sexta-feira, outubro 20, 2006

A batalha das palavras

por Pedro Vaz Patto


As "batalhas" do aborto parece que começam por questões semânticas, pelas palavras. Afinal, no referendo que se aproxima, está em discussão a despenalização e descriminalização do aborto, ou, antes, a sua legalização e liberalização?

Os partidários do sim preferem falar em descriminalização, ou mesmo em simples despenalização, e não em legalização ou liberalização . É provável que a pergunta a submeter a referendo venha a ser formulada desse modo. Mas não estará, antes, em causa a legalização e liberalização do aborto?

Compreende-se a preferência dos partidários do sim pelas expressões descriminalização e despenalização. Têm uma conotação mais moderada e menos radical, e poderão ir de encontro ao sentir de muitas pessoas que afirmam que «são contra o aborto, mas não querem que as mulheres sejam penalizadas». Estas pessoas poderão defender a despenalização, mas, porque «são contra o aborto», não aceitarão que o Estado passe a colaborar activamente na sua prática. Ora, no referendo não está em jogo apenas (e sobretudo) a despenalização ou descriminalização do aborto (esta poderia verificar-se sem que o aborto passasse a ser lícito, a ter cobertura legal e a ser realizado com a colaboração activa do Estado), está em jogo a sua legalização e liberalização.

Se vencer o sim, o aborto realizado até às dez semanas de gravidez por vontade da mulher passará a ser lícito, passará a ter cobertura legal e passará a ser praticado com a colaboração activa do Estado (o Ministro da Saúde até tem lamentado o facto de, actualmente, se realizarem nos hospitais públicos abortos em número que considera reduzido). Daí que se deva falar em legalização.

E, no que se refere a tal período da gravidez, essa licitude não depende da verificação de qualquer pressuposto para além da simples vontade da mulher. Deixará de vigorar um regime de "indicações", como se verifica no regime legal vigente, em que a licitude do aborto não depende da simples vontade da mulher, mas da verificação de alguma das seguintes situações: perigo para a vida da mulher, grave perigo para a saúde da mulher, malformação ou doença grave e incurável do nascituro ou gravidez resultante de violação. Não estaremos perante um alargamento a outro tipo de "indicações" (razões sócio-económicas, por exemplo, como se verifica na legislação italiana ou outras). Estaremos perante um regime de aborto livre ou aborto a pedido. Daí que se deva falar em liberalização.

Alguns exemplos poderão ajudar-nos a compreender estas distinções entre descriminalização (ou despenalização) e legalização (ou liberalização).

Nem todas as condutas ilícitas são crimes. A falta de pagamento de dívidas, por exemplo, não é crime, mas não deixa de ser uma conduta ilícita. Os crimes são condutas ilícitas particularmente graves, porque atingem valores fundamentais e estruturantes da vida comunitária.

Há alguns anos, foi descriminalizado (e despenalizado) o consumo de droga. Mas isso não tornou o consumo de droga uma conduta lícita. O consumo de droga passou a ser considerado uma contra-ordenação, uma infracção menos grave do que um crime, sancionada com coima (e não com pena). O consumo de droga não passou a ser livre, a venda de droga não passou a ser livre, nem o Governo passou a fornecer droga a quem o queira. Isto porque o consumo de droga não foi legalizado ou liberalizado. Mas tal sucederá com o aborto até às dez semanas, se vencer o sim . O Estado passará a garantir a sua prática livre, e até em instituições públicas ou com o recurso a financiamento público.

Também foi descriminalizada a emissão de cheque sem provisão em determinadas circunstâncias (quanto aos chamados cheques "pré-datados" ou aos cheques de reduzido valor). Isso não significa que a emissão de cheque sem provisão nessas circunstâncias tenha passado a ser lícita (não foi legalizada). Não deixa de haver uma responsabilidade civil, uma obrigação de indemnização que recai sobre a pessoa que emite o cheque.

O exercício da prostituição também está descriminalizado e despenalizado. Mas esta actividade não tem actualmente entre nós (ao contrário do que se verifica na Holanda) cobertura legal e a exploração da prostituição (o proxenetismo ou "lenocínio") é criminalizada. Há, por isso, quem defenda a legalização dessa actividade entre nós, que é, assim, diferente da sua descriminalização e despenalização.

Outros esclarecimentos se impõem, ainda.

Parece que os partidários do sim preferem, agora, falar em despenalização, e não em descriminalização. E que a pergunta a submeter a referendo incluirá a primeira dessas expressões. Compreende-se que assim seja, pelas razões atrás invocadas. A expressão é ainda mais suave, inegavelmente. Mas não é correcta (é, para este efeito, ainda menos correcta do que descriminalização) .

Embora, normalmente, descriminalização e despenalização coincidam (como nos exemplos atrás referidos), porque ao crime corresponde, em princípio, uma pena, poderia verificar-se uma despenalização sem descriminalização. O Código Penal prevê, nalgumas situações, a dispensa de pena quando se verifica a prática de um crime. Na proposta de alteração do regime penal do aborto em tempos sugerida pelo Prof. Freitas do Amaral, o aborto continuaria a ser crime (uma conduta objectivamente censurável como tal definida pela Lei), mas estaria, em regra, excluída a culpa da mulher, por se verificar uma situação de "estado de necessidade desculpante", o que afastaria a aplicação de qualquer pena. Mas não é nada disto que se verifica na proposta a submeter a referendo. De acordo com essa proposta, o aborto realizado, por vontade da mulher grávida, nas primeiras dez semanas de gravidez e em estabelecimento legalmente autorizado, será descriminalizado.

Importa também esclarecer que não são necessárias a descriminalização e despenalização do aborto para evitar a prisão, e até o julgamento, das mulheres que abortam.

Quanto à prisão, esta é, no nosso sistema penal, um último recurso (não o primeiro, nem o principal). Não há notícia de mulheres condenadas por aborto em pena de prisão. Em relação a muitos outros crimes (injúrias, difamação, condução ilegal, condução em estado de embriaguez) está prevista a pena de prisão, mas esta não se aplica na prática, sobretudo quando se trata de uma primeira condenação. E mesmo o julgamento dessas mulheres pode ser evitado, através do recurso à suspensão provisória do processo.

No fundo, o essencial da questão a discutir no referendo não reside na realização de julgamentos das mulheres que abortam (estes podem ser evitados no actual quadro legal). E não reside sequer na criminalização ou descriminalização do aborto. Reside, antes, na sua legalização e liberalização. Reside em saber se o Estado deve facilitar e colaborar activamente na prática do aborto ou se, pelo contrário, deve colaborar activamente na criação de condições que favoreçam a maternidade e a paternidade, alternativas ao aborto que todos reconhecerão como mais saudáveis e mais portadoras de felicidade para a mulher, o homem e a criança.



Pedro Vaz Patto

quinta-feira, outubro 12, 2006

Legítimas dúvidas

CARTA DO CANADÁ

por Fernanda Leitão

Recentemente, o secretário de estado das Comunidades, António Braga, confirmou publicamente que o ensino da língua portuguesa no estrangeiro deixa de ser tutelado pelo Ministério da Educação e passa a sê-lo pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros, através do Instituto Camões. Esta decisão governamental, sem a consulta ampla e prévia que se impunha, pela importância do assunto e porque Portugal vive em democracia (embora às vezes não pareça), torna legítimas as muitas dúvidas que inundam as comunidades emigrantes, as perguntas que gostariam de ver respondidas para que o seu cepticismo não se torne irreparável, causticadas que estão de serem, apenas e só, fornecedoras de divisas e de votos. Penso que é tempo de abrirmos, também em público, a gaveta das dúvidas.
O ensino da língua portuguesa no estrangeiro tem duas vertentes claramente separadas: o ensino aos filhos dos emigrantes portugueses (com o ouvido habituado à língua portuguesa em casa e aprendendo as primeiras letras no país de acolhimento)e o ensino aos cidadãos estrangeiros que pretendem conhecer a língua de Camões (por vocação académica, por gosto cultural, por necessidades profissionais, etc). Neste último caso, compreende-se que a dependência seja do Insituto Camões, teoricamente dirigido ao ensino universitário e às demandas culturais dos cidadãos dos outros países. Mas, no que respeita ao ensino do português básico, para crianças de ascendência lusa, é óbvio que tudo devia ser tutelado pelo Ministério da Educação, porque é este ministério quem emprega os professores, treinados para o serem, ao passo que o Instituto Camões se limita a mandar leitores de português para universidades estrangeiras, geralmente jovens licenciados por universidades portuguesas, que não raro são criticados nos jornais estudantis).
Aqui, e no que toca ao terreno que conheço, o Canadá, perfilam-se de imediato algumas dúvidas. O Instituto Camões paga os honorários dos leitores, admitidos por concursos (muito comentados com azedume por se considerarem balcões de amiguismo, cunhas e compadrio). Os leitores exercem as suas funções no departamento de línguas internacionais ou em departamentos onde a língua portuguesa vive o quotidiano com a língua espanhola). É o caso da Universidade de Toronto, a funcionar há mais de 50 anos e que nunca formou um único aluno em português para poder exercer a profissão em condições, acrescendo que dali têm saído muitos alunos com um português a nivelar-se pelo bem pobre, o que incomoda quem ouve membros do xadrez político canadiano a exprimirem-se quando se dirigem a portugueses, e que por certo incomoda também quem assim fala e faz tão triste figura. As universidades cobram propinas aos alunos que frequentam as classes de português. Temos, pois, que universidades canadianas, graças ao Instituto Camões, dispõem de leitores pagos por Portugal e ainda recebem as propinas dos estudantes que pretendem aprender a nossa língua. É um bom negócio. Mas tem permitido mais: que, em determinados concursos, “apareça” a instrutora de língua portuguesa, contratada e paga pela Universidade de Toronto, portanto completamente alheia ao aparelho estadual português, para manifestar se gosta ou não do candidato ou da candidata. Há casos, há testemunhos. Quanto aos leitores, aqui no terreno, são vigiados, com açaime e trela curta, pela mesma instrutora, que não permite autonomias nem opiniões divergentes. Marcação tão cerrada que, exceptuando poucos casos de pessoas acomodadas à bandalheira, os não acomodados sofreram perseguições e vexames de toda a ordem. Houve mesmo uma leitora que caíu numa depressão tal que teve de regressar a Portugal para se poder tratar.
No que ao ensino a crianças de famílias lusas, ainda no que ao Canadá se refere, nunca Portugal enviou para estas paragens professores pagos e contratados, como mandou para a Europa. O ensino é ministrado por escolas particulares e, também, por escolas canadianas ao abrigo do Heritage Program (um dos meios de afirmação do multiculturalismo). Este último divide-se em dois sectores: o Ensino Público e o Ensino Católico. Num e noutro dão aulas de português, muito poucas semanalmente, portugueses que se sentem habilitados para o fazer, o que nem sempre significa que o estejam. Houve, no Ensino Católico, uns directores portugueses que deixaram fama no modo como recrutavam professores, tal era o primarismo utilizado, e esse ensino passou por maus bocados porque sempre é verdade que não se podem enganar todos durante todo o tempo. Neste terreno, que é pago pelo Canadá, a única acção que Portugal pode tomar (deve tomar), em termos de diálogo construtivo com as autoridades escolares canadianas, é a abordagem feita pelo coordenador ou pelos diplomatas em representação do estado português. É de justiça apontar que, neste campo, muito tem feito a actual coordenadora, que é uma pessoa conhecida e respeitada no lado canadiano.
Quanto às escolas privadas, é toda uma novela. Em geral, um português com algum dinheiro recruta 2 ou 3 professores (muitos deles não o são, têm outras profissões, mas porque sabem um bocado mais de português, são candidatos a estas escolas). Depois, aluga salas numa escola canadiana, ou num clube português, vai ao consulado registar a escola e pedir o seu reconhecimento pelo Ministério da Educação. Actualmente, mais concretamente de 1997 para cá, o reconhecimento obedece a regras emanadas da tutela que a coordenadora faz cumprir (antes disso, o reconhecimento era feito à trouxe-mouxe, no consulado, com muito compadrio pelo meio, e só assim se compreende que tenham sido autorizadas escolas que mais parecem a sala da Ti Faustina, nos anos 50, nas funduras do interior). Cada aluno paga um tanto por mês e é com essa receita que o director da escola paga aos professores, o aluguer das salas e o mais que é de regra. De Portugal não vem dinheiro, vêm livros de vez em quando, e também vêm políticos portugueses que dão beijinhos e prometem este mundo e o outro. De há anos para cá, o governo português conta os tempos de serviço destes professores para efeito de reforma (claro, tem havido tentativas de golpada por parte de uns paraquedistas) e proporciona cursos de reciclagem de vez em quando. Estas escolas são, em geral, muito activas no tecido social comunitário, participando em exposições, paradas e outros acontecimentos. Há escolas destas um pouco por todo o Canadá, um país que vai do Atlântico ao Pacífico. Essas escolas têm sido visitadas anualmente e estão sempre acompanhadas on line, por telefone ou fax. Tem havido nelas verdadeiros missionários da língua portuguesa, autênticos mártires que deram vida e saúde por este sonho de não se perder a língua portuguesa (alguns deles, trabalhando para directores desonestos, nem os tempos de serviço contados correctamente tiveram), gente lusa de espinha direita que se sacrificou pela Pátria de todos nós. Mas tem havido também uma escória mercenária que, pasmem, tem cunhas em Lisboa e ameaça com isso...
Parece-nos evidente que, apesar de todos os pesares causados pelo Ministério da Educação, é a este que compete o ensino básico ministrado no estrangeiro. Pois se o Ministério dos Negócios Estrangeiros não tem sabido fazer do Instituto Camões uma instituição irrepreensível, como quer fazer-nos acreditar que vai saber dirigir o ensino da língua pátria às crianças de famílias lusas? Não se estará a pôr o carro à frente dos bois? Não teriam de limpar, primeiro, o Instituto Camões e só depois tomar decisões de fundo? Não teriam, primeiro, de obrigar o Ministério da Educação a cumprir os seus deveres com as escolas, e quem as serve, no estrangeiro? Não receiam os frutos desta decisão dentro de poucos anos?
Deviam recear.

sexta-feira, outubro 06, 2006

Filhos da Carbonária

por Ana Sá Lopes
ana.s.lopes@dn..pt

Cavaco Silva lançou um aviso curioso sobre a comemoração do centenário da República: "Não cabe ao Estado patrocinar versões oficiais ou oficiosas da História." Para o Presidente, "as comemorações não devem servir de pretexto para dividir os portugueses em torno de polémicas velhas de décadas, destituídas de sentido no nosso tempo". Cavaco Silva ficou-se por aqui e não concretizou quais as "polémicas velhas de décadas" que não quer ver a "dividir os portugueses". A comissão liderada por Vital Moreira fica, desde já, sob vigilância presidencial: Cavaco prometeu ontem que fiscalizará cuidadosamente se o Estado acaba ou não "a patrocinar versões oficiais ou oficiosas da História".É duvidoso que a República ainda hoje se preste a um conflito histórico-político do género do que acontece em Espanha, a propósito da Lei de Memória Histórica e da guerra civil. A principal dicotomia (República- -monarquia) não existe, ou quase não existe. A "bondade intrínseca" do regime republicano tem vindo a ser posta em causa por vários historiadores e dificilmente causará qualquer "cisma" nacional. É provável que o país já consiga conviver tranquilamente com a génese do regime, filho legítimo do terrorismo da Carbonária (é à força da Carbonária que se deve a implantação da República, e não aos discursos do institucional Partido Republicano Português, que se manteve mais ou menos à margem da revolução do 5 de Outubro). A Carbonária (a nossa mãe) não era propriamente recomendável - era uma organização terrorista. Agora, foi aos pés de um dos seus homens - Machado Santos, herói e vítima da República, que se barricou na Rotunda até a monarquia cair - que devemos o sucesso do 5 de Outubro. Foi com a Carbonária que o famoso (porque todas as cidades do país lhe dedicaram uma rua) Almirante Cândido dos Reis preparou a revolução - que não viu vencer porque, sem comunicações com a Rotunda, e convencido de que os revoltosos tinham sido derrotados, se suicidou nesse 5 de Outubro. Deve ser por causa do terrorismo carbonário que o PR está preocupado com as "divisões entre portugueses". Mas pode-se sempre não falar nisso.

In Diário de Notícias, 6 de Outubro de 2006

quarta-feira, outubro 04, 2006

O real 5 de Outubro

por Paulo Gusmão


Consta que quinta-feira é feriado. Tem graça que, para um país que não comemora a sua fundação, não faltem feriados para revoluções. Como é fácil de adivinhar, não são coisa pela qual perca a cabeça. Fico-me pelo 1º de Dezembro. Na falta de um dia em que celebrarmos oitocentos anos, ao menos lembramos esta segunda oportunidade.
Mesmo assim, há forma de dar utilidade ao 5 de Outubro – belíssima data para o País reflectir sobre o regime político que foi democraticamente escolhido pela suave força das armas.
Claro que ainda há quem pense que é de lesa Pátria alinhavar argumentos em favor do trono, como se a Europa evoluída não fosse constitucionalmente monárquica. Não é preciso percorrer todo o norte da Europa, basta atravessar a fronteira para perceber que, mesmo ofertando sacas de telemóveis, a velha igualdade estatutária dos reinos ibéricos há muito que libertou esta lusa província económica. Embora financeiramente a casa civil deste pequeno país gaste mais 47%, sem pompa, do que, com circunstância, a casa real espanhola
Hoje todos condenamos que, em vez de nascer de razões, a república tenha assente a sua origem no sangue democrata, culto e genuinamente português de D. Carlos e do seu jovem filho, sob o olhar impotente da destroçada mãe e rainha Dona Amélia.
Hoje já aprendemos nos bancos da escola que afinal, quando veio a República, há muito que o País era um estado de direito democrático
A causa real é a afirmação da nossa identidade. O que é seguramente muito. Um Rei representa não só o Estado Democrático mas também a Nação, de cujos interesses permanentes é o guardião.
A monarquia não se impõe por revoluções, impõe-se pelas suas razões.
Nem é preciso derrubar a república, basta dar-lhe um Rei.

paulogusmao.blogs.sapo.pt

Paulo Gusmão
Advogado

segunda-feira, outubro 02, 2006

Na morte de Oriana Fallaci

CARTA DO CANADÁ

por Fernanda Leitão


Para as mulheres jornalistas da minha geração, não alinhadas no comunismo, Françoise Giroud e Oriana Fallaci foram uma referência e até quase ícones. Tinham ambas estado na resistência activa contra o nazismo, não as tolhia o medo de dar opinião em voz alta, tratavam por tu os grandes do mundo, a francesa estava à frente de L´ÉXPRESS, a italiana era publicada nos maiores jornais de Itália e do mundo. A opinião delas pesava, era lida, era discutida. Ambas faziam da Liberdade o seu princípio de vida. Mas Oriana tinha uma lugar à parte na nossa carinhosa admiração, mesmo quando não concordávamos com todas as suas opiniões: era de uma rebeldia latina e castiça, que não recuava diante de nada. Um sangue mediterrânico que cabia inteiro naqueles cantos guerreiros da resistência, na Segunda Guerra Mundial, como aquele Bela Ciao que tão bem cantava a também já desaparecida Glicínia Quartin, em serões inesquecíveis na minha casa do Bairro Alto, quando se preparava para, com Eunice Muñoz e Lourdes Norberto, escrever nas tábuas do palco uma antológica interpretação de As Criadas. Oriana era do nosso sangue, aventureiro e ardente.
Oriana travou uma luta dolorosa de anos contra o cancro e, por isso, a sua morte era esperada. No entanto, a notícia da sua partida, há poucos tempo, foi um desgosto enorme.
O jornalismo responsável, empenhado e corajoso, ficou a dever muito a esta senhora. Portugal, também.
É que, em 1975, em pleno PREC, Oriana Fallaci deslocou-se a Lisboa para entrevistar Álvaro Cunhal, então na sua hora de poder. A visita de Oriana passou despercebida, naquele tumulto de acontecimentos, nem sequer foi apontada em qualquer jornal. Por esse tempo, todos os jornais estavam dominados com mão de ferro pelos comunistas, com destaque para o Diário de Notícias, onde José Saramago e Mário Ventura Henriques, ambos aproveitadores do capitalismo durante o salazarismo, mas sempre fiéis militantes do Partido Comunista, tinham lançado ao desemprego, dum dia para o outro, 24 jornalistas. O República tinha fechado, os jornais de direita estavam apreendidos e alguns dos seus directores presos, O Tempo começava a esboçar-se e os jornais de Vera Lagoa não tinham ainda visto a luz do sol, incluindo o que tinha por título o astro rei. Mas poucos dias depois, a entrevista de Oriana Fallaci foi publicada na íntegra num pequeno jornal de província, O Templário. E nos dias que se seguiram, grandes excertos da entrevista eram republicados em jornais regionais.
Como foi isso? E que importância tinha a entrevista para Portugal? Nesse tempo o Templário era minha propriedade e dirigido por mim. Fui procurada por dois jovens escritores socialistas, o Álvaro Guerra e o José Martins Garcia, ambos já mortos, que me perguntaram se o meu jornal poderia publicar o imprudente depoimento de Cunhal. Imediatamente eu disse que sim. E logo eles obtiveram de Oriana Fallaci o assentimento generoso e pronto. Essa publicação em Portugal, que obrigou o meu pequeno jornal a uma edição esgotada de 60 mil exemplares, depois multiplicados por inúmeras fotocópias que imundaram o país, fez toda a diferença. É que Cunhal, falando de papo com a jornalista sem lhe passar pela cabeça quem ela era e o poder que tinha, visivelmente mal informado pelos seus acólitos, fez a enormidade de declarar, de forma clara, que o seu partido nunca permitiria em Portugal uma democracia pluralista e parlamentar, e mais, que se houvesse de escolher entre essa democracia e uma “pinochada” da direita, preferia esta última. Cunhal e os acólitos, que traziam sempre na boca as “conquistas democráticas”, tiraram a máscara por iniciativa do secretário geral. De repente, Portugal inteiro ficou sem ilusões acerca do Partido Comunista. Essa entrevista foi um momento de viragem na medida em que tirou as ilusões a quem as tinha e reforçou a aversão pelo comunismo dos já recalcitrantes.
Eu não poderia ter recebido maior honra e privilégio, e assim o disse na carta em que agradeci a Oriana Fallaci, enviada ao cuidado do Corriere della Sera. Ainda por cima tive outro prémio, que guardo com risonha ternura. Descendo a Avenida da Liberdade, vi um estendal de livros à venda com dois foliões à testa do negócio. Eram anarquistas. Parei a ver a mercadoria, a rir-me, porque tinham de facto muita piada, e dei com os olhos num livreco vermelho, com um furo no canto superior esquerdo, por onde estava pendurado com um vulgar cordel, atado ao pau de um cartaz. Chamava-se O LIVRO VERMELHO DO GALO DE BARCELOS. Comprei-o. Passei um serão a rir com verdadeiros achados que lá vinham. E fiquei de boca aberta quando deparei com uma crónica minha, justamente aquela em que fiz uma enorme farra à volta do Cunhal, do pato, do Tengarrinha e quejandos, por causa da entrevista em que Oriana Fallaci estendeu ao comprido o papa do comunismo português. Não podia ter tido melhor prémio, se é que os jornalistas merecem prémios.