sábado, abril 28, 2007

Os bufos virtuosos

por João Miranda


O Ministério da Justiça lançou um guia para prevenir a corrupção que incentiva os funcionários públicos a denunciar casos de corrupção às "autoridades". Esta é mais uma das muitas ideias voluntaristas de combate à corrupção propostas por entidades públicas nos últimos meses. Recorde-se que, no seu discurso de 5 de Outubro de 2006, Cavaco Silva apelou a uma batalha pela "moralização da vida pública" e à "instauração de uma cultura de dever e responsabilidade". Quando tomou posse, em Setembro de 2006, o novo procurador-geral da República apelou à "maior participação dos cidadãos" no combate à corrupção. Em Março de 2007, Jaime Gama apelou a uma "aliança de convicções" entre deputados, magistrados e governantes. Nada de novo na iniciativa do Ministério da Justiça, excepto o aspecto pidesco.

Estes apelos vindos de políticos com responsabilidades públicas há dezenas de anos não deixam de ser irónicos. A corrupção é essencialmente o resultado das debilidades institucionais dos organismos públicos concebidos por esses políticos. A corrupção deve-se a um conflito de interesses que afecta qualquer servidor público. O servidor público tem, como qualquer ser humano, interesses privados. Apesar disso, tem a penosa obrigação de colocar o interesse público à frente dos seus interesses privados. No entanto, os arranjos institucionais prevalecentes no sector público colocam grande poder nas mãos dos funcionários, mas não lhes dão incentivos para o usar correctamente. A burocracia e o poder discricionário do Estado abre-lhes mesmo muitas oportunidades para tirarem proveito pessoal da sua posição.

Espera-se que os servidores públicos sejam especialmente virtuosos, mas eles são apenas humanos. É um tanto ingénuo pensar que os servidores públicos deixarão subitamente de se aproveitar dos bens públicos porque decidem aderir a uma "cultura de dever e responsabilidade" e participar numa "batalha pela moralização da vida pública". Ou pensar que sectores potencialmente minados pela corrupção podem formar uma "aliança de convicções" para a combater. Ou pressupor que existem entidades designadas por "autoridades" que são imunes à corrupção e que por isso estão em condições de fiscalizar as restantes instituições.

A filosofia oficial de combate à corrupção parece partir do princípio que os funcionários públicos são uma espécie de bufos virtuosos, gente incorruptível, incapaz de fazer intriga ou denúncias caluniosas, mas perfeitamente capaz de trair os colegas. O apelo à denúncia é, na melhor das hipóteses, um sinal de impotência e degradação moral das "autoridades" que supostamente deviam combater a corrupção. E na pior, um sinal de que essas "autoridades" estão tão minadas pela corrupção que não conseguem mais do que anunciar medidas irresponsáveis.


Investigador em biotecnologia - jmirandadn@gmail.com

In Diário de Notícias

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