CARTA DO CANADÁ
por Fernanda Leitão
Na minha tenra juventude as férias grandes eram enormes e davam para tudo, desde as corridas de bicicleta pela Estrada da Serra fora, quando dum lado e do outro só havia searas altas pintalgadas de papoilas, até à patinagem de manhã cedo no rink do Sporting de Tomar, umas partidas de ténis no parque, com o rio Nabão a passar ali ao lado, e belas passeatas no barco Folha de Couve, comprado pela rapaziada com o lucro de um jornal com o mesmo nome, o único que vi dar dinheiro. Os pais entravam com uns trocos para o stencil, o papel e a impressão ficavam de borla depois de uma grande canção do bandido entoada pela redacção adolescente ao contínuo da Legião Portuguesa. O homem ficou certo de estar a lidar com meninos de coro e nós, mal o jornaleco ficava pronto, íamos vendê-lo aos pais, aos avós, aos tios, aos professores, a quem gostava de ler o que os estudantes do Colégio de Nun´Álvares tinham para dizer sempre na troça e na piada. O barco foi baptizado e os padrinhos fui eu mesma e o Domingos Mascarenhas Arouca, de Moçambique, futuro presidente da FUMO, o partido político que se opunha à FRETLIN, mas isso muitos anos depois de ser advogado e professor, de ter estado preso em Peniche e depois em Caxias, onde o foram ver várias vezes Francisco Sá Carneiro e Francisco Balsemão, então deputados pela ala liberal no parlamento da ditadura. Ficaram-lhes caras essas visitas, politicamente falando, porque os donos do regime lhes chamaram o que Maomé nunca chamou ao toucinho. As malhas que o Império tece... Como andará lá por Moçambique o meu compadre Arouca?
Sobre estas actividades estivais ponham-se os piqueniques, os bailaricos (nesse tempo nem cheiro havia de discotecas), os amigos que vinham de Lisboa passar as férias connosco, as noites de luar nas eiras da beira do rio, deitados em montes de trigo, a olhar os alcatruzes das noras que pareciam despejar prata, a comer pêssegos perfumados.
Mas a parte de leão ia para a leitura. Foi o que valeu à minha geração. A literatura portuguesa passada a pente fino, as traduções que se devoravam, as estantes da memória a encherem-se. E as primeiras prosas que se escreviam, às escondidas, envergonhadamente. Quando deitámos corpo e entrámos em Marcel Proust, demos em chamar desdenhosamente “o português suave” ao Júlio Dinis. Uns atrevidos. No entanto, aquela prosa bucólica e inocente ficou-nos colada para sempre à memória.
Por isso hoje me lembro dos Fidalgos da Casa Mourisca. Uma família fidalga falida, as terras cobertas de hipotecas e quase ao abandono por falta de dinheiro para pagar ao pessoal, o padre Januário que administava aquela encrenca de cabeça, os proprietários de costa ao alto, a prima condessa de Lisboa que na sua visita foi obsequiada com o requinte de uma baixela emprestada, e todo aquele faz de conta português que eu penso vir desde o Egas Moniz, o que por causa do trapalhão do amo apareceu ao rei de Castela descalcinho, de corda ao pescoço, com a filharada à volta na mesma andaina. Quem nos tira o teatro tira-nos tudo.
Estou a lembrar-me deles hoje, porque vem aí o 10 de Junho e estamos em tempo de vacas magras, de contenção de despesas, de cortes brutais mas necessários. Quem é que há-de meter na cabeça do cidadão médio que não há dinheiro para festas e não é vergonha nenhuma ser assim, porque os países são como as famílias, têm altos e baixos. Não ter não é vergonha. Vergonha é não ser. Não ser, por exemplo, capaz de humildemente arregaçar as mangas pela Pátria, dar a cara à luta, guardar festanças para tempos de fartura. Preferem empenhar as pratas que restam para fazer ver que somos um país de bem instalados... que amontoam dívidas à banca e, não tarda nada, perdem casas e carros. Vergonha é ser oposição que não colabora com o governo naquilo que é para bem da Nação, não ser capaz de pôr ponto final à partidarite viciosa.
Países com petróleo, com gás, ouro, diamantes, ferro, alta tecnologia e agricultura de grandes superfícies, países com povos educados e preparados, parecem bem modestos se comparados com Portugal, tal a sua frugalidade. Preferimos este novo-riquismo ridículo. Já estamos abaixo dos Fidalgos da Casa Mourisca. Nem há “português suave” que nos descreva.
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