Por Helena Matos
É verdadeiramente assombrosa a capacidade que temos de nos distrair do
essencial e perdermo-nos com o acessório(...).
No passado fim-de-semana, esteve em Lisboa Josep Carod-Rovira, o líder da Esquerda Republicana da Catalunha (ERC). O senhor Rovira veio a Portugal falar-nos da Ibéria. Nem mais nem menos. Como o mesmo Rovira declarou ao semanário "Expresso", também na passada semana: "Devemos passar de uma concepção unipolar do Estado para uma outra multipolar, que passe por Lisboa, Barcelona, Bilbau, certamente por Sevilha, e juntos poderemos acabar de alguma forma esta península que nunca foi concluída."
E assim de uma assentada, Lisboa, capital de um Estado independente, foi colocada, pelo senhor Rovira, ao nível das capitais das regiões e comunidades espanholas. É de uma inconsciência assombrosa a bonomia com que em Portugal se escutam este tipo de afirmações. Duvido, aliás, que sejam escutadas. O "Jornal de Notícias", no artigo que dedicou à conferência de Rovira, em Lisboa, fez um título que deve ter ido buscar aos tempos em que o generalíssimo Franco era vivo - "Rovira diz que chegou a hora da Catalunha livre". Quem oprime a Catalunha nesta ano da graça de 2005? Não só a Catalunha é livre como o que de facto Rovira disse é que chegou a hora de Portugal se tornar uma região da Ibéria.
E note-se que o senhor Rovira não estava a discursar num encontro obscuro ou na sede dum movimento extremista. O senhor Rovira veio a Portugal a convite da Fundação Mário Soares, que, como se sabe, foi Presidente da República deste país que Rovira trata como uma região da Ibéria. Nada disto mereceu destaque na nossa campanha eleitoral. O que pensam, por exemplo, os nossos candidatos a chefes de governo do anúncio feito por Rovira, na Fundação Mário Soares, de que vai propor a Zapatero que a Catalunha participe nas próximas cimeiras luso-espanholas? Sócrates vai dar o estatuto de chefe de Estado aos governantes da Catalunha? E do País Basco? E da Galiza? E vai fazê-lo enquanto a Espanha discute este assunto? Sobre Santana Lopes não vale a pena perguntar o que fará: não só não vai ser primeiro-ministro como, quando da cimeira luso-espanhola em que representou Portugal, aceitou ser colocado ao nível dos presidentes das comunidades autónomas da Espanha. A presente situação espanhola diz-nos respeito: porque os líderes independentistas procuram obter em Portugal o reconhecimento tácito do seu estatuto de chefes de Estado.
Porque uma Península com três ou quatro Estados independentes é política e economicamente diferente para Portugal. Porque o processo de desgaste das instituições democráticas fomentado pelos independentistas em Espanha é exemplar dos logros em que as democracias caem.
Começou por se fazer equivaler antifascista a democrático, o que está longe de ser verdade. Movimentos como a ETA são profundamente reaccionários, mas o facto de os seus membros terem combatido Franco serviu-lhes de capa de legitimidade para continuarem a matar em plena democracia. À extorsão que praticam chama-se imposto revolucionário. Simultaneamente, pactuou-se com o culto dos mortos em que os nacionalismos e os terrorismos são férteis. O corpo de cada vítima dos nacionalistas, nos anos 70, 80 e 90 do século XX, valia sempre menos que os independentistas mortos pela Falange ou pelas tropas de Isabel, a Católica. Durante anos, olhou-se para o fenómeno da violência de rua e perseguições a não nacionalistas com a mesma tolerância com que os burgueses enfrentam os desmandos dos filhos: aquilo passa-lhes. Não passou. Em Espanha, agora, na urgência do inevitável, arranjam-se argumentos que visem impedir os bascos de organizar um referendo sobre o seu futuro estatuto. Em Portugal, nós já escutámos Rovira dizer-nos qual é o nosso futuro estatuto. Esperemos que não seja demasiado tarde quando tivermos percebido o que ele, de facto, disse. Não sobre a Espanha. Mas sobre Portugal.
(...)
(In Público, Sábado, 29 de Janeiro de 2005)
Ver "Portugal ou a Federação Ibérica" em www.lusitana.org
Nos liberi sumus; Rex noster liber est, manus nostrae nos liberverunt... [Nós somos livres; nosso Rei é livre, nossas mãos nos libertaram...]
domingo, janeiro 30, 2005
quarta-feira, janeiro 19, 2005
Personalidade Nacional
por Plínio Salgado
As nações têm uma personalidade? Se têm, de que elementos ela se constitui? E de que modo se manifesta?
Eis a pergunta que se nos oferecem, como preliminares de todas cogitações acerca dos objetivos políticos internos e externos e da linha de orientação de pensadores e de homens públicos, tendo-se em vista que a política não pode ser simplesmente uma serie de atos relacionados com os interesses pessoais e de grupos.
Respondemos, inicialmente, que as nações possuem uma personalidade. O conceito de soberania e os princípios em que assenta o Direito Internacional se fundamentam na existência real de entidades coletivas tipicamente diferenciadas.
Essa personalidade nacional é constituída de elementos essencialmente espirituais, ainda que se manifeste nas expressões materiais visíveis da sociedade civil e dos tipos de vida condicionados a circunstâncias físicas especificas.
A extensão territorial do país, o índice da população, o potencial econômico, pode ser desigual, mas a personalidade nacional de um pequeno povo em pequeno território tem o mesmo valor da personalidade nacional de um povo numeroso em vasta área territorial. O que importa é a diferenciação historicamente processada e nitidamente manifestada. A Bélgica e a Rússia, o Haiti e os Estados Unidos, Nicarágua e o Brasil, representam, cada qual, um valor distinto, devendo usufruir, de idênticos direitos no convívio internacional.
A manifestação dessa entidade coletiva traduz o que poderemos chamar o gênio de um povo. E o gênio de um povo exprime um caráter próprio, um modo de ser, uma tendência vocacional, uma consciência de missão histórica, uma aspiração a idéias que justificam a permanência e a sobrevivência da Nação.
As nações nascem quando aquele caráter se define, aquele modo de ser se fixa, aquela tendência vocacional se revela, aquela consciência se determina e aquela aspiração se torna o móvel das ações políticas dos indivíduos e dos Estados. E as nações definham e morrem, à proporção que vão perdendo o sentido da sua própria existência e encontram diante de si o vazio imenso de ideais a serem procurados.
Isto posto, significa, sem sombra de dúvidas, que as nações onde tudo se reduziu a interesses de ordem material e onde cada pessoa da sociedade nacional somente se preocupa com os seus interesses egoísticos, são nações fadadas a desaparecer como personalidade histórica e, perdendo todo o motivo de sua continuação, perdem todo o direito de sobreviver.
Mas é preciso ter-se em conta que um Povo, constituído em Nação, está sujeito a esse desgaste, a essa desintegração, se não for constantemente estimulado de sorte a manter viva a consciência do grupo, o sentido histórico de uma determinação coletiva. O estimulo há de ser dado pelos homens que representam os valores índices mais conscientes da comunidade nacional. Se esses valores faltarem, pode-se ter como certa a desagregação e a ruína da Nação.
A consciência de grupo tem seu ponto de partida na memória. Esquecer é morrer. A vida – não a vida vegetativa e rudimentar, mas a vida que sabe que vive, é a presença de toda uma série de atos, de acontecimentos pretéritos e atuais, compondo a noção do ser no próprio ser.
Significa isto que a ausência da memória tem como resultado um ser, que sendo, é como se não fosse. Essa inconsciência paralisa todos os movimentos de defesa ou de afirmação. Vegetaliza o ser, primeiro pela abolição da vontade, depois pela eliminação do próprio instinto de conservação. O ser deixa de ser sujeito para ser objeto. Deixa de ser agente para ser paciente.
As Nações sem memória se deixam conduzir pelos acontecimentos. Rege-as o determinismo brutal dos fatos. Decide seus destinos a vontade estranha de outros grupos nacionais conscientes. A Nação vegetalizada no pragmatismo dos interesses cotidianos, brutalizada pelos interesses mesquinhos do dia a dia, absorvida pelas exclusivas preocupações materiais do comercio e da politicagem dos facciosismos estreitos, já não conhece a maravilhosa e exaltadora conjugação dos verbos em voz ativa, já não sabe clamar com força esta palavra "eu".
Ensinar a Nação a saber quem é, para que ela continue a ser, é a missao dos seus condutores. Foi a missão de Moisés através do deserto. Foi a missão de Péricles na Grécia. Foi a missão de Isabel de Castela, de Afonso Henriques quando fundou a Monarquia Lusitana, de Richelieu unificando a França, de Pedro, o Grande, construindo a Rússia, de Frederico, criando a Alemanha, de Washington, anunciando ao mundo uma nova nação, de José Bonifácio fundando o Império Brasileiro.
Precisamos de homens conscientes, para construirmos o Brasil consciente.
Precisamos dar sentido à vida brasileira. Sentido histórico derivando das fontes da História. Sentido espiritual, superando as misérias da hora presente, a confusão prenunciadora da desintegração nacional, e elevando nível das preocupações do nosso grupo humano.
(Plínio Salgado in O Ritmo da história, ed. Voz do Oeste/MEC, 1978, pp. 55-57)
As nações têm uma personalidade? Se têm, de que elementos ela se constitui? E de que modo se manifesta?
Eis a pergunta que se nos oferecem, como preliminares de todas cogitações acerca dos objetivos políticos internos e externos e da linha de orientação de pensadores e de homens públicos, tendo-se em vista que a política não pode ser simplesmente uma serie de atos relacionados com os interesses pessoais e de grupos.
Respondemos, inicialmente, que as nações possuem uma personalidade. O conceito de soberania e os princípios em que assenta o Direito Internacional se fundamentam na existência real de entidades coletivas tipicamente diferenciadas.
Essa personalidade nacional é constituída de elementos essencialmente espirituais, ainda que se manifeste nas expressões materiais visíveis da sociedade civil e dos tipos de vida condicionados a circunstâncias físicas especificas.
A extensão territorial do país, o índice da população, o potencial econômico, pode ser desigual, mas a personalidade nacional de um pequeno povo em pequeno território tem o mesmo valor da personalidade nacional de um povo numeroso em vasta área territorial. O que importa é a diferenciação historicamente processada e nitidamente manifestada. A Bélgica e a Rússia, o Haiti e os Estados Unidos, Nicarágua e o Brasil, representam, cada qual, um valor distinto, devendo usufruir, de idênticos direitos no convívio internacional.
A manifestação dessa entidade coletiva traduz o que poderemos chamar o gênio de um povo. E o gênio de um povo exprime um caráter próprio, um modo de ser, uma tendência vocacional, uma consciência de missão histórica, uma aspiração a idéias que justificam a permanência e a sobrevivência da Nação.
As nações nascem quando aquele caráter se define, aquele modo de ser se fixa, aquela tendência vocacional se revela, aquela consciência se determina e aquela aspiração se torna o móvel das ações políticas dos indivíduos e dos Estados. E as nações definham e morrem, à proporção que vão perdendo o sentido da sua própria existência e encontram diante de si o vazio imenso de ideais a serem procurados.
Isto posto, significa, sem sombra de dúvidas, que as nações onde tudo se reduziu a interesses de ordem material e onde cada pessoa da sociedade nacional somente se preocupa com os seus interesses egoísticos, são nações fadadas a desaparecer como personalidade histórica e, perdendo todo o motivo de sua continuação, perdem todo o direito de sobreviver.
Mas é preciso ter-se em conta que um Povo, constituído em Nação, está sujeito a esse desgaste, a essa desintegração, se não for constantemente estimulado de sorte a manter viva a consciência do grupo, o sentido histórico de uma determinação coletiva. O estimulo há de ser dado pelos homens que representam os valores índices mais conscientes da comunidade nacional. Se esses valores faltarem, pode-se ter como certa a desagregação e a ruína da Nação.
A consciência de grupo tem seu ponto de partida na memória. Esquecer é morrer. A vida – não a vida vegetativa e rudimentar, mas a vida que sabe que vive, é a presença de toda uma série de atos, de acontecimentos pretéritos e atuais, compondo a noção do ser no próprio ser.
Significa isto que a ausência da memória tem como resultado um ser, que sendo, é como se não fosse. Essa inconsciência paralisa todos os movimentos de defesa ou de afirmação. Vegetaliza o ser, primeiro pela abolição da vontade, depois pela eliminação do próprio instinto de conservação. O ser deixa de ser sujeito para ser objeto. Deixa de ser agente para ser paciente.
As Nações sem memória se deixam conduzir pelos acontecimentos. Rege-as o determinismo brutal dos fatos. Decide seus destinos a vontade estranha de outros grupos nacionais conscientes. A Nação vegetalizada no pragmatismo dos interesses cotidianos, brutalizada pelos interesses mesquinhos do dia a dia, absorvida pelas exclusivas preocupações materiais do comercio e da politicagem dos facciosismos estreitos, já não conhece a maravilhosa e exaltadora conjugação dos verbos em voz ativa, já não sabe clamar com força esta palavra "eu".
Ensinar a Nação a saber quem é, para que ela continue a ser, é a missao dos seus condutores. Foi a missão de Moisés através do deserto. Foi a missão de Péricles na Grécia. Foi a missão de Isabel de Castela, de Afonso Henriques quando fundou a Monarquia Lusitana, de Richelieu unificando a França, de Pedro, o Grande, construindo a Rússia, de Frederico, criando a Alemanha, de Washington, anunciando ao mundo uma nova nação, de José Bonifácio fundando o Império Brasileiro.
Precisamos de homens conscientes, para construirmos o Brasil consciente.
Precisamos dar sentido à vida brasileira. Sentido histórico derivando das fontes da História. Sentido espiritual, superando as misérias da hora presente, a confusão prenunciadora da desintegração nacional, e elevando nível das preocupações do nosso grupo humano.
(Plínio Salgado in O Ritmo da história, ed. Voz do Oeste/MEC, 1978, pp. 55-57)
segunda-feira, janeiro 10, 2005
Nocturno de S. Silvestre
por António Sardinha
(nos 80 anos da sua morte)
[António Maria de Sousa Sardinha - n. Monforte do Alentejo, 9 de Setembro de 1887 - m. Elvas, 10 de Janeiro de 1925].
Não tardará talvez uma hora que na torre da catedral, minha vizinha, o relógio anuncie pausadamente a entrada do Ano Novo. À orla de 1920, eu quero lembrar esse 1919 que vai desaparecer, deixando de si um rasto de ruínas e sangue, onde, por braço da Morte, se passeia a Esperança, - a boa semeadora infatigável. Como nunca, a dois passos da terra ancestral da Pátria, eu sinto a tortura indefinível do exílio! Mas também, como nunca, eu sinto o facto universal do Cristianismo, fazendo-me, como membro vivo da Cidade de Deus, cidadão de todo o mundo que reconheça e proclame Cristo. Sofro, bem o sei. No entanto, quando na catedral o relógio disser que mais um ano morreu, a minha fé procurará as palavras vitoriosas do Te-Deum, para exprimir a minha alegria infinita de haver nascido no tempo em que nasci!
Não se revolta o meu egoísmo por ser de guerra e não de podre quietação a era trágica que atravessamos. E na humildade da minha inteligência eu confesso com orgulho este destino áspero que me associa ao grande drama da nossa época e me torna a mim, - pobre indivíduo de um momento, um valor incorporado na marcha da história para a realização dos seus desígnios imortais. Como nunca, a dignidade da existência me visita na tristeza dos meus dias e como nunca a tristeza dos meus dias é uma tristeza forte, uma tristeza que alimenta e transfigura! Meditação da noite última do ano... Não me curvo, vencido, nem de longe duvido do triunfo que já além desdobra as suas enormes asas vingadoras. Só os meus olhos se humedecem um pouco, na demanda de visões serenas, de rostos amigos, onde se repousarem.
E, entretanto, os minutos avançam, como a fatalidade avança tecendo com mãos ligeiras a teia espessa do irreparável. Desdobro-me, - amplio-me na onda misteriosa e palpitante que sobe por mim acima. Meditação de S. Silvestre - meditação da noite última do ano... E o espectro do Ano-Mil, o espectro do milenário, espavorido diante das portas abertas do futuro, dir-se-ia que ressuscita de novo, ao limiar de 1920. Traçando, então, o sinal da Cruz afasto de mim a garra diabólica da negação. Creio no Espírito sobre todas as coisas criadas e incriadas - creio no Verbo feito Carne para nos remir e salvar. E o Espírito reinará com a vinda do Senhor para a sorte dura dos homens sobre as palhinhas miseráveis de Belém.
Como na letra admirável do Salmo, os meus ossos humilhados estremecem de júbilo. Eu creio!
Eu creio! É um cântico de libertação o cântico que eu entoo, como David, diante da Arca, à orla do ano que não tardará a romper - à cabeceira do outro que já resvala para a confusão primitiva das origens. E, solene, o relógio entrou a falar do alto da catedral.
Na comemoração dos vivos e dos mortos recolho-me à cadeia interminável da geração de que provenho. Era uma vez... Era uma vez uma vila clara, com muralhas caídas, um lar honrado de lavradores, onde o arado alternava com a espada. Com o suor sagrado dos velhos construtores de antigamente, essa família se enraizava e durava. Foi árvore frondosa, bracejando devagar, mas bracejando com vigor. Se lhe buscarem bem as ramadas, tanto as acharão devolvidas à terra, de que haviam surgido obscuras e sem nome, como estilizadas já, a tintas heráldicas, nos armoriais luzidíssimos do Reino.
Pois na jornada larga dos séculos, o lar que nos séculos se cimentava pela virtude e pelo trabalho, viu apagar-se o lume tutelar e sumirem-se no vago as expressões serenas dos avós. Às vésperas de 1820, precisamente há cem anos. Levado pelo mal da França um moço fugira de casa, madrugada funda, ardendo na inquietação do vento novo. Acolheram-no no exército que, batendo as tropas de Napoleão, recebia delas a bebedeira nefasta que nos prostraria depois.
Atrás do moço que fugira, ficava ao abandono a herdade paterna, meio esquecida na melancolia nobre do montado - o fumo doméstico espiralando debalde para o céu, nas arcas de vistosa pregaria amarela, com a farda agaloada das ordenança, os títulos venerandos do vínculo, repousando-se ao lado das colchas bordadas dos grandes dias. E o fogo no lar tornou-se cinza, e a cinza a pouco e pouco se desfez e perdeu. às vésperas de 1820, há cem anos precisamente.
Mas o ciclo funesto encerra-se decerto com o neto expiando no exílio o pecado ingénuo do Antepassado. O pecado que eu expio é o pecado que expia uma nação inteira, pecado de entusiasmo, pecado de sensibilidade. Inclinemos a cabeça, perante a lição formidável do Eterno! O indivíduo nada vale senão pela regra que serve. Como o moço que fugiu na madrugada funda, também Portugal se rebelou contra a disciplina doce que formava e garantia o segredo da sua bela alma intransmissível. E na lareira imensa da nacionalidade a cinza se desfez e perdeu, como se desfez e perdeu, a meio do montado alentejano, na casa abandonada em que tantos anos do meu sangue viveram e morreram...
Meditação de S. Silvestre, primeira vigília do ano. Eu me persigno confessando ao Deus de meus Pais, que é Pai de todos os homens, Criador de coisas criadas e incriadas. A névoa lá fora adelgaçou-se, como que deixando transluzir uma poeira finíssima de luar. A escada de Jacob revela-se na noite escura, para os que sabem elevar o pensamento bem alto. Encosto-me aos seus degraus, e encontro com que embalar a minha amargura. E se o pecado do moço que fugiu se der por expiado na minha expiação, que eu possa um dia reacender o lume, desfeito em cinza perdida, lá longe, na casa abandonada, a meio do escampado alentejano!
(In António Sardinha, Na Feira dos Mitos. Ideias & Factos, 2ª edição, Lisboa, 1942, pp. 305-309)
(nos 80 anos da sua morte)
[António Maria de Sousa Sardinha - n. Monforte do Alentejo, 9 de Setembro de 1887 - m. Elvas, 10 de Janeiro de 1925].
Não tardará talvez uma hora que na torre da catedral, minha vizinha, o relógio anuncie pausadamente a entrada do Ano Novo. À orla de 1920, eu quero lembrar esse 1919 que vai desaparecer, deixando de si um rasto de ruínas e sangue, onde, por braço da Morte, se passeia a Esperança, - a boa semeadora infatigável. Como nunca, a dois passos da terra ancestral da Pátria, eu sinto a tortura indefinível do exílio! Mas também, como nunca, eu sinto o facto universal do Cristianismo, fazendo-me, como membro vivo da Cidade de Deus, cidadão de todo o mundo que reconheça e proclame Cristo. Sofro, bem o sei. No entanto, quando na catedral o relógio disser que mais um ano morreu, a minha fé procurará as palavras vitoriosas do Te-Deum, para exprimir a minha alegria infinita de haver nascido no tempo em que nasci!
Não se revolta o meu egoísmo por ser de guerra e não de podre quietação a era trágica que atravessamos. E na humildade da minha inteligência eu confesso com orgulho este destino áspero que me associa ao grande drama da nossa época e me torna a mim, - pobre indivíduo de um momento, um valor incorporado na marcha da história para a realização dos seus desígnios imortais. Como nunca, a dignidade da existência me visita na tristeza dos meus dias e como nunca a tristeza dos meus dias é uma tristeza forte, uma tristeza que alimenta e transfigura! Meditação da noite última do ano... Não me curvo, vencido, nem de longe duvido do triunfo que já além desdobra as suas enormes asas vingadoras. Só os meus olhos se humedecem um pouco, na demanda de visões serenas, de rostos amigos, onde se repousarem.
E, entretanto, os minutos avançam, como a fatalidade avança tecendo com mãos ligeiras a teia espessa do irreparável. Desdobro-me, - amplio-me na onda misteriosa e palpitante que sobe por mim acima. Meditação de S. Silvestre - meditação da noite última do ano... E o espectro do Ano-Mil, o espectro do milenário, espavorido diante das portas abertas do futuro, dir-se-ia que ressuscita de novo, ao limiar de 1920. Traçando, então, o sinal da Cruz afasto de mim a garra diabólica da negação. Creio no Espírito sobre todas as coisas criadas e incriadas - creio no Verbo feito Carne para nos remir e salvar. E o Espírito reinará com a vinda do Senhor para a sorte dura dos homens sobre as palhinhas miseráveis de Belém.
Como na letra admirável do Salmo, os meus ossos humilhados estremecem de júbilo. Eu creio!
Eu creio! É um cântico de libertação o cântico que eu entoo, como David, diante da Arca, à orla do ano que não tardará a romper - à cabeceira do outro que já resvala para a confusão primitiva das origens. E, solene, o relógio entrou a falar do alto da catedral.
Na comemoração dos vivos e dos mortos recolho-me à cadeia interminável da geração de que provenho. Era uma vez... Era uma vez uma vila clara, com muralhas caídas, um lar honrado de lavradores, onde o arado alternava com a espada. Com o suor sagrado dos velhos construtores de antigamente, essa família se enraizava e durava. Foi árvore frondosa, bracejando devagar, mas bracejando com vigor. Se lhe buscarem bem as ramadas, tanto as acharão devolvidas à terra, de que haviam surgido obscuras e sem nome, como estilizadas já, a tintas heráldicas, nos armoriais luzidíssimos do Reino.
Pois na jornada larga dos séculos, o lar que nos séculos se cimentava pela virtude e pelo trabalho, viu apagar-se o lume tutelar e sumirem-se no vago as expressões serenas dos avós. Às vésperas de 1820, precisamente há cem anos. Levado pelo mal da França um moço fugira de casa, madrugada funda, ardendo na inquietação do vento novo. Acolheram-no no exército que, batendo as tropas de Napoleão, recebia delas a bebedeira nefasta que nos prostraria depois.
Atrás do moço que fugira, ficava ao abandono a herdade paterna, meio esquecida na melancolia nobre do montado - o fumo doméstico espiralando debalde para o céu, nas arcas de vistosa pregaria amarela, com a farda agaloada das ordenança, os títulos venerandos do vínculo, repousando-se ao lado das colchas bordadas dos grandes dias. E o fogo no lar tornou-se cinza, e a cinza a pouco e pouco se desfez e perdeu. às vésperas de 1820, há cem anos precisamente.
Mas o ciclo funesto encerra-se decerto com o neto expiando no exílio o pecado ingénuo do Antepassado. O pecado que eu expio é o pecado que expia uma nação inteira, pecado de entusiasmo, pecado de sensibilidade. Inclinemos a cabeça, perante a lição formidável do Eterno! O indivíduo nada vale senão pela regra que serve. Como o moço que fugiu na madrugada funda, também Portugal se rebelou contra a disciplina doce que formava e garantia o segredo da sua bela alma intransmissível. E na lareira imensa da nacionalidade a cinza se desfez e perdeu, como se desfez e perdeu, a meio do montado alentejano, na casa abandonada em que tantos anos do meu sangue viveram e morreram...
Meditação de S. Silvestre, primeira vigília do ano. Eu me persigno confessando ao Deus de meus Pais, que é Pai de todos os homens, Criador de coisas criadas e incriadas. A névoa lá fora adelgaçou-se, como que deixando transluzir uma poeira finíssima de luar. A escada de Jacob revela-se na noite escura, para os que sabem elevar o pensamento bem alto. Encosto-me aos seus degraus, e encontro com que embalar a minha amargura. E se o pecado do moço que fugiu se der por expiado na minha expiação, que eu possa um dia reacender o lume, desfeito em cinza perdida, lá longe, na casa abandonada, a meio do escampado alentejano!
(In António Sardinha, Na Feira dos Mitos. Ideias & Factos, 2ª edição, Lisboa, 1942, pp. 305-309)
sexta-feira, janeiro 07, 2005
A Chefia do Estado
por João Bettencourt
Na história milenar da Monarquia, evoluiu-se do poder total para a total ausência de poder. Não quer isto dizer que o regime monárquico se adapte sem critério à evolução dos tempos, como uma massa informe e fluida se adapta aos continentes.
O que é facto é que, no apreço das contingências, o regime monárquico consegue de uma forma tão profunda como eficaz, encontrar a melhor forma de corresponder ao interesse comum e à filosofia da construção democrática.
O poder total, quando todos os outros poderes eram incipientes ou inexistentes; a ausência de poder, quando todos os poderes atingiram o ápice da sua expressão própria, consagrada directa ou indirectamente no voto popular.
Como é sabido, o chefe de Estado no regime monárquico apenas modera os poderes existentes, tempera as suas expressões e prepara a recuperação das crises quando estas eclodem.
A intervenção do Rei na vida política está necessariamente prevista e obedece ao imperativo das exigências que o quadro normativo enumera. Para além das normas, é da sua própria natureza a receptividade ao aleatório, às vontades marginais que não conseguem erguer a voz nos areópagos, aos interesses e necessidades dos que sofrem, dos indigentes ou dos banidos numa sociedade que sabemos estratificada pela pressão dos factores económicos.
A República não presidencialista aproxima-se da filosofia do regime monárquico com a diferença óbvia da eleição e não da designação ou aclamação do Chefe do Estado. Será que essa eleição é de facto uma mais valia democrática em relação à sucessão dinástica?
Não considero que seja uma mais valia. Em primeiro lugar, porque os denominados eleitores do Presidente que vence as eleições, ao mínimo pretexto sempre se reclamam dos vínculos, da orientação programática e do próprio compromisso do programa eleitoral exigindo comportamentos, atitudes e orientações como contrapartida do voto que outorgaram. Por outro lado, os políticos que acedem ao cargo transportam na sua biografia quase sempre uma fervorosa militância partidária que, consciente ou inconscientemente, acaba por condicionar os seus actos. É vulgar verificar-se no exercício do cargo um protagonismo tão vivo que dir-se-ia uma procura artificial de conteúdo para um cargo que efectivamente é de conteúdo reduzido, o que, numa situação mais sensível, pode conduzir ao súbito agravamento das situações e até à lesão constitucional, com evidente prejuízo do sistema democrático.
Naturalmente este comportamento que é encarado com normalidade no sistema republicano, não favorece a isenção e a independência que no regime monárquico se configura como essencial e que a própria sucessão dinástica incrementa ao induzir, pela educação e formação do Príncipe, estes princípios como idiossincráticos nos contornos da personalidade Real.
Esta, sim, é uma mais valia nunca superável no sistema republicano, a que acresce a total independência, quer dos interesses, quer do poder estabelecido, porque o Rei persiste para além dos interesses, dos poderes e das circunstâncias.
A monarquia, contrariamente ao que é vulgarmente propalado, não é um teatro, é uma atitude natural e moral no estatuto de uma família que reúne as condições históricas da continuidade, correspondendo por isso a uma linha dinástica, que respeita de uma maneira profunda e total o voto popular no curso das instituições que de facto exercem o poder.
Em Portugal, qual é a possibilidade da restauração do regime monárquico ou, como querem alguns, a sua instauração em moldes hodiernos?
Muitos estão convencidos que tal depende do carisma do Chefe da Casa Real como se se tratasse de um movimento político de base doutrinal que desce à praça para ganhar o seu lugar natural. É óbvio que a personalidade do Chefe da Casa Real não é despicienda, pois o teor do seu compromisso, a fidelidade aos princípios e o entusiasmo pela causa, são determinantes na fé dos prosélitos; mas o essencial é a acção dos monárquicos, o empenho no esclarecimento, na demonstração da bondade da opção, do combate leal aos equívocos, dislates e torpezas que ganharam terreno ao longo de noventa anos de República que, apesar de recheada de vicissitudes e crises, conseguiu passar a ideia do seu teor dogmático, abjurando o regime monárquico como se este fosse o inimigo da democracia.
Algum erro houve ao longo destes mesmos anos de militância, para que a ideia não ganhasse peso suficiente e se mantivessem preconceitos absurdos acerca da instituição monárquica.
Por outro lado, a convivência descomprometida com temas e símbolos tradicionais da Monarquia sem que a seriedade e a exigência do compromisso sejam convocados, acomodou grande parte dos monárquicos à indiferença, sobretudo aqueles em cujo seio familiar as responsabilidades históricas deviam ser mais vivas.
Este é talvez um tema de reflexão para as associações monárquicas existentes. Instaurar uma nova militância que viva menos de bandeiras e mais de afincada persistência nos objectivos, que leve à cidade, aos “media”, às universidades, às empresas e às assembleias a evidência da necessidade de mudança para um novo sistema. A Monarquia não pode ser adiada na vida das instituições sobretudo quando os desafios estão à porta e as crises do sistema republicano são perfeitamente visíveis.
Para Portugal, cujo lugar no mundo contemporâneo associado à imensa carga histórica que o conforma, está mais ameaçado que nunca, esta necessidade é talvez mais determinante do que qualquer observador menos atento alguma vez suspeitaria. Assim o entendam os monárquicos.
Tudo o resto, até a surpresa, virá por acréscimo.
Setembro de 2004
Na história milenar da Monarquia, evoluiu-se do poder total para a total ausência de poder. Não quer isto dizer que o regime monárquico se adapte sem critério à evolução dos tempos, como uma massa informe e fluida se adapta aos continentes.
O que é facto é que, no apreço das contingências, o regime monárquico consegue de uma forma tão profunda como eficaz, encontrar a melhor forma de corresponder ao interesse comum e à filosofia da construção democrática.
O poder total, quando todos os outros poderes eram incipientes ou inexistentes; a ausência de poder, quando todos os poderes atingiram o ápice da sua expressão própria, consagrada directa ou indirectamente no voto popular.
Como é sabido, o chefe de Estado no regime monárquico apenas modera os poderes existentes, tempera as suas expressões e prepara a recuperação das crises quando estas eclodem.
A intervenção do Rei na vida política está necessariamente prevista e obedece ao imperativo das exigências que o quadro normativo enumera. Para além das normas, é da sua própria natureza a receptividade ao aleatório, às vontades marginais que não conseguem erguer a voz nos areópagos, aos interesses e necessidades dos que sofrem, dos indigentes ou dos banidos numa sociedade que sabemos estratificada pela pressão dos factores económicos.
A República não presidencialista aproxima-se da filosofia do regime monárquico com a diferença óbvia da eleição e não da designação ou aclamação do Chefe do Estado. Será que essa eleição é de facto uma mais valia democrática em relação à sucessão dinástica?
Não considero que seja uma mais valia. Em primeiro lugar, porque os denominados eleitores do Presidente que vence as eleições, ao mínimo pretexto sempre se reclamam dos vínculos, da orientação programática e do próprio compromisso do programa eleitoral exigindo comportamentos, atitudes e orientações como contrapartida do voto que outorgaram. Por outro lado, os políticos que acedem ao cargo transportam na sua biografia quase sempre uma fervorosa militância partidária que, consciente ou inconscientemente, acaba por condicionar os seus actos. É vulgar verificar-se no exercício do cargo um protagonismo tão vivo que dir-se-ia uma procura artificial de conteúdo para um cargo que efectivamente é de conteúdo reduzido, o que, numa situação mais sensível, pode conduzir ao súbito agravamento das situações e até à lesão constitucional, com evidente prejuízo do sistema democrático.
Naturalmente este comportamento que é encarado com normalidade no sistema republicano, não favorece a isenção e a independência que no regime monárquico se configura como essencial e que a própria sucessão dinástica incrementa ao induzir, pela educação e formação do Príncipe, estes princípios como idiossincráticos nos contornos da personalidade Real.
Esta, sim, é uma mais valia nunca superável no sistema republicano, a que acresce a total independência, quer dos interesses, quer do poder estabelecido, porque o Rei persiste para além dos interesses, dos poderes e das circunstâncias.
A monarquia, contrariamente ao que é vulgarmente propalado, não é um teatro, é uma atitude natural e moral no estatuto de uma família que reúne as condições históricas da continuidade, correspondendo por isso a uma linha dinástica, que respeita de uma maneira profunda e total o voto popular no curso das instituições que de facto exercem o poder.
Em Portugal, qual é a possibilidade da restauração do regime monárquico ou, como querem alguns, a sua instauração em moldes hodiernos?
Muitos estão convencidos que tal depende do carisma do Chefe da Casa Real como se se tratasse de um movimento político de base doutrinal que desce à praça para ganhar o seu lugar natural. É óbvio que a personalidade do Chefe da Casa Real não é despicienda, pois o teor do seu compromisso, a fidelidade aos princípios e o entusiasmo pela causa, são determinantes na fé dos prosélitos; mas o essencial é a acção dos monárquicos, o empenho no esclarecimento, na demonstração da bondade da opção, do combate leal aos equívocos, dislates e torpezas que ganharam terreno ao longo de noventa anos de República que, apesar de recheada de vicissitudes e crises, conseguiu passar a ideia do seu teor dogmático, abjurando o regime monárquico como se este fosse o inimigo da democracia.
Algum erro houve ao longo destes mesmos anos de militância, para que a ideia não ganhasse peso suficiente e se mantivessem preconceitos absurdos acerca da instituição monárquica.
Por outro lado, a convivência descomprometida com temas e símbolos tradicionais da Monarquia sem que a seriedade e a exigência do compromisso sejam convocados, acomodou grande parte dos monárquicos à indiferença, sobretudo aqueles em cujo seio familiar as responsabilidades históricas deviam ser mais vivas.
Este é talvez um tema de reflexão para as associações monárquicas existentes. Instaurar uma nova militância que viva menos de bandeiras e mais de afincada persistência nos objectivos, que leve à cidade, aos “media”, às universidades, às empresas e às assembleias a evidência da necessidade de mudança para um novo sistema. A Monarquia não pode ser adiada na vida das instituições sobretudo quando os desafios estão à porta e as crises do sistema republicano são perfeitamente visíveis.
Para Portugal, cujo lugar no mundo contemporâneo associado à imensa carga histórica que o conforma, está mais ameaçado que nunca, esta necessidade é talvez mais determinante do que qualquer observador menos atento alguma vez suspeitaria. Assim o entendam os monárquicos.
Tudo o resto, até a surpresa, virá por acréscimo.
Setembro de 2004
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