por António Sardinha
(nos 80 anos da sua morte)
[António Maria de Sousa Sardinha - n. Monforte do Alentejo, 9 de Setembro de 1887 - m. Elvas, 10 de Janeiro de 1925].
Não tardará talvez uma hora que na torre da catedral, minha vizinha, o relógio anuncie pausadamente a entrada do Ano Novo. À orla de 1920, eu quero lembrar esse 1919 que vai desaparecer, deixando de si um rasto de ruínas e sangue, onde, por braço da Morte, se passeia a Esperança, - a boa semeadora infatigável. Como nunca, a dois passos da terra ancestral da Pátria, eu sinto a tortura indefinível do exílio! Mas também, como nunca, eu sinto o facto universal do Cristianismo, fazendo-me, como membro vivo da Cidade de Deus, cidadão de todo o mundo que reconheça e proclame Cristo. Sofro, bem o sei. No entanto, quando na catedral o relógio disser que mais um ano morreu, a minha fé procurará as palavras vitoriosas do Te-Deum, para exprimir a minha alegria infinita de haver nascido no tempo em que nasci!
Não se revolta o meu egoísmo por ser de guerra e não de podre quietação a era trágica que atravessamos. E na humildade da minha inteligência eu confesso com orgulho este destino áspero que me associa ao grande drama da nossa época e me torna a mim, - pobre indivíduo de um momento, um valor incorporado na marcha da história para a realização dos seus desígnios imortais. Como nunca, a dignidade da existência me visita na tristeza dos meus dias e como nunca a tristeza dos meus dias é uma tristeza forte, uma tristeza que alimenta e transfigura! Meditação da noite última do ano... Não me curvo, vencido, nem de longe duvido do triunfo que já além desdobra as suas enormes asas vingadoras. Só os meus olhos se humedecem um pouco, na demanda de visões serenas, de rostos amigos, onde se repousarem.
E, entretanto, os minutos avançam, como a fatalidade avança tecendo com mãos ligeiras a teia espessa do irreparável. Desdobro-me, - amplio-me na onda misteriosa e palpitante que sobe por mim acima. Meditação de S. Silvestre - meditação da noite última do ano... E o espectro do Ano-Mil, o espectro do milenário, espavorido diante das portas abertas do futuro, dir-se-ia que ressuscita de novo, ao limiar de 1920. Traçando, então, o sinal da Cruz afasto de mim a garra diabólica da negação. Creio no Espírito sobre todas as coisas criadas e incriadas - creio no Verbo feito Carne para nos remir e salvar. E o Espírito reinará com a vinda do Senhor para a sorte dura dos homens sobre as palhinhas miseráveis de Belém.
Como na letra admirável do Salmo, os meus ossos humilhados estremecem de júbilo. Eu creio!
Eu creio! É um cântico de libertação o cântico que eu entoo, como David, diante da Arca, à orla do ano que não tardará a romper - à cabeceira do outro que já resvala para a confusão primitiva das origens. E, solene, o relógio entrou a falar do alto da catedral.
Na comemoração dos vivos e dos mortos recolho-me à cadeia interminável da geração de que provenho. Era uma vez... Era uma vez uma vila clara, com muralhas caídas, um lar honrado de lavradores, onde o arado alternava com a espada. Com o suor sagrado dos velhos construtores de antigamente, essa família se enraizava e durava. Foi árvore frondosa, bracejando devagar, mas bracejando com vigor. Se lhe buscarem bem as ramadas, tanto as acharão devolvidas à terra, de que haviam surgido obscuras e sem nome, como estilizadas já, a tintas heráldicas, nos armoriais luzidíssimos do Reino.
Pois na jornada larga dos séculos, o lar que nos séculos se cimentava pela virtude e pelo trabalho, viu apagar-se o lume tutelar e sumirem-se no vago as expressões serenas dos avós. Às vésperas de 1820, precisamente há cem anos. Levado pelo mal da França um moço fugira de casa, madrugada funda, ardendo na inquietação do vento novo. Acolheram-no no exército que, batendo as tropas de Napoleão, recebia delas a bebedeira nefasta que nos prostraria depois.
Atrás do moço que fugira, ficava ao abandono a herdade paterna, meio esquecida na melancolia nobre do montado - o fumo doméstico espiralando debalde para o céu, nas arcas de vistosa pregaria amarela, com a farda agaloada das ordenança, os títulos venerandos do vínculo, repousando-se ao lado das colchas bordadas dos grandes dias. E o fogo no lar tornou-se cinza, e a cinza a pouco e pouco se desfez e perdeu. às vésperas de 1820, há cem anos precisamente.
Mas o ciclo funesto encerra-se decerto com o neto expiando no exílio o pecado ingénuo do Antepassado. O pecado que eu expio é o pecado que expia uma nação inteira, pecado de entusiasmo, pecado de sensibilidade. Inclinemos a cabeça, perante a lição formidável do Eterno! O indivíduo nada vale senão pela regra que serve. Como o moço que fugiu na madrugada funda, também Portugal se rebelou contra a disciplina doce que formava e garantia o segredo da sua bela alma intransmissível. E na lareira imensa da nacionalidade a cinza se desfez e perdeu, como se desfez e perdeu, a meio do montado alentejano, na casa abandonada em que tantos anos do meu sangue viveram e morreram...
Meditação de S. Silvestre, primeira vigília do ano. Eu me persigno confessando ao Deus de meus Pais, que é Pai de todos os homens, Criador de coisas criadas e incriadas. A névoa lá fora adelgaçou-se, como que deixando transluzir uma poeira finíssima de luar. A escada de Jacob revela-se na noite escura, para os que sabem elevar o pensamento bem alto. Encosto-me aos seus degraus, e encontro com que embalar a minha amargura. E se o pecado do moço que fugiu se der por expiado na minha expiação, que eu possa um dia reacender o lume, desfeito em cinza perdida, lá longe, na casa abandonada, a meio do escampado alentejano!
(In António Sardinha, Na Feira dos Mitos. Ideias & Factos, 2ª edição, Lisboa, 1942, pp. 305-309)
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