em que o Renascimento dava aos europeus a auto-consciência.
5. “Perigo espanhol” é negar ou esquecer que foi Portugal que renovou a Historiografia europeia, dando-lhe dimensões de universalidade, apenas comparável àquela que marca os primeiros séculos do Cristianismo.
6. “Perigo espanhol” é ignorar ou desprezar a origem portuguesa de certas formas culturais que vão estar presentes do Extremo Oriente ao Extremo Ocidente e têm pontos altos o culto ao Espírito Santo, a solidariedade comunitária, o carácter festivo do bem-fazer, a igualdade social própria das Santas Casas da Misericórdia.
7. “Perigo espanhol” é fazer-se alguém surdo à língua portuguesa, nossa “pátria”, supor indiferente à riqueza da humanidade que entre os Trovadores e Rosalía de Castro se estendesse um imenso deserto de silêncio – ou de canto e discursos castelhanos -, ou se pudesse ouvir o Cancioneiro Geral, e Fernão Lopes, e o Leal Conselheiro, e a Menina e Moça, e Gil Vicente, e Barros, e Camões, e Vieira, e Rodrigues Lobo e Bocage e Garrett e Camilo...
8. “Perigo espanhol” é fazer de conta que a acção dos Portugueses foi equivalente à dos Espanhóis na América do Sul, e que só por acaso é que metade desse continente constitui o Brasil, ao passo que a outra metade se divide em nove Estados nacionais e alguns territórios mal saídos do colonialismo.
Ou seja, a visão ou descoberta do “perigo espanhol” em termos funcionais, ou de apreciação relativa, ou de dinâmica histórica, ou de polémica civilizacional, constitui virtualmente uma tragédia para a humanidade.
Se o “perigo espanhol” tivesse sido eficaz, plenamente ou quase vitorioso, não só o Povo português como, em diversos graus, muitos outros povos, vastíssimas regiões do mundo, teriam perdido ou nunca teriam alcançado certos bens políticos, económicos, culturais, espirituais, de altíssima importância. Tanto mais que não podemos esquecer o que significa prioridade portuguesa para uma Europa habituada a viver e a morrer sobre si mesma, inegavelmente engenhosa, artística, “sofisticada”, capaz de se inebriar com os perfumes do seu próprio corpo e do seu próprio espírito, provavelmente apegada para sempre à deslumbrante contemplação do umbigo...
Sem Aljubarrota, sem Montes Claros, sem as Linhas de Torres (tornadas necessárias também pela convergência do “perigo espanhol” com o, então campeante, perigo francês) a já grande ameaça que acompanha quase sempre a nossa História teria instalado no mundo um “Portugal” bem diferente, um “Portugal” paralelo, ou sombra, de Espanha.
*
Em 1949, no mês de Julho, reuniu-se perto de Salzburgo o 1º Congresso das “Nouvelles Equipes Internationales”, de raiz democrata-cristã e federalista. A convite da delegação francesa, e apesar de ter declarado não ser democrata-cristão (mas cristão social) nem federalista-europeu, desloquei-me de Paris (onde terminava dois anos de estudos) e tomei parte nos trabalhos, na qualidade de observador português. (Era, de facto, exemplar único.) Tive a oportunidade de, durante alguns dias, conviver com dois delegados do País Basco, um dos quais era irmão do Presidente Aguirre (então residente, de preferência, em Biarritz) e o outro se chamava (o nome tornou-se, há poucos anos, muito conhecido) Iñaki de Rentería. Este último tinha estado, pouco antes, nos Pirenéus, como guerrilheiro anti-franquista. Ambos me diziam (além de outras coisas que para este caso interessam menos) que o problema histórico português – o problema da sua soberania plena – era completamente diferente do problema basco. Porque Portugal sempre tivera política diplomática própria, e tambem porque havia o Ultramar. Estou a vê-los, na Áustria, e, dias depois, em Paris, na própria casa do Presidente Aguirre, a explanar estas e outras ideias claras e distintas. As fotografias que deles conservo avivam a recordação pessoal. E acentuam, em diferente perspectiva, os traços essenciais da questão que nos ocupa. Porque o “perigo espanhol” é hoje, numa Europa outra vez egoísta e carolíngia, que se confunda Portugal com o (aliás, no bilíssimo) Euzkadi.
Tal confusão (ou outras semelhantes a ela) não depende necessariamente de Espanha. Pode ser obra dos Portugueses. Como todas as versões do “perigo espanhol” que ao longo deste escrito fomos apresentando.
(In História, Novembro 2002, pp. 34-37; com algumas correcções introduzidas pelo Autor)
Quando dois impérios se conjugam, e o menos forte se submete ao mais forte, os terceiros têm tudo a perder
...o “perigo espanhol” é hoje, numa Europa outra vez egoísta e carolíngia, que se confunda Portugal com o (aliás, nobilíssimo) Euzkadi.
O “perigo espanhol” é doença quase endémica entre portugueses. A bem dizer, só recentemente, com o fenómeno um tanto snob do anti-nacionalismo, é que se tem perdido essa antiga sensação. Pessoalmente, com sangue materno de origem espanhola (mas andaluz – de ascendência genovesa – e basco), com uma educação de patriotismo quase romântico, com muita acentuada atenção aos factos históricos mais simbólicos, devo confessar que sempre senti esse perigo e a vontade de o enfrentar. Mas nunca deixei de ter simpatia e admiração pela Espanha, e sempre tenho procurado levar os meus amigos mais exaltadamente desconfiados e hostis a aceitarem que os Espanhóis não são um perigo por odiarem Portugal, mas por amarem Portugal inadequadamente, ou de modo insensato.
Ao longo dos tempos, o “perigo espanhol” manifestou-se de várias maneiras: desde o altivo paternalismo de Afonso VII (apesar do encontro de 4 e 5 de Outubro de 1143), até à paixão incontrolada de João I ou de Filipe II; desde o absorvente imperialismo de Filipe IV até à idolatria napoleónica de Godoy; desde o insolente intervencionismo de Afonso XIII até ao de Franco (já perto de morrer).
De todas essas modalidades, nem todas elas postas em prática ou sequer experimentadas, a mais grave terá sido a de Godoy. Porque foi então que o imperialismo castelhano (muitas vezes apenas sonhado) se conjugou com outro imperialismo mais poderoso, e um e outro decidiram acabar com Portugal. E também porque, de esse absurdo e vergonhoso conluio, fica no corpo de Portugal a “chaga do lado”: ainda hoje, Olivença está sob o domínio espanhol.
Direi, pois, que acredito no “perigo espanhol”. Direi que, para mim, o perigo espanhol está mais forte, mais opulento, mais complexo e mais extenso; porque se confunde com o que chamo o perigo europeu, que para nós, portugueses, está propriamente representado por aquele primeiro perigo. Estou convencido de que os espanhóis aceitaram facilmente o projecto europeu (que não parecia poder ser simpático ao seu profundo e sensível nacionalismo), exactamente por assim se lhes oferecer a ocasião propícia para pôr em prática o antigo sonho da unidade peninsular. Foi uma coisa que logo entendi (ou intuí) quando, em 1948, ouvi Denis de Rougemont defender, na Cidade Universitária de Paris, a tese da Federação Europeia. Proposta pelo orador a sua visão da futura Europa, a imensa maioria da larga assistência (em que havia bastantes espanhóis) votou a favor, contra dois votos (o meu e o de uma belga) e com meia dúzia de abstenções, algumas das quais eram espanholas. Nunca mais deixei de compreender como coisa natural a posição espanhola favorável à europeização crescente.
Quando dois impérios se conjugam, e o menos forte se submete ao mais forte, os terceiros têm tudo a perder. O absurdo tratado de Fontainebleau não foi avante. Mas o tratadozinho de Badajoz, que devia ser desfeito no Congresso de Viena, como primeiro ensaio da destruição de Portugal por Napoleão e Godoy, ultrapassou vitoriosamente a barreira da Política geral, e ainda hoje pesa nas relações luso-espanholas. Tal foi a força dessa coligação imperialista.
Mas eu prefiro abordar o tema numa perspectiva diferente. Não a partir de experiências, de casos concretos, de anormalidades, mas antes a pensar em grandes linhas da História. No rosto positivo da História.
O que mais importa, penso eu, é considerar o que é que está – ou pode estar – em perigo, quando se fala em “perigo espanhol”. Uma coisa é ver, conhecer o perigo em si mesmo, na matéria que o compõe, nas formas que tem assumido ou pode vir a assumir. Outra coisa, bem mais interessante, é saber em que consiste esse perigo quanto ao que é ameaçado. (Há fortíssimas tempestades que varrem os desertos e os mares e as montanhas – e que nada ou quase nada significam para a gente humana. Há tempestades – ou sismos – bem mais pequenos em si, e que provocam terríveis desastres para a humanidade.) Interessa, pois, para pesar o “perigo espanhol”, olhar claramente para aquilo que está ou pode estar em perigo.
Neste sentido, ao menos para nós, portugueses, o “perigo espanhol” ganha significado bem concreto, e revela uma inesperada transcendência.
1. “Perigo espanhol” é negar, ou contradizer, ou pôr em causa, ou desprezar a soberania do povo português. Pode ser que, para alguns grandes povos, a soberania não tenha importância essencial. Mas nós, portugueses, aqui, na Península, sempre precisámos dessa alta muralha, dessa defesa insubstituível, desse sinal esplêndido. Quisemos a independência – e não foi por capricho. Ganhámos a independência. Criámos o Pacto Sucessório, que iria permitir a D. Afonso Henriques a Conferência de Zamora e a espantosa salvação do reino quando do desastre de Badajoz.
Criámos um vasto sistema de alianças de base matrimonial, dentro e fora da Península. Criámos a Aliança Inglesa (que já tem formas vivas no primeiro reinado), que nos vai ajudar a contra-balançar o poderio castelhano ainda em tempos de D. Fernando. Organizámos as Forças Armadas com estruturas defensivas que tinham atingido, no reinado de D. Sebastião, tal densidade e qualidade que nos viriam a dar a vitória da Guerra da Restauração e nas Invasões Francesas.
2. “Perigo espanhol” é negar ou pôr em dúvida a realidade comunitária dotada de consciência “para-nacional” (Pierre David) e que constituía já uma “república” antes de assumir a forma de Estado nacional. (De certa maneira, essa comunidade tinha por fundamento os Lusitanos de Viriato e, como reino dos Suevos, chegara a aliar-se ao Império Romano do Oriente.)
3. “Perigo espanhol” é, também, negar ou contradizer, ou sobretudo, menosprezar como ornato barroco o carácter institucional permanente do centro-cume do Estado nacional: uma realeza hereditária mas aberta ao critério absoluto do Interesse Nacional, como se viu em 1245, em 1383-85, em 1640-1641, em 1667-68, em 1698, e na controvérsia de 1826-34. Abater ou conservar abatida essa instituição cria uma forma notável de “perigo espanhol”, sempre que a Espanha é regida em monarquia. Porque logo Portugal tende a ser tomado como análogo à Galiza, ao País Basco, à Catalunha... O que já tem visto e sofrido, de vários modos; por exemplo, em Santiago de Compostela, num falhado “frente a frente” do Rei de Espanha com o Presidente Jorge Sampaio.
4. “Perigo espanhol” é, também, negar, adormecer, pôr em banho-maria a indiscutível prioridade portuguesa das Descobertas marítimas, na colonização sistemática, na evangelização permanente fora da Europa. Esquecer que os arquipélagos da Madeira, dos Açores, de Cabo Verde, foram os pioneiros da Cultura Europeia (como tal nascente) na época em que o Renascimento dava aos europeus a auto-consciência.
5. “Perigo espanhol” é negar ou esquecer que foi Portugal que renovou a Historiografia europeia, dando-lhe dimensões de universalidade, apenas comparável àquela que marca os primeiros séculos do Cristianismo.
6. “Perigo espanhol” é ignorar ou desprezar a origem portuguesa de certas formas culturais que vão estar presentes do Extremo Oriente ao Extremo Ocidente e têm pontos altos o culto ao Espírito Santo, a solidariedade comunitária, o carácter festivo do bem-fazer, a igualdade social própria das Santas Casas da Misericórdia.
7. “Perigo espanhol” é fazer-se alguém surdo à língua portuguesa, nossa “pátria”, supor indiferente à riqueza da humanidade que entre os Trovadores e Rosalía de Castro se estendesse um imenso deserto de silêncio – ou de canto e discursos castelhanos -, ou se pudesse ouvir o Cancioneiro Geral, e Fernão Lopes, e o Leal Conselheiro, e a Menina e Moça, e Gil Vicente, e Barros, e Camões, e Vieira, e Rodrigues Lobo e Bocage e Garrett e Camilo...
8. “Perigo espanhol” é fazer de conta que a acção dos Portugueses foi equivalente à dos Espanhóis na América do Sul, e que só por acaso é que metade desse continente constitui o Brasil, ao passo que a outra metade se divide em nove Estados nacionais e alguns territórios mal saídos do colonialismo.
Ou seja, a visão ou descoberta do “perigo espanhol” em termos funcionais, ou de apreciação relativa, ou de dinâmica histórica, ou de polémica civilizacional, constitui virtualmente uma tragédia para a humanidade.
Se o “perigo espanhol” tivesse sido eficaz, plenamente ou quase vitorioso, não só o Povo português como, em diversos graus, muitos outros povos, vastíssimas regiões do mundo, teriam perdido ou nunca teriam alcançado certos bens políticos, económicos, culturais, espirituais, de altíssima importância. Tanto mais que não podemos esquecer o que significa prioridade portuguesa para uma Europa habituada a viver e a morrer sobre si mesma, inegavelmente engenhosa, artística, “sofisticada”, capaz de se inebriar com os perfumes do seu próprio corpo e do seu próprio espírito, provavelmente apegada para sempre à deslumbrante contemplação do umbigo...
Sem Aljubarrota, sem Montes Claros, sem as Linhas de Torres (tornadas necessárias também pela convergência do “perigo espanhol” com o, então campeante, perigo francês) a já grande ameaça que acompanha quase sempre a nossa História teria instalado no mundo um “Portugal” bem diferente, um “Portugal” paralelo, ou sombra, de Espanha.
*
Em 1949, no mês de Julho, reuniu-se perto de Salzburgo o 1º Congresso das “Nouvelles Equipes Internationales”, de raiz democrata-cristã e federalista. A convite da delegação francesa, e apesar de ter declarado não ser democrata-cristão (mas cristão social) nem federalista-europeu, desloquei-me de Paris (onde terminava dois anos de estudos) e tomei parte nos trabalhos, na qualidade de observador português. (Era, de facto, exemplar único.) Tive a oportunidade de, durante alguns dias, conviver com dois delegados do País Basco, um dos quais era irmão do Presidente Aguirre (então residente, de preferência, em Biarritz) e o outro se chamava (o nome tornou-se, há poucos anos, muito conhecido) Iñaki de Rentería. Este último tinha estado, pouco antes, nos Pirenéus, como guerrilheiro anti-franquista. Ambos me diziam (além de outras coisas que para este caso interessam menos) que o problema histórico português – o problema da sua soberania plena – era completamente diferente do problema basco. Porque Portugal sempre tivera política diplomática própria, e tambem porque havia o Ultramar. Estou a vê-los, na Áustria, e, dias depois, em Paris, na própria casa do Presidente Aguirre, a explanar estas e outras ideias claras e distintas. As fotografias que deles conservo avivam a recordação pessoal. E acentuam, em diferente perspectiva, os traços essenciais da questão que nos ocupa. Porque o “perigo espanhol” é hoje, numa Europa outra vez egoísta e carolíngia, que se confunda Portugal com o (aliás, no bilíssimo) Euzkadi.
Tal confusão (ou outras semelhantes a ela) não depende necessariamente de Espanha. Pode ser obra dos Portugueses. Como todas as versões do “perigo espanhol” que ao longo deste escrito fomos apresentando.
(In História, Novembro 2002, pp. 34-37; com algumas correcções introduzidas pelo Autor)
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