CARTA DO CANADÁ
por Fernanda Leitão
Foi entre a sobremesa e o café, num discreto restaurante de Lisboa. Francisco Sá Carneiro, acendendo um perfumado charuto, queixou-se das picardias e pouco sérias partidas de elementos do seu partido. Os seus olhos de gato siamês chispavam de fúria mal contida, ao apontar o que já havia escrito num diário acerca da saloia romaria desses elementos a um sótão da embaixada americana, onde Mrs. Carlucci recebia ao serão com ar conspirativo, e aos que, assanhados como cristãos novos, clamavam contra os que não gostavam da Maçonaria. Eu mesma já tinha posto em sentido certa dama do PSD que se escandalizou com a minha recusa em ir aos serões da embaixatriz, deixando tudo muito claro: essa senhora é uma figura pública como eu, portanto, se tem interesse em falar comigo, podemos almoçar no Grémio Literário, com meia Lisboa a ver-nos, nada há que justifique encontros secretos. Talvez por isso eu tivesse respondido meio a sorrir quando o malogrado político se calou: “o PSD não existe”. Como não?, exclamou ele. Expliquei: o que está aí, o que existe, é a moldura do seu retrato, mais nada. Se um dia deixar o partido, muitos retratos passarão pela moldura até ela se partir. E acaba por se partir porque, com o tempo, aquilo acaba por ser como as Forças Armadas: dantes eram de élite mas, com a guerra, entrou tudo de roldão, até coxos, até tontos, tudo servia. Esses são os que partem tudo. Acabámos os dois a rir.
Tão longe estávamos dum avião despenhado, de tantas mortes, dum processo investigado de maneira a deixar um país inteiro a pensar que era outro caso como o que eliminou D. Carlos e o Príncipe D. Luís Filipe, Sidónio Pais, António Granjo, Carlos da Maia... Mais um caso para arquivar e branquear. E é que ninguém nos tira isso da cabeça.
Certo, certo, é que a moldura por lá anda aos tombos, hoje debruando um retrato, amanhã outro, sempre um pior do que o outro. A moldura a dar de si, a olhos vistos. Cada vez mais.
Sou eu contra partidos? Não sou, apesar de não me rever em nenhum, de não caber em nenhum. Mas acho que Winston Churchill esteve certo quando disse que o regime democrático é o menos mau dos regimes políticos. Apesar dos partidos, da fauna que os povoa, das golpadas internas e externas, a democracia tem a virtude de saber corrigir esses desvios. E como? Denunciando-os, usando em pleno a liberdade de expressão, dando a voz ao povo. Mas isso só acontece quando ao povo é dada educação, incentivo a que exerça a sua acção cívica. Um povo educado, adulto, não aceita comunicação social domesticada, de trela curta e açaime, não tolera bufos nos empregos que enchem os ouvidos a capatazes de roça que se julgam chefes.
Se for essa a situação, cabe aos jornalistas honestos, independentes, corajosos, escrever nem que seja nas paredes e levantar o povo. Como aconteceu em 1975, durante o PREC, quando um partido a soldo da União Soviética ajudava a destruir a economia, a desconjuntar o tecido social, a encher prisões, de modo a impor a 10 milhões de portugueses fartos de ditadura uma outra ditadura, essa sanguinária, boçal, criminosa. Quem queria impor? O mesmo pequeno grupo de corcundas de alma que aceitou sem tugir nem mugir a invasão da Hungria e a da Checoeslováquia, o assassinato de 20 milhões de pessoas em 70 anos de poder. O nosso povo sabia disto? Não sabia, porque a outra ditadura tinha censura também e tudo quanto dizia não tinha crédito. Mas um bom número de jornalistas saíu a terreiro e abriu as arcas encoiradas. É por isso que hoje não tem a menor importância o partido de fantasmas que, a propósito e a despropósito, solta os dinossauros.
Parafraseando António Nobre, direi hoje: onde estão os jornalistas do meu país, onde estão eles que não vêm contar?
Sem comentários:
Enviar um comentário