quarta-feira, janeiro 19, 2005

Personalidade Nacional

por Plínio Salgado

As nações têm uma personalidade? Se têm, de que elementos ela se constitui? E de que modo se manifesta?

Eis a pergunta que se nos oferecem, como preliminares de todas cogitações acerca dos objetivos políticos internos e externos e da linha de orientação de pensadores e de homens públicos, tendo-se em vista que a política não pode ser simplesmente uma serie de atos relacionados com os interesses pessoais e de grupos.

Respondemos, inicialmente, que as nações possuem uma personalidade. O conceito de soberania e os princípios em que assenta o Direito Internacional se fundamentam na existência real de entidades coletivas tipicamente diferenciadas.

Essa personalidade nacional é constituída de elementos essencialmente espirituais, ainda que se manifeste nas expressões materiais visíveis da sociedade civil e dos tipos de vida condicionados a circunstâncias físicas especificas.

A extensão territorial do país, o índice da população, o potencial econômico, pode ser desigual, mas a personalidade nacional de um pequeno povo em pequeno território tem o mesmo valor da personalidade nacional de um povo numeroso em vasta área territorial. O que importa é a diferenciação historicamente processada e nitidamente manifestada. A Bélgica e a Rússia, o Haiti e os Estados Unidos, Nicarágua e o Brasil, representam, cada qual, um valor distinto, devendo usufruir, de idênticos direitos no convívio internacional.

A manifestação dessa entidade coletiva traduz o que poderemos chamar o gênio de um povo. E o gênio de um povo exprime um caráter próprio, um modo de ser, uma tendência vocacional, uma consciência de missão histórica, uma aspiração a idéias que justificam a permanência e a sobrevivência da Nação.

As nações nascem quando aquele caráter se define, aquele modo de ser se fixa, aquela tendência vocacional se revela, aquela consciência se determina e aquela aspiração se torna o móvel das ações políticas dos indivíduos e dos Estados. E as nações definham e morrem, à proporção que vão perdendo o sentido da sua própria existência e encontram diante de si o vazio imenso de ideais a serem procurados.

Isto posto, significa, sem sombra de dúvidas, que as nações onde tudo se reduziu a interesses de ordem material e onde cada pessoa da sociedade nacional somente se preocupa com os seus interesses egoísticos, são nações fadadas a desaparecer como personalidade histórica e, perdendo todo o motivo de sua continuação, perdem todo o direito de sobreviver.

Mas é preciso ter-se em conta que um Povo, constituído em Nação, está sujeito a esse desgaste, a essa desintegração, se não for constantemente estimulado de sorte a manter viva a consciência do grupo, o sentido histórico de uma determinação coletiva. O estimulo há de ser dado pelos homens que representam os valores índices mais conscientes da comunidade nacional. Se esses valores faltarem, pode-se ter como certa a desagregação e a ruína da Nação.

A consciência de grupo tem seu ponto de partida na memória. Esquecer é morrer. A vida – não a vida vegetativa e rudimentar, mas a vida que sabe que vive, é a presença de toda uma série de atos, de acontecimentos pretéritos e atuais, compondo a noção do ser no próprio ser.

Significa isto que a ausência da memória tem como resultado um ser, que sendo, é como se não fosse. Essa inconsciência paralisa todos os movimentos de defesa ou de afirmação. Vegetaliza o ser, primeiro pela abolição da vontade, depois pela eliminação do próprio instinto de conservação. O ser deixa de ser sujeito para ser objeto. Deixa de ser agente para ser paciente.

As Nações sem memória se deixam conduzir pelos acontecimentos. Rege-as o determinismo brutal dos fatos. Decide seus destinos a vontade estranha de outros grupos nacionais conscientes. A Nação vegetalizada no pragmatismo dos interesses cotidianos, brutalizada pelos interesses mesquinhos do dia a dia, absorvida pelas exclusivas preocupações materiais do comercio e da politicagem dos facciosismos estreitos, já não conhece a maravilhosa e exaltadora conjugação dos verbos em voz ativa, já não sabe clamar com força esta palavra "eu".

Ensinar a Nação a saber quem é, para que ela continue a ser, é a missao dos seus condutores. Foi a missão de Moisés através do deserto. Foi a missão de Péricles na Grécia. Foi a missão de Isabel de Castela, de Afonso Henriques quando fundou a Monarquia Lusitana, de Richelieu unificando a França, de Pedro, o Grande, construindo a Rússia, de Frederico, criando a Alemanha, de Washington, anunciando ao mundo uma nova nação, de José Bonifácio fundando o Império Brasileiro.

Precisamos de homens conscientes, para construirmos o Brasil consciente.

Precisamos dar sentido à vida brasileira. Sentido histórico derivando das fontes da História. Sentido espiritual, superando as misérias da hora presente, a confusão prenunciadora da desintegração nacional, e elevando nível das preocupações do nosso grupo humano.


(Plínio Salgado in O Ritmo da história, ed. Voz do Oeste/MEC, 1978, pp. 55-57)

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