CARTA DO CANADÁ
por Fernanda Leitão
Há muitos anos atrás, passei uma Páscoa com a Rosa Ramalho no seu pequeno lugarejo perto de São Martinho de Galegos, a um tiro de Barcelos. Cumpria, honradamente, uma promessa que a barrista me tinha arrancado a ferros, porque esse era um tempo de juventude, de jornais, de viagens, de agenda cheia. Ficámos amigas, já nem sei desde quando, e a verdade é que morríamos uma pela outra.
Dias fascinantes aqueles, com o Minho a explodir em verdes tenros e flores, o céu azul, o sol esplendoroso. O que nós vadiámos por aquele Minho, com a Rosa sempre a parar para abraçar pessoas, de todas as camadas sociais, que lhe queriam bem, metidas em mercados e igrejinhas lindas de morrer, abancadas em lugares risonhos onde nos serviam cabrito assado com grelos salteados, ou papas de serrabulho, ou bacalhaus de antologia, tudo regado a verde tinto bebido por malgas de loiça. Porque a Rosa se me tinha queixado que andava em baixo, com “uma gastura no estâmado que tu nem queiras saber”, e eu levei-a ao médico que diagnosticou cansaço e receitou descanso, passeata, e “coma-lhe e beba-lhe, Tia Rosa”. Para encurtar razões, aviámos a receita.
Num dia em que regressámos da passeata, havia uma encomenda à espera da Rosa: pessoa de bom estatuto, em Viana do Castelo, pedia por tudo que lhe fizesse uma Última Ceia para levar de oferta no estrangeiro. Essas ceias feitas pela Rosa eram rectangulares, em barro verde, constando de uma mesa comprida, Jesus ao meio e os discípulos distribuídos à esquerda e à direita. À frente de Nosso Senhor, um prato com um peixe, um pão e um cálice. À frente dos outros, um pãozinho muito redondinho. A artista, que era pequenina, sentou-se num banquinho, frente a uma banca de trabalho, e ali ficou a modelar figura por figura, sempre a cantarolar. Eu, muda, extasiada, comovida, porque, para mim, o acto da criação artística é um momento em que se tocam os dedos de Deus e do artista. Mas quando a Rosa deu por terminado o trabalho, reparei que havia um discípulo sem pãozinho. Solícita, e estúpida, chamei a atenção da Rosa. E ela, a cravar em mim aqueles belos olhos negros cheios de força, espantou-se: “Tu julgas-me capaz de pôr pão ao filho da p. do Judas?”. Fiquei transida de admiração perante aquele desamor fundo como uma raíz, igualzinho ao de outro minhoto e querido amigo, o escritor Tomás de Figueiredo, de quem o David Mourão Ferreira às vezes me dizia “ah, que ódio aquele, tão saudável”. Agora parece que se diz tão assumido...
E não é que, nesta Páscoa de 2006, tem sido uma badalação mediática à escala planetária por causa de uns papiros datados de 400 anos após a morte de Cristo na cruz, segundo os quais Judas teria sido um sujeito óptimo e até parceiro de Jesus nisso de ajeitar factos às profecias? Tem sido uma algazarra, mesmo antes de se saber, de ciência certa, se vale a pena perder tempo com o achado.
Nunca pensei que o Judas tivesse tantos amigos dispostos a, mais uma vez, atacarem a Igreja. Olha bem para isto, Rosa!
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