sexta-feira, abril 13, 2007

Crise de regime?

O actual regime criou uma oligarquia que se vai alternando no controlo do Estado, distribuindo entre si poderes e privilégios.

Por João Cardoso Rosas

Primeiro, foi a vitória de Salazar no famigerado concurso. Depois, foi a notícia da homenagem a Marcelo Caetano, organizada no Brasil por académicos portugueses. A seguir veio o cartaz, o ataque aos imigrantes, a visibilidade da extrema direita. Estaremos mesmo diante de um renascimento do saudosismo anti-democrático? Estaremos a caminhar para uma crise de regime?

Se por crise de regime se entende a possibilidade real do fim da segunda república e um qualquer regresso ao passado autoritário, julgo que não. Se os apologistas de Salazar e Caetano ou os torpes aspirantes a um ‘Front National’ à portuguesa fossem a votos ninguém daria por eles. Neste aspecto, têm razão aqueles que notaram terem sido as reacções excessivas de alguns comentadores a conferir-lhes uma representatividade que eles não têm na realidade.

No entanto, se por crise de regime se entende uma insatisfação difusa com a nossa democracia, julgo que estamos a caminhar para aí. Não estou a referir-me à crise da participação política. Essa é uma outra história. Ela é hoje em dia comum a todas as democracias avançadas e existe mesmo nos países com fortes tradições democráticas. Refiro-me antes à insatisfação difusa em relação a aspectos da sociedade portuguesa que a generalidade das pessoas associa, bem ou mal, ao regime democrático.

Em primeiro lugar, figura a ideia de que a democracia não tem conseguido garantir a segurança e tranquilidade públicas. O uso demagógico do tema da imigração está relacionado com este. Mas um facto é real: Lisboa e Porto tornaram-se lugares desagradáveis e desassossegados. Deixou de ser possível sair de casa à noite ou até mesmo estar tranquilo em casa. Daí o sucesso dos centros comerciais – eles são um lugar de refúgio. Infelizmente, os políticos democráticos ainda não interiorizaram que o discurso forte da segurança e tranquilidade públicas não é contrário ao da liberdade. Isso deixa-me estupefacto. Se não conseguem aprender com a experiência interna, podiam pelo menos aprender com o que se passa noutros países. Se eles próprios não fizerem esse discurso a sério, outros bem piores o farão.

Em segundo lugar, está a sensação de que a nossa democracia não passa de uma plutocracia. Alguns governos – como o actual – dão sinais de querer enfrentar alguns interesses instalados (os sindicatos, as profissões, os poderes regionais...), mas nunca enfrentam os interesses dos mais ricos. Apesar da inegável melhoria das condições de vida das classes trabalhadoras, Portugal continua a ser, mais de trinta anos depois do 25 de Abril, o país mais desigual da Europa. Esse desequilíbrio é um problema, mas não se resolve com mais subsídios. A classe política devia reflectir sobre a razão pela qual o crescimento da função assistencialista do Estado no decurso dos últimos trinta anos não conseguiu diminuir o fosso entre ricos e pobres. Pelos vistos, um Estado maior não faz uma sociedade mais justa.

Em terceiro lugar, existe a percepção de que o funcionamento da nossa democracia é de tipo oligárquico. O actual regime criou uma oligarquia que se vai alternando no controlo do Estado, distribuindo entre si poderes e privilégios: nos cargo políticos, na administração pública, nas empresas públicas, etc. Existe a sensação de que estas pessoas, muitas vezes sem terem feito prova de mérito, vão circulando nos corredores do poder e das empresas a ele ligadas, acumulando cargos, indemnizações e reformas. A classe política democrática tinha a obrigação de fazer melhor na definição de um ‘spoils system’ (os cargos que devem depender das mudanças políticas) e na abertura de todos as outras funções e posições a sistemas de concurso público ou aos mecanismos de mercado.

É claro que todas estas acusações também poderiam ser voltadas contra o regime autoritário que precedeu a democracia. Ele era oligárquico, plutocrático e não garantia a segurança (pelo menos dos que se lhe opunham). Mas o certo é que muitos dirigem hoje estas acusações contra a democracia e, na medida em que é este o nosso presente, é legítimo que o façam. Por isso cabe aos políticos democráticos fazer melhor. Não basta encenar a sua indignação de cada vez que aparecem sinais de saudosismo anti-democrático.
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João Cardoso Rosas, Professor de Teoria Política na Universidade do Minho

(In Diário Económico)

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