segunda-feira, outubro 02, 2006

Na morte de Oriana Fallaci

CARTA DO CANADÁ

por Fernanda Leitão


Para as mulheres jornalistas da minha geração, não alinhadas no comunismo, Françoise Giroud e Oriana Fallaci foram uma referência e até quase ícones. Tinham ambas estado na resistência activa contra o nazismo, não as tolhia o medo de dar opinião em voz alta, tratavam por tu os grandes do mundo, a francesa estava à frente de L´ÉXPRESS, a italiana era publicada nos maiores jornais de Itália e do mundo. A opinião delas pesava, era lida, era discutida. Ambas faziam da Liberdade o seu princípio de vida. Mas Oriana tinha uma lugar à parte na nossa carinhosa admiração, mesmo quando não concordávamos com todas as suas opiniões: era de uma rebeldia latina e castiça, que não recuava diante de nada. Um sangue mediterrânico que cabia inteiro naqueles cantos guerreiros da resistência, na Segunda Guerra Mundial, como aquele Bela Ciao que tão bem cantava a também já desaparecida Glicínia Quartin, em serões inesquecíveis na minha casa do Bairro Alto, quando se preparava para, com Eunice Muñoz e Lourdes Norberto, escrever nas tábuas do palco uma antológica interpretação de As Criadas. Oriana era do nosso sangue, aventureiro e ardente.
Oriana travou uma luta dolorosa de anos contra o cancro e, por isso, a sua morte era esperada. No entanto, a notícia da sua partida, há poucos tempo, foi um desgosto enorme.
O jornalismo responsável, empenhado e corajoso, ficou a dever muito a esta senhora. Portugal, também.
É que, em 1975, em pleno PREC, Oriana Fallaci deslocou-se a Lisboa para entrevistar Álvaro Cunhal, então na sua hora de poder. A visita de Oriana passou despercebida, naquele tumulto de acontecimentos, nem sequer foi apontada em qualquer jornal. Por esse tempo, todos os jornais estavam dominados com mão de ferro pelos comunistas, com destaque para o Diário de Notícias, onde José Saramago e Mário Ventura Henriques, ambos aproveitadores do capitalismo durante o salazarismo, mas sempre fiéis militantes do Partido Comunista, tinham lançado ao desemprego, dum dia para o outro, 24 jornalistas. O República tinha fechado, os jornais de direita estavam apreendidos e alguns dos seus directores presos, O Tempo começava a esboçar-se e os jornais de Vera Lagoa não tinham ainda visto a luz do sol, incluindo o que tinha por título o astro rei. Mas poucos dias depois, a entrevista de Oriana Fallaci foi publicada na íntegra num pequeno jornal de província, O Templário. E nos dias que se seguiram, grandes excertos da entrevista eram republicados em jornais regionais.
Como foi isso? E que importância tinha a entrevista para Portugal? Nesse tempo o Templário era minha propriedade e dirigido por mim. Fui procurada por dois jovens escritores socialistas, o Álvaro Guerra e o José Martins Garcia, ambos já mortos, que me perguntaram se o meu jornal poderia publicar o imprudente depoimento de Cunhal. Imediatamente eu disse que sim. E logo eles obtiveram de Oriana Fallaci o assentimento generoso e pronto. Essa publicação em Portugal, que obrigou o meu pequeno jornal a uma edição esgotada de 60 mil exemplares, depois multiplicados por inúmeras fotocópias que imundaram o país, fez toda a diferença. É que Cunhal, falando de papo com a jornalista sem lhe passar pela cabeça quem ela era e o poder que tinha, visivelmente mal informado pelos seus acólitos, fez a enormidade de declarar, de forma clara, que o seu partido nunca permitiria em Portugal uma democracia pluralista e parlamentar, e mais, que se houvesse de escolher entre essa democracia e uma “pinochada” da direita, preferia esta última. Cunhal e os acólitos, que traziam sempre na boca as “conquistas democráticas”, tiraram a máscara por iniciativa do secretário geral. De repente, Portugal inteiro ficou sem ilusões acerca do Partido Comunista. Essa entrevista foi um momento de viragem na medida em que tirou as ilusões a quem as tinha e reforçou a aversão pelo comunismo dos já recalcitrantes.
Eu não poderia ter recebido maior honra e privilégio, e assim o disse na carta em que agradeci a Oriana Fallaci, enviada ao cuidado do Corriere della Sera. Ainda por cima tive outro prémio, que guardo com risonha ternura. Descendo a Avenida da Liberdade, vi um estendal de livros à venda com dois foliões à testa do negócio. Eram anarquistas. Parei a ver a mercadoria, a rir-me, porque tinham de facto muita piada, e dei com os olhos num livreco vermelho, com um furo no canto superior esquerdo, por onde estava pendurado com um vulgar cordel, atado ao pau de um cartaz. Chamava-se O LIVRO VERMELHO DO GALO DE BARCELOS. Comprei-o. Passei um serão a rir com verdadeiros achados que lá vinham. E fiquei de boca aberta quando deparei com uma crónica minha, justamente aquela em que fiz uma enorme farra à volta do Cunhal, do pato, do Tengarrinha e quejandos, por causa da entrevista em que Oriana Fallaci estendeu ao comprido o papa do comunismo português. Não podia ter tido melhor prémio, se é que os jornalistas merecem prémios.

1 comentário:

Ana disse...

Cara Fernanda
Não imagina o prazer que me deu ler esta sua entrada no blog - ainda que com 5 anos de atraso!
A memória Portuguesa às vezes é muito curta, e é bom relembrar certas coisas - como a publicação da famosa entrevista da Oriana ao Cunhal.
Sabia da história por alto (pelos meus pais, democratas acérrimos que viram desde o princípio os objectivos semi-ocultos do 25 de Abril). Foi super interessante descobrir que foi a Fernanda (uma senhora!) que promoveu tal publicação! Pode ser que um dia os livros de história comecem finalmente a mostrar a face mais escura do 25 de Abril, e que os comunistas sempre pintaram com as cores do arco-iris.
Bem haja!
Cumprimentos de uma alentejana democrata, que nasceu entre o 25 de Novembro e o Verão Quente de 75 :)