Em Março, a América confrontou a Rússia com a aquisição do Kosovo, o que supunha, como se confirmou recentemente, que teriam também já adquirido a Sérvia. Depois de reflectir aqui sobre a arrogância de alguns americanos, deixámos a seguinte pergunta: "Onde está a porta de saída para a Rússia?"
Estando confirmado que a Rússia encontrou a porta de saída, importa desfazer um equívoco que tem estado agora a ser difundido em alguma imprensa - o de que estaríamos a voltar à "guerra fria". Creio tratar-se de um erro de paralaxe.
Em 1952, quando o "vento da História" do nacionalismo, soprando desde Rabat até Hanoi, foi proclamado por Eisenhower - secundado por Macmillan em 1960 a respeito da África Austral - a URSS e os EUA procuravam apresentar-se como os dois pólos de atracção global. A chamada "guerra fria" fazia sentido num mundo em que se disputavam as ideologias "socialista" e "capitalista" e, a par dos "ventos da história" do nacionalismo, cumpriu nas décadas seguintes o seu papel; sem a "guerra fria", não teria sido possível aos americanos e russos substituir os europeus na Ásia, Médio Oriente, Magrebe e África Austral; sem a "guerra fria", nem o Tratado de Roma (1957) teria sido possível. Em 1975, porém, a "guerra fria" começou a esgotar-se quando Portugal foi por fim expulso de África, ou seja, quando o imperialismo formal das velhas potências europeias cedeu por completo à livre competição dos novos imperialismos informais. Assim que se encerrou o parêntesis dos velhos imperialismos europeus, logo se voltou à guerra civil europeia iniciada em 1914: a guerra pelo domínio da Eurásia.
É numa nova guerra civil europeia que estamos vai para duas décadas. A "guerra fria" não terminou com a queda do "muro de Berlim". A "guerra fria" terminou quando Gorbatchov propôs às potências sobreviventes da velha Europa a construção de uma "Casa Comum” com a Rússia; a guerra fria terminou quando foram lançadas a perestroika e a glasnot, abrindo a via para a desagregação da URSS e para a reintrodução de velhos beligerantes no Velho Continente.
E foi sobre este Velho Continente, em cuja extremidade ocidental os americanos, em mais de cinco décadas, não conseguiram anular outros Estados nacionais além de Portugal, que, nos últimos vinte anos, começaram a soprar de novo os "ventos da história" do nacionalismo.
Na actual fase da guerra civil europeia, está vedada aos americanos uma política coerente de desmantelamento de Estados imperiais, como na conjuntura de 1914-18, ou de anulação de fortes poderes centrípetos, como na conjuntura de 1939-45. Como foi bem compreendido pelos russos, nesta nova fase da guerra, iria sobressair a fragilidade americana, forçada a seguir duas políticas de difícil conciliação: a leste, teria que estimular o nacionalismo com que fragmentaria e adquiria Estados e espaços económicos; mas, a oeste, não podia deixar de continuar a estimular o cosmopolitismo financeiro com que pretendia realizar a fusão dos Estados da velha Europa, impedindo a reemergência da França e da Grã-Bretanha.
O nacionalismo que os americanos estimulam a leste acaba por ter efeitos não desejados a oeste. E é a leste que os americanos acabam de confirmar, de forma humilhante, que existe uma parede russa bem mais forte e determinada do que supunham.
Do actual ambiente nacionalista europeu - reeditando de certo modo as conjunturas de 1848, 1870, e 1930 - pode resultar a desagregação da Espanha, mas só muito dificilmente resultará a "União Europeia" desejada pelos americanos. E sem a fusão da Alemanha e da França, e a anulação do Reino Unido, não é possível aos americanos satelizar um espaço onde se anulem as diferenciações estratégicas dos Estados da Velha Europa. E sem a tal "União Europeia" desejada pelos americanos (a que foi afinal aprovada no Tratado de Lisboa) não é possível constituir a "Comunidade Transatlântica", de Vancouver a Vladivostoque.
Porque é que a Rússia passou a responder agora à violência com a violência? Porque pode. E não será a actual NATO que a irá demover. Negligenciando o poder da Rússia e sem poder actuar de forma coerente, haverá decerto quem nos EUA esteja agora a tomar consciência do desastre estratégico em que se deixaram atolar.
Os conflitos russo-americanos em torno do Kosovo e da Ossétia do Sul revelam que a Rússia não aceita o plano americano da "Comunidade Transatlântica". A Rússia continua a ter outros planos e está agora a começar a lançar todo o seu peso estratégico sobre a Velha Europa. Na Ucrânia, falta ver se o pior não está ainda por chegar.
Por muito que isso possa custar aos descendentes de George F. Kennan, os EUA não têm pela frente uma reedição da "guerra fria". Passou já o tempo das simulações russo-americanas e das esferas de influência num mundo bipolar. Nas últimas duas décadas, tanto na ex-Jugoslávia, como no Iraque ou no Afeganistão, etc., a guerra tem sido "quente" e com o envolvimento de várias potências. Esta é uma guerra sem vencedores antecipados e fim à vista, podendo surgir a todo o momento as mais inesperadas alianças. Nesta guerra, as potências com pretensão ao domínio da Eurásia estão a jogar com todos os seus recursos, tanto tangíveis como intangíveis. E se Washington deixou já de ser o centro da meteorologia mundial, a verdade é que ainda não perdeu a guerra, nem parece disposta a perdê-la.
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