CARTA DO CANADÁ
por Fernanda Leitão
Foi nos anos 60, não me lembro exactamente do ano. Aquela manhã de 10 de Junho, feriado nacional desde que me conheço, veio esplendorosa de sol, de céu azul, daquela luz embriagadora que só Lisboa dá.
Trabalhava então numa agência noticiosa estrangeira e foi-me distribuído em agenda ir à cerimónia oficial no Terreiro do Paço, com as tropas em parada, as bandeiras ao vento, as condecorações aos heróis da guerra que então decorria em África, depois de perdida a India. A imprensa estrangeira representada em Lisboa caía ali em peso, as máquinas fotográficas e de filmar num frenesim, porque cada qual a seu modo tinha a noção de estar a registar as últimas glórias dum império de 500 anos, porque todos aqueles correspondentes estrangeiros queriam ver, ao vivo, as lágrimas que Salazar não conseguia reprimir quando condecorava viúvas, órfãos ou pais do que tinham tombado no conflito. A sede de sangue e espectáculo vem de longe e é de sempre.
Terminado o trabalho, passei pela agência para emitir um telegrama breve, de rotina, como de costume nos anos anteriores. Mas, naquele dia, ao entrar na vasta sala de redacção onde apenas um velho contínuo cabeceava a ler o jornal, pois era feriado de imprensa obrigatório, ouvi as campaínhas do telex a tocar ininterruptamente, numa estridência de mau agoiro. Fui ver o que era. A máquina vomitava telegramas alarmados. O Egipto estava a ser bombardeado por Israel. Era a Guerra dos Seis Dias.
Por muito obrigatório que seja um feriado, ao jornalista, ao padre, ao médico, ao bombeiro, isso pouco ou nada garante de repouso. Porque há profissões de 24 horas sobre 24, se for necessário. Sentei-me em frente do telex transmissor, pedi ao contínuo que me fosse dando os telegramas e que localizasse a chefia para mandar reforços. Mas com aquele Junho quentinho e a praia a dois passos, fiquei de castigo até à noite.
No meio de uma montanha de telegramas, comentários, noticias alargadas, deparei com uma descrição pitoresca de um chefe de guerrilha, feroz opositor de Israel, que tinha sido obrigado a fugir. Tinha sido visto a cavalo num burro na estrada de Jericó. Chamava-se Yasser Arafat. Começava ali a sua clandestinidade, o futuro bombardeamnto do Líbano, a anexação por Israel da parte de leão do estado palestiniano. Começava naquela quase picaresca fuga um dos conflitos mais perigosos do mundo actual, sem dúvida aquele que mais facilmente pode enredar o mundo numa guerra generalizada. E, sem dúvida, o mais controverso pela desigualdade de meios militares em presença, pelo lançamento do povo palestiniano na miséria, pelo facto incontornável de a administração americana dar anualmente ao estado de Israel 20 biliões de dólares.
Não creio que a paz esteja perto depois da morte de Arafat. Há quem se congratule pela morte do terrorista-mor, mas o regozijo torna-se risível quando pensamos que quem o sente usou a arma do terror para impor a sua noção de país, foi também terrorista quando lhe pareceu não haver outro meio. Penso em Ben Gurion, em Sharon, em vários outros. Penso na Mossad, a célebre polícia política israelita, tantas vezes envolvida em casos sujos fora das suas fronteiras.
Também não creio que haja pessoas totalmente más ou totalmente boas. Apesar de islâmico e homem de guerrilha, Arafat respeitava o Cristianismo, tinha bom relacionamento com os cristãos locais, frequentava mesmo as cerimónias de Natal no rito católico. E, deiam-lhe as voltas que quiserem, não foi ele quem mandou bombardear a Igreja da Natividade, em Jerusalém, nem conventos, nem outras igrejas. Mel Gibson diria que Arafat nem sequer descendia dos que mataram Cristo. Oriana Falacci diria que sou uma besta. Mas nós somos tão diferentes! Ela aceita o aborto como bom e eu não, ela não é crente e eu sou. Ela é uma vedeta do jornalismo internacional, eu sou uma pobre jornalista reformada ao canto do mundo e ao canto da vida.
O Papa cultivou o entendimento com os islâmicos, porque era um entendimento possível, realista. É que uma coisa é ser islâmico, muito outra é ser fundamentalista. O recado ficou dado a todos nós. Assim sejamos capazes de perceber a diferença. A Paz vale bem esse esforço.
Sem comentários:
Enviar um comentário