CARTA DO CANADÁ
por Fernanda Leitão
Não sei se foi Agostinho da Silva quem disse que “o século XXI ou será do Espírito Santo ou muito simplesmente não será”. Mas não me admirava nada que o filósofo, o poeta, o professor, o velhinho que no tarde da vida eu via todas as manhãs a dar de comer aos pombos no Jardim do Príncipe Real, em Lisboa, o tivesse ao menos sentido. Porque, para além de filho espiritual do Padre António Vieira, o visionário do Quinto Império (o do Bem), Agostinho da Silva trazia em si a mágoa afogada em esperança de saber que o século a vir ou se redimiria pelo Amor ou simplesmente seria o do fim. Lúcido até ao sangue, esse sábio que, para não variar, foi mal amado em tempos negros de Pátria e se refugiou no Brasil, lúcido de doer, ele bem sabia como o Mal estava desatado em todo o mundo, e não apenas nas guerras, e não apenas nos pobres países com petróleo e sem tecnologia para o extraír, mas também na agressão mortal ao planeta Terra através de crimes ecológicos, e igualmente na guerra aberta à Humanidade sempre que uma criança é raptada, violada, torturada, assassinada, vendida como escrava, sempre que um ser humano é privado de liberdade, de dignidade, de pão, de casa, de escola, de hospital, de mão confortante na hora derradeira.
Creio que é mais sensato olhar de frente a situação em que o mundo vem a resvalar numa velocidade vertiginosa. Apenas uma força pode travar a corrida para o abismo: o Amor pelo próximo, feito de perdão e tolerância, de compreensão e e ajuda desinteressada. Ou aprendemos a viver com o essencial para proporcionarmos aos outros a oportunidade de terem o mesmo que nós, ou aprendemos a SER em lugar de TER, de modo a acabarmos com a fome, a miséria, a ignorância que gera a dependência de todas as escravaturas, ou então seremos réus do pior dos pecados, o da falta de caridade. Porque esse é, não duvidemos, o pior dos pecados.
Todo este apelo está no Culto ao Senhor Espírito Santo, que nos foi legado por São Francisco de Assis. Frades franciscanos o levaram para Portugal e em boa hora, porque ali estava a Raínha Santa Isabel para o tomar em suas mãos e incendiar os corações dos homens de boa vontade. Logo o culto se implantou em várias terras de Portugal, entre as quais Tomar. E porque essa cidade era a sede da Ordem de Cristo, de que era Governador o Infante Dom Henrique, dali saíu o farto dinheiro, as fartas madeiras, os primeiros marinheiros de grau razo que se foram às Descobertas. E eles, ao longo dos tempos do Povoamento, levaram o culto do Senhor Espírito Santo para os Açores e Madeira. Destas duas regiões, o culto foi levado pelos emigrantes às cinco partidas do mundo. Depois de alguns anos de morna prática em quase todo o território continental, excepção feita a Tomar que tem continuado, galhardamente, a fazer a sua já famosa celebração, eis que de de novo o sempre pujante culto salta dos Açores para muitas terras que andavam esquecidas do que verdadeiramente interessa: o Amor, a partilha, em nome do Espírito Santo. A verdade é que a humanidade cada vez mais quer Deus, mesmo que não queira mais religião. E é nesta verdade que se encontram os povos dum lado e do outro, depois de perdido o Império de 500 anos que Portugal alcançou. É como se fosse fechado um arco de Pátria a haver. A Pátria que une e não escorraça, a Pátria que divide por todos e não enche os bolsos de alguns.
Grande é a responsabilidade das irmandades do Espírito Santo no renascer desta lição de vida. Seria uma tragédia que houvesse irmandades usando o culto por vaidade, exibição ou ganância. As irmandades devem conservar a pureza original do culto e dar todo o proveito aos pobres, aos aflitos.
Tudo isto pensei num dos domingos passados quando, em Cambridge, partilhei do 35º aniversário do Império Mariense. Convite do Imperador, Germano Bairos, e sua mulher, a Inês, um casal de alma aberta e transparente, gente de Santa Maria que, no lento rolar dos dias ao longos dos anos, se tem mantido fiel aos valores bebidos no leite que lhes deu corpo na terra distante. Ali estavam todos os membros do Império, os Foliões, a Banda, seguindo, passo por passo, a memória histórica. Comovente o momento em que a criança coroada, este ano uma menina, se viu lavarem-lhe a boca, dentro da capela (Império), onde as coroas se aprumam, para depois poder comer as sopas frugais, que os séculos deixaram. Toda aquela pequena comunidade ali reunida, e unida, em volta da sua Fé, no belíssimo clube feito com o sacrifício do povo, em meio de um muito vasto e agradável parque. Tudo na maior simplicidade e dignidade.
Apetece-me repetir uma reflexão do escritor Thomas Mann:”O mundo é o meu país. A Humanidade é a minha raça. Fazer bem é a minha religião”. Se cada um de nós puder assim sentir, o século XXI será uma porta aberta para o futuro dos nossos filhos e netos.
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