CONFISSÕES DE UM TRADICIONALISTA LIBERAL
Por José Adelino Maltez
Porque Portugal também é pátria, a terra dos egrégios avós, sagrada pelo suor e pelo sangue das sucessivas gerações que a desbravaram, defenderam, regaram e semearam, temos de reconhecer que, neste chão moral da história construímos a nossa casa, a nossa eira, o muro do nosso quintal. Que, casa a casa, fizemos a aldeia e, caminho a caminho, nos fomos unindo em freguesia, a tal comuna sem carta, a partir da qual o conventus publicus vicinorum nos deu município, como associação de homens livres, de homens bons.
Foi a partir destas fundações que, concelho a concelho, nos construímos politicamente, como povo de cortes gerais. Essa antiga aliança entre um rei natural e a comunidade da sua terra, desse povo comum que se autodeterminou e quis ser independente, ao instituir a governança da comunidade, a república, originariamente entendida como um concelho em ponto grande, conforme a teorização do nosso Infante D. Pedro (1392-1449) no Livro da Virtuosa Benfeitoria, de 1418.
Por fim, através da união de muitos povos e da federação de muitas pequenas pátrias, elevámo-nos à condição de pátria maior, através de uma comunhão em torno das coisas que se amam, assumindo a dimensão cultural e afectiva de mátria, de maternal nação, assente na nossa terra, na terra da nossa natureza, a tal que veneramos, mesmo quando dela nos distanciamos, pelo exílio, pela emigração, pela expansão.
E, do sentimento pátrio, fizemos saudade, porque em todo o mundo passou a poder haver terra portuguesa, quando, conservando-a na lembrança, tratámos de procurar o sonho do paraíso e a ideia criadora de saudade. Somos, assim, saudosistas, não com o sentido passadista, mas com pessoanas saudades de futuro.
Aliás, tanto o patriotismo como o mais elevado nacionalismo, quando fazemos da nação a escola da super-nação futura, o caminho para uma mais mobilizadora república universal, constituem o preciso espaço que nos permite resistir ao uniformismo, em nome do direito à diferença.
Porque ser patriota não exclui as outras pertenças políticas supranacionais e infra-estatais, muito menos a pertença à cidadania do género humano. Aliás, só podemos ser universais, através de uma diferença enraizada na história vivida, pelo que a nação, para quem a pode ter, constitui uma das poucas vias que resta para a construção de novas repúblicas maiores, supra-nacionais e supra-estatais.
Por exemplo, nenhum apátrida consegue ser europeu, enquanto a Europa puder continuar a ser uma democracia de muitas democracias, tendo em vista e emergência de uma nação de nações. Do mesmo modo, nenhum desnacionalizado, ou destribalizado, pode assumir, orgulhosamente, o projecto de construção de uma cosmopolis. A universalidade apenas se consegue pela individualidade, pela identidade, pela autonomia, pela diferença.
Sou assim tradicionalista. Porque ser pela tradição é saber recuar, em pensamento e em entusiasmo, para, aprofundando o presente, dar raízes ao futuro e assim melhor poder avançar, negando a falsa dialéctica do antigo contra o moderno. Porque só é novo aquilo que se esqueceu, negando a visão tacanha do progressismo. Porque só é moda aquilo que passa de moda, repudiando a ditadura do efémero. Porque o moderno já foi antigo de que o antigo há-de ser moderno, segundo as palavras do Padre António Vieira. Porque só é novo aquilo que vem de trás, reelaborado para um novo fim. Só há o verdadeiro fora do tempo que nos prende, mas desde que se tenha tempo e lugar, os olhos nas estrelas do transcendente e os pés, no chão pisado do dia a dia.
Quase todos esqueceram que a autêntica tradição sempre admitiu o verdadeiro progresso, porque este nunca pode ser visto decepadamente, como um mito desprendido das origens, para utilizarmos uma análise tão cara ao magistério de Henrique Barrilaro Ruas. Porque, de outro modo, a tradição pode transformar-se num sucedâneo do mito pagão do eterno retorno, entendido como um simples círculo fechado, totalmente contrário ao conceito de tempo linear, assumido pelo libertacionismo judaico-cristão. Porque, contra os sucessivos milenarismos do fim da história, há que proclamar, como Santo Agostinho, que não é o mundo que acaba, é um novo mundo que começa. Não pode haver tradição sem inovação, sem aquele movimento que passa por uma realidade viva, bem concreta, e não por um simples espaço vazio.
Assumir a tradição não tem que ser o deus, pátria, família de quem apenas sabia conjugar o verbo salazar. Os tradicionalistas que a democracia gerou depois de 1974 fizeram-se contra o militarismo revolucionário, contra o intervencionismo estatal das nacionalizações, contra a intolerância racista da lei da nacionalidade, contra o desprezo otelista dos direitos do homem. Fizeram-se da liberdade, para a liberdade e pela liberdade, em nome da democracia pluralista, contra as conquistas da unicidade vanguardista dos que instrumentalizaram a ideia de revolução. Há assim uma genealogia liberdadeira do pós-abrilismo, aquela que serviu sem procurar servir-se, ao contrário dos arrivismos fidalgueiros de alguns neo-direitistas das adjûncias mercenárias das alcatifas ministeriais e dos muitos corredores e passos perdidos, onde vão acotovelando-se os interesseiros e pressionantes lobbies do spoil system.
Há um tradicionalismo que readquiriu o sentido clássico do diálogo, onde, etimologicamente, há uma conversa, com alternância no discurso dos interlocutores, passando-se a um tema comum que se percorre, pelo que só pode haver diálogo, quando entre os dialogantes se reconhecem lugares comuns, pontos de passagem que permitem a torça de ideias e de experiências de vida.
A tradição consensualista nunca foi uma tese, contra a qual se assumiu a antítese liberalista, para, depois, desaguarmos na oceânica maravilha da síntese pseudo-futurista, com muita palha de modernidade, pós-modernidade ou vanguarda, mesmo daqueles que, muito exogenamente se dizem conservadores, ou dos que continuam a traduzir nacionalismos em calão de État-Nation ou de national interest.
O tempo pós-revolucionário que vamos vivendo continua a ser de complexidade crescente, onde a convergência do antigo continua em dialéctica com a divergência do actual. As raízes do passado sustentam tanto o tempo presente como as saudades de futuro. Os divergentes continuam em diálogo com os convergentes, a liberdade, com a ordem e a justiça, com a segurança. É essa a inevitável emergência da liberdade vivida, onde não há reaccionários fins da história nem repristinações revolucionárias. É esse o eterno regresso da história, com o consequente relembrar da política, onde é o homem que faz a história, mesmo sem saber que história vai fazendo.
Assumindo, muito provocatoriamente, a memória azul e branca, não me digo, contudo, um mero eclético, doutrinariamente idéologue: isto é, conservador do que está, mesmo a nível dos valores; verbosamente reformista, quanto aos processos; e utopicamente revolucionário, no tocante aos objectivos. Porque não sou dos que, tendo sido da extrema-esquerda aos dezoito anos, se ficam a partir da idade adulta com os nomes da moderação conveniente, para melhor poderem navegar ao sabor do vento, nas águas pantanosas dos tempos que passam, dizendo, nomeadamente, na primeira curva do caminho, que, são de meia esquerda, para, na encruzilhada seguinte, se declararem de meia direita.
Esses, que se ficam por uma espécie de esquerda menos ou de uma direita envergonhada, costumam dizer que não são conservadores, mas reformistas, esquecendo que tudo depende dos ingredientes de conteúdo com que vão enchendo os chouriços daquelas cláusulas gerais que dão parecença ao hábito do respectivo continente, mas que nem por isso faz o monge. Tudo depende da matéria com que se fecunda a forma, bem como da luz simbólica que dá sentido ao corpo político.
Por exemplo, quem assumir as doutrinas sociais do conservadoríssimo João Paulo II está bastante mais à esquerda do que os sociais-democratas herdeiros do Bloco Central. Tal como o modelo anti-plutocrático de Oliveira Salazar (1889-1970) está imensamente mais à esquerda do que a prática assumida pelos governos socialistas dos finais do século XX, nas relações com os grandes grupos económicos. O sentido popular do guerrilheiro miguelista Padre Casimiro José Vieira também não está à direita da versão pós-revolucionária do progressismo cristão institucionalizado pela Conferência Episcopal. O nobre povo dos heróis do mar e da nação imortal é que precisa de voltar a ter a plenitude dos activos direitos políticos!
Em vez da revolução perdida, a que vai de 1820 a 1974, traduzindo em calão outras matrizes, situadas entre 1789 e 1917, prefiro o mito da restauração consensualista, à maneira de 1640 ou de 1808, ou das revoluções evitadas, como o foram a Glorious Revolution dos ingleses, desencadeada em 1688, ou a independência da república norte-americana, de 1787. Modelos que, ao propagarem-se, a partir da era pós-napoleónica, permitiram o actual pluralismo da democracia representativa, assente no sufrágio universal. Até não vale a pena reduzir a Revolução francesa a Robespierre e ao cesarismo e chauvinismo napoleónicos, porque, a partir de 1814, a democracia francesa, com o cartismo moderado restaurou, não apenas a monarquia, mas também o regime misto tentado nos primeiros dias de 1789, com a convocação dos estados gerais, sucessivamente interrompido pelos absolutismos democráticos, de esquerda e de direita.
Quando me qualifico como tradicionalista, quero acentuar que não ouso seguir os tais contra-revolucionários que querem uma revolução ao contrário, porque, mais do que o contrário de uma revolução, prefiro que se avance para uma revolução evitada, a fim de nos livrarmos das pós-revoluções castradoras que sempre nos fazem regredir.
Foi girondino Condorcet (1743-1794) que definiu a contra-revolução como une révolution au contraire, ao que Joseph de Maistre (1753-1821) respondeu, proclamando: nous ne voulons pas la contre-révolution, mais le contraire de la révolution. Assim se sintetizava o pensamento reaccionário puro que não hesitava em utilizar a violência para promover o regresso à anterior ordem absoluta, do trono e do altar, isto é, da monarquia de direito divino, acompanhada pela restauração do próprio poder do papa, segundo as perspectivas do ultramontanismo.
Por seu lado, John Adams (1735-1826), o segundo presidente da república americana, reconheceu que a revolução norte-americana não foi um levantamento inovador, mas a restauração das antigas liberdades e prerrogativas coloniais dos Tudor, criticando o abuso de conceitos apriorísticos que seria praticado por Thomas Jefferson (1743-1826) e James Madison (1751-1836). Neste sentido, subscreveu a tese de Edmund Burke (1729-1797), para quem a mesma foi uma revolução evitada, não realizada.
Quando me proclamo liberal, e até velho liberal, apenas quero dizer que não me seduz certo neoliberalismo importado, difundido pelas potências que beneficiam com as actuais regras do jogo das trocas mundiais de ideias, bens e serviços, porque, face ao pensamento único desse totalitarismo doce, que dissolve as identidades e as autonomias dos povos, das nações e das civilizações, importa assumir o libertacionismo, para se resistir em liberdadeirismo.
Nos liberi sumus; Rex noster liber est, manus nostrae nos liberverunt... [Nós somos livres; nosso Rei é livre, nossas mãos nos libertaram...]
terça-feira, novembro 25, 2003
segunda-feira, novembro 24, 2003
O MAPA DA EUROPA
Por Manuel Alves
A maré do referendo acerca do projecto de Constituição europeia continua a subir ameaçando oxigenar as águas turvas do ripanço europeu.
Por ocasião da ratificação do tratado de Maastricht a maré tocou a França e a Dinamarca, e, por ocasião do tratado de Nice, a Irlanda. Desta vez, em princípio, haverá consultas populares na Dinamarca, Países Baixos, Irlanda, Luxemburgo, Espanha, e talvez outras mais. Não é de admirar por isso que a subida da maré do referendo, a que se assiste por essa Europa fora, esteja a fazer surgir bastos sinais de preocupação e de incerteza entre os partidários da Constituição europeia.
Alguns comportam-se como se a União tivesse já colapsado, escavando-lhe as ruínas e desenhando-lhe novos projectos. Na França em declínio, por exemplo, aventa-se uma vez mais a possibilidade de se formalizar “uma Europa a duas velocidades”. Edouard Balladur, naturalmente, aproveitou para se congratular (“Une ou deux Europe”, Le Figaro, 29 de Outubro de 2003), enquanto o mais afoito «Director da Fundação para a pesquisa estratégica», François Heisbourg, sugeriu que de um lado podia ficar a “União constitucional” e, do outro, a “Europa do tratado de Nice” (“Le référendum et l’Europe-puissance”, Le Monde, 10 de Novembro de 2003)... O primeiro-ministro francês, Jean-Pierre Raffarin, já expôs o seu ponto fraco: "Se a Europa dos 25 fracassar, que hipótese sobra à França? A iniciativa de aproximação franco-alemã" (Daniel do Rosário, "A ofensiva do eixo", Expresso, 22 de Novembro de 2003).
Até ao fim da Conferência Intergovernamental e à realização dos referendos, é pois de prever uma multiplicação de chantagens e de ameaças.
Os partidários da Constituição gostariam que nos concentrássemos na actual querela entre "pequenos" e "grandes" Estados europeus. Essa querela deve merecer-nos atenção - sem dúvida - mas será muito mais útil que comecemos por recordar quando e porque é que a dimensão populacional dos Estados passou a ter importância na construção da “unidade europeia”.
Não se diga que a querela entre "pequenos" e "grandes" foi provocada pelo alargamento, porque esse problema não surgiu quando o “grande” Reino Unido se juntou à comunidade europeia, a par das “pequenas” Dinamarca e Irlanda. Por essa altura, os estadistas do «Velho Continente» ainda afirmavam querer juntar os povos e as nações europeias através dos respectivos Estados; a comunidade ainda se construía na base da igual importância e dignidade dos Estados; e ainda se reconhecia inteira legitimidade aos Chefes de Estado ou de Governo para representar as respectivas democracias nacionais.
O problema da dimensão populacional dos Estados só surgiu quando se instituiu o Parlamento europeu. Ao aceitarem a instituição de um órgão que agregava a representação dos cidadãos por cima dos seus Estados, os Chefes de Estado e de Governo acolheram o princípio da desigualdade dos Estados e diminuíram o princípio de legitimidade das democracias nacionais que representavam.
Foi por intermédio da criação do Parlamento europeu que se lançou uma contradição entre duas legitimidades que, não obstante derivarem da mesma fonte – o voto dos cidadãos -, cedo ou tarde, terá de ser superada: a contradição entre uma União Europeia baseada nas democracias nacionais e uma União Europeia baseada numa unidade supranacional onde o peso dos “grandes” esmagará tudo à sua passagem.
Essa contradição eclodiu de forma dramática em Nice, onde foi possível assistir ao agonizante protesto dos representantes dos “pequenos” Estados em busca de “minorias de bloqueio” nos órgãos colegiais da União. Então, os “grandes” limitaram-se a sorrir perante os “pequenos” diminuídos face à “grandeza europeia”.
Do sorriso, passou-se entretanto à ameaça.
Na «Declaração de Roma», em 18 de Julho de 2003, Valéry Giscard d’Estaing já não teve pejo em afirmar que pôr em causa o seu projecto de Constituição, "ainda que só parcialmente, conduzi-lo-ia ao fracasso". Mas, porque é que manter intacto o projecto de Constituição dos convencionais é assim tão importante?
Porque nele se resolve a enunciada contradição, como os próprios convencionais deixaram tombar ao afirmar que não podiam aceitar uma Europa onde “o dogma da igualdade entre os Estados” levaria a uma situação de "desigualdade entre os cidadãos" - "il ne serait pas acceptable d'imaginer une Europe où le dogme de l'égalité entre les Etats aboutirait à une situation d'inégalité entre les citoyens." (Giuliano Amato, Jean-Luc Dehaene e Valéry Giscard d’Estaing, “L'Europe demain : la fausse querelle des «petits» et des «grands»”, Le Monde, 13 de Novembro de 2003). Esta linguagem algo cifrada dos convencionais quer simplesmente dizer que, no seu projecto, a agregação dos cidadãos nas democracias nacionais fica subalternizada à agregação dos cidadãos ao nível europeu, ou seja, os Estados-membros ficam remetidos para a condição de instâncias inferiores e secundárias de um Estado unitário europeu em construção.
E a referida contradição está na verdade praticamente superada no projecto de Constituição, quando se atribui explicitamente à União Europeia a personalidade jurídica de um Estado cuja soberania constituinte se sobrepõe à dos Estados-membros (Jorge Miranda, “«Constituição» Europeia e Revisão Constitucional”, Público, 1 de Outubro de 2003), mas também quando surgem nele tão largamente reforçados de competências os órgãos supranacionais existentes: o Parlamento europeu e a Comissão.
A questão essencial em qualquer Constituição é sempre a de saber quem é que faz e aprova as leis. Ora segundo a Constituição dos convencionais, a função legislativa será exercida pelo Conselho de Ministros (órgão das “soberanias nacionais”, deliberando por maioria qualificada, sem veto), pelo Parlamento (órgão da “soberania europeia”, deliberando por maioria simples) e pela Comissão (Executivo “europeu”, deliberando por maioria simples com uma legitimidade conferida pelo Parlamento). Porque é ao Conselho de Ministros e ao Parlamento que compete aceitarem, ou não, as iniciativas legislativas da Comissão, se fosse ratificada a Constituição dos convencionais, às democracias nacionais pouco mais restaria que uma representação num Conselho de Ministros onde as mais importantes decisões seriam tomadas por maioria qualificada, sem veto.
Acresce que a Constituição prevê também a anulação das soberanias nacionais em matéria tão decisiva como a política externa e de defesa, instituindo um Ministro europeu dos Negócios Estrangeiros – Vice-presidente da Comissão - que agiria, falaria, e poderia assinar Tratados internacionais em nome dos Estados-membros.
Pela disposição dos órgãos e das competências, é certo que muito dificilmente se poderiam evitar no futuro os conflitos entre um Conselho de Ministros, que formalmente ainda “representa os Estados-membros”, e uma Comissão que se diz “representar o interesse geral” da União. Mas, sempre que estalassem conflitos de competências entre os vários órgãos legislativos, para qual deles seria pedido reforço de competências? Seria de esperar a atribuição futura de mais poderes ao Conselho de Ministros, órgão das residuais “soberanias nacionais”? Cedo ou tarde, os reforços de competências seriam naturalmente pedidos e atribuídos pelos “grandes” aos órgãos supranacionais, ou seja, à Comissão e ao Parlamento. Foi à Comissão e ao Parlamento que os convencionais atribuíram a missão de acabar de vez com o poder dos “pequenos”.
E tanto assim é que na Comissão, Michel Barnier e António Vitorino pedem já um “programa interinstitucional”, tendo por centro uma agenda proposta pela Comissão, e um Ministro da política económica europeia, sob a coordenação do seu presidente. E a procissão ainda vai no adro. Para 2005 está prometido um debate acerca da afectação directa de receitas fiscais para o Estado europeu. Seguir-se-ia, naturalmente, a pretexto da gestão dos programas e da aplicação da legislação europeia, a criação de uma Administração europeia a instalar e a intervir directamente sobre as administrações dos Estados-membros, convertidas em administrações subordinadas ao Estado europeu. E seguir-se-ia também a definição das fronteiras do Estado europeu, da sua capital, e das línguas oficiais (num máximo de três, por óbvias razões “técnicas”...). Não, não se pense que tudo isto são devaneios de alguns eurocratas; são propostas concretas dos partidários do Estado Europeu (como exemplo, ver Alain Lamassoure, “Après la Convention: vers la Constitution Européenne”, Commentaire, Outono de 2003).
Quanto ao Parlamento, é certo que ainda ali estão alguns deputados como Georges Berthu e José Ribeiro e Castro com coragem suficiente para lavrar o seu protesto face ao Estado unitário proposto pelos convencionais... Cedo ou tarde, porém, passariam a existir apenas deputados submetidos às lógicas e às disciplinas partidárias das «esquerdas» e das «direitas» europeias, anulando qualquer vestígio de representação dos interesses das Nações por que foram eleitos.
Depois de Nice, na perspectiva da construção de um Estado europeu, a alternativa que se desenhava no horizonte era entre presidencialismo e parlamentarismo. A solução presidencialista era precocemente “perigosa”. Bastou, por isso, impedir-se a instituição de uma segunda Câmara das Nações, para que ficasse escancarada a porta ao que por aí se designa por “democracia supranacional”, que o mesmo é dizer ao estabelecimento de um Estado europeu unitário assente na atribuição do monopólio do poder aos directórios partidários, que, no Parlamento europeu, se designam por Partido Popular Europeu (PPE) e Partido Socialista Europeu (PSE). Os "grandes" da Constituição dos convencionais, afinal, não são propriamente os Estados...
Pelo paralelismo com algumas democracias nacionais, percebe-se bem o alcance da démarche dos convencionais. Porque é que em certas nações - como em Portugal - para alguns é tão importante que exista uma e apenas uma Assembleia legislativa? Não embaraça a resposta: porque em tais nações, é por intermédio da unidade da representação, personificada na unidade de uma Assembleia, que se pode dispor de um poder imediato, presente, instantâneo, que subindo do legislativo ao executivo fica sempre guardado nas mãos de uns poucos - os directórios partidários. Aí está a opção de fundo tomada pelos convencionais ao estabelecerem o actual projecto de Estado europeu.
Contra a lição actualíssima da História, quando ainda está bem viva na memória de todos a irremissível liquidação do colossal projecto de fusão de Nações, levantado pelas oligarquias comunistas do Leste, eis que as oligarquias democratistas do Ocidente copiam a seu modo o empreendimento falhado. Esquecem, lamentavelmente, – como advertiu um dia Mário Saraiva - que as Nações com uma alma, uma língua, uma independência de vida e fazedoras de História, nunca são impunemente suprimidas do mapa dos continentes.
Por Manuel Alves
A maré do referendo acerca do projecto de Constituição europeia continua a subir ameaçando oxigenar as águas turvas do ripanço europeu.
Por ocasião da ratificação do tratado de Maastricht a maré tocou a França e a Dinamarca, e, por ocasião do tratado de Nice, a Irlanda. Desta vez, em princípio, haverá consultas populares na Dinamarca, Países Baixos, Irlanda, Luxemburgo, Espanha, e talvez outras mais. Não é de admirar por isso que a subida da maré do referendo, a que se assiste por essa Europa fora, esteja a fazer surgir bastos sinais de preocupação e de incerteza entre os partidários da Constituição europeia.
Alguns comportam-se como se a União tivesse já colapsado, escavando-lhe as ruínas e desenhando-lhe novos projectos. Na França em declínio, por exemplo, aventa-se uma vez mais a possibilidade de se formalizar “uma Europa a duas velocidades”. Edouard Balladur, naturalmente, aproveitou para se congratular (“Une ou deux Europe”, Le Figaro, 29 de Outubro de 2003), enquanto o mais afoito «Director da Fundação para a pesquisa estratégica», François Heisbourg, sugeriu que de um lado podia ficar a “União constitucional” e, do outro, a “Europa do tratado de Nice” (“Le référendum et l’Europe-puissance”, Le Monde, 10 de Novembro de 2003)... O primeiro-ministro francês, Jean-Pierre Raffarin, já expôs o seu ponto fraco: "Se a Europa dos 25 fracassar, que hipótese sobra à França? A iniciativa de aproximação franco-alemã" (Daniel do Rosário, "A ofensiva do eixo", Expresso, 22 de Novembro de 2003).
Até ao fim da Conferência Intergovernamental e à realização dos referendos, é pois de prever uma multiplicação de chantagens e de ameaças.
Os partidários da Constituição gostariam que nos concentrássemos na actual querela entre "pequenos" e "grandes" Estados europeus. Essa querela deve merecer-nos atenção - sem dúvida - mas será muito mais útil que comecemos por recordar quando e porque é que a dimensão populacional dos Estados passou a ter importância na construção da “unidade europeia”.
Não se diga que a querela entre "pequenos" e "grandes" foi provocada pelo alargamento, porque esse problema não surgiu quando o “grande” Reino Unido se juntou à comunidade europeia, a par das “pequenas” Dinamarca e Irlanda. Por essa altura, os estadistas do «Velho Continente» ainda afirmavam querer juntar os povos e as nações europeias através dos respectivos Estados; a comunidade ainda se construía na base da igual importância e dignidade dos Estados; e ainda se reconhecia inteira legitimidade aos Chefes de Estado ou de Governo para representar as respectivas democracias nacionais.
O problema da dimensão populacional dos Estados só surgiu quando se instituiu o Parlamento europeu. Ao aceitarem a instituição de um órgão que agregava a representação dos cidadãos por cima dos seus Estados, os Chefes de Estado e de Governo acolheram o princípio da desigualdade dos Estados e diminuíram o princípio de legitimidade das democracias nacionais que representavam.
Foi por intermédio da criação do Parlamento europeu que se lançou uma contradição entre duas legitimidades que, não obstante derivarem da mesma fonte – o voto dos cidadãos -, cedo ou tarde, terá de ser superada: a contradição entre uma União Europeia baseada nas democracias nacionais e uma União Europeia baseada numa unidade supranacional onde o peso dos “grandes” esmagará tudo à sua passagem.
Essa contradição eclodiu de forma dramática em Nice, onde foi possível assistir ao agonizante protesto dos representantes dos “pequenos” Estados em busca de “minorias de bloqueio” nos órgãos colegiais da União. Então, os “grandes” limitaram-se a sorrir perante os “pequenos” diminuídos face à “grandeza europeia”.
Do sorriso, passou-se entretanto à ameaça.
Na «Declaração de Roma», em 18 de Julho de 2003, Valéry Giscard d’Estaing já não teve pejo em afirmar que pôr em causa o seu projecto de Constituição, "ainda que só parcialmente, conduzi-lo-ia ao fracasso". Mas, porque é que manter intacto o projecto de Constituição dos convencionais é assim tão importante?
Porque nele se resolve a enunciada contradição, como os próprios convencionais deixaram tombar ao afirmar que não podiam aceitar uma Europa onde “o dogma da igualdade entre os Estados” levaria a uma situação de "desigualdade entre os cidadãos" - "il ne serait pas acceptable d'imaginer une Europe où le dogme de l'égalité entre les Etats aboutirait à une situation d'inégalité entre les citoyens." (Giuliano Amato, Jean-Luc Dehaene e Valéry Giscard d’Estaing, “L'Europe demain : la fausse querelle des «petits» et des «grands»”, Le Monde, 13 de Novembro de 2003). Esta linguagem algo cifrada dos convencionais quer simplesmente dizer que, no seu projecto, a agregação dos cidadãos nas democracias nacionais fica subalternizada à agregação dos cidadãos ao nível europeu, ou seja, os Estados-membros ficam remetidos para a condição de instâncias inferiores e secundárias de um Estado unitário europeu em construção.
E a referida contradição está na verdade praticamente superada no projecto de Constituição, quando se atribui explicitamente à União Europeia a personalidade jurídica de um Estado cuja soberania constituinte se sobrepõe à dos Estados-membros (Jorge Miranda, “«Constituição» Europeia e Revisão Constitucional”, Público, 1 de Outubro de 2003), mas também quando surgem nele tão largamente reforçados de competências os órgãos supranacionais existentes: o Parlamento europeu e a Comissão.
A questão essencial em qualquer Constituição é sempre a de saber quem é que faz e aprova as leis. Ora segundo a Constituição dos convencionais, a função legislativa será exercida pelo Conselho de Ministros (órgão das “soberanias nacionais”, deliberando por maioria qualificada, sem veto), pelo Parlamento (órgão da “soberania europeia”, deliberando por maioria simples) e pela Comissão (Executivo “europeu”, deliberando por maioria simples com uma legitimidade conferida pelo Parlamento). Porque é ao Conselho de Ministros e ao Parlamento que compete aceitarem, ou não, as iniciativas legislativas da Comissão, se fosse ratificada a Constituição dos convencionais, às democracias nacionais pouco mais restaria que uma representação num Conselho de Ministros onde as mais importantes decisões seriam tomadas por maioria qualificada, sem veto.
Acresce que a Constituição prevê também a anulação das soberanias nacionais em matéria tão decisiva como a política externa e de defesa, instituindo um Ministro europeu dos Negócios Estrangeiros – Vice-presidente da Comissão - que agiria, falaria, e poderia assinar Tratados internacionais em nome dos Estados-membros.
Pela disposição dos órgãos e das competências, é certo que muito dificilmente se poderiam evitar no futuro os conflitos entre um Conselho de Ministros, que formalmente ainda “representa os Estados-membros”, e uma Comissão que se diz “representar o interesse geral” da União. Mas, sempre que estalassem conflitos de competências entre os vários órgãos legislativos, para qual deles seria pedido reforço de competências? Seria de esperar a atribuição futura de mais poderes ao Conselho de Ministros, órgão das residuais “soberanias nacionais”? Cedo ou tarde, os reforços de competências seriam naturalmente pedidos e atribuídos pelos “grandes” aos órgãos supranacionais, ou seja, à Comissão e ao Parlamento. Foi à Comissão e ao Parlamento que os convencionais atribuíram a missão de acabar de vez com o poder dos “pequenos”.
E tanto assim é que na Comissão, Michel Barnier e António Vitorino pedem já um “programa interinstitucional”, tendo por centro uma agenda proposta pela Comissão, e um Ministro da política económica europeia, sob a coordenação do seu presidente. E a procissão ainda vai no adro. Para 2005 está prometido um debate acerca da afectação directa de receitas fiscais para o Estado europeu. Seguir-se-ia, naturalmente, a pretexto da gestão dos programas e da aplicação da legislação europeia, a criação de uma Administração europeia a instalar e a intervir directamente sobre as administrações dos Estados-membros, convertidas em administrações subordinadas ao Estado europeu. E seguir-se-ia também a definição das fronteiras do Estado europeu, da sua capital, e das línguas oficiais (num máximo de três, por óbvias razões “técnicas”...). Não, não se pense que tudo isto são devaneios de alguns eurocratas; são propostas concretas dos partidários do Estado Europeu (como exemplo, ver Alain Lamassoure, “Après la Convention: vers la Constitution Européenne”, Commentaire, Outono de 2003).
Quanto ao Parlamento, é certo que ainda ali estão alguns deputados como Georges Berthu e José Ribeiro e Castro com coragem suficiente para lavrar o seu protesto face ao Estado unitário proposto pelos convencionais... Cedo ou tarde, porém, passariam a existir apenas deputados submetidos às lógicas e às disciplinas partidárias das «esquerdas» e das «direitas» europeias, anulando qualquer vestígio de representação dos interesses das Nações por que foram eleitos.
Depois de Nice, na perspectiva da construção de um Estado europeu, a alternativa que se desenhava no horizonte era entre presidencialismo e parlamentarismo. A solução presidencialista era precocemente “perigosa”. Bastou, por isso, impedir-se a instituição de uma segunda Câmara das Nações, para que ficasse escancarada a porta ao que por aí se designa por “democracia supranacional”, que o mesmo é dizer ao estabelecimento de um Estado europeu unitário assente na atribuição do monopólio do poder aos directórios partidários, que, no Parlamento europeu, se designam por Partido Popular Europeu (PPE) e Partido Socialista Europeu (PSE). Os "grandes" da Constituição dos convencionais, afinal, não são propriamente os Estados...
Pelo paralelismo com algumas democracias nacionais, percebe-se bem o alcance da démarche dos convencionais. Porque é que em certas nações - como em Portugal - para alguns é tão importante que exista uma e apenas uma Assembleia legislativa? Não embaraça a resposta: porque em tais nações, é por intermédio da unidade da representação, personificada na unidade de uma Assembleia, que se pode dispor de um poder imediato, presente, instantâneo, que subindo do legislativo ao executivo fica sempre guardado nas mãos de uns poucos - os directórios partidários. Aí está a opção de fundo tomada pelos convencionais ao estabelecerem o actual projecto de Estado europeu.
Contra a lição actualíssima da História, quando ainda está bem viva na memória de todos a irremissível liquidação do colossal projecto de fusão de Nações, levantado pelas oligarquias comunistas do Leste, eis que as oligarquias democratistas do Ocidente copiam a seu modo o empreendimento falhado. Esquecem, lamentavelmente, – como advertiu um dia Mário Saraiva - que as Nações com uma alma, uma língua, uma independência de vida e fazedoras de História, nunca são impunemente suprimidas do mapa dos continentes.
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