Carta do Canadá
por Fernanda Leitão
Quando assentei praça no jornalismo, no século passado, a comunicação social era mantida com trela curta e açaime pela censura. Esta era uma coisa misteriosa, sinistra e caricata, personificada por uns coronéis tarimbeiros sobrados do 28 de Maio de 1926. Eram engraçados, os coronéis da censura. Um grupo de universitários que eu conheci, pontificado por um que veio a ser médico em Moçambique, resolveu editar uma revista, isto em Coimbra, para o que montou um elaborado plano de pega de cernelha à censura. Como o militar que naquela cidade chefiava a censura ia todos os dias tomar a bica à mesma hora, a rapaziada foi-se-lhe chegando,mansa e sonsa, numa conversa mole que encantava o tropa. Quando acharam que o bicho estava pronto para a pega, apareceram-lhe com as provas da revista para a censura. O coronel passou os olhos pela prosa, achou aquilo inocente como o chá de tília e assinou de cruz. A coisa ia andando neste remanso. A pouco e pouco, como quem não quer a coisa, eles começaram a meter umas poesias, daquelas em que verdade rima com liberdade, pão com revolução, e assim. E o tropa sempre a assinar de cruz. Até que caíu o Carmo e a Trindade: o coronel foi questionado e apertado pela PIDE por causa da revista dos rapazes. Quando eles se abeiraram, prazenteiros, da mesa do tropa, este atirou-lhes à cara: “Traidores, falsos, malandros, comunistas, comigo não brincam mais. Ficam sabendo que nunca mais deixo passar uma poesia. Nem que seja assinada pelo Salazar”. Ardeu a tenda literária aos académicos que, entretanto, tinham bebido uns litros de café à conta do militar.
Os coronéis da censura em Lisboa também eram desta finura de inteligência. Um dia fizeram uma lista de palavras proibidas que mandaram entregar nas redacções: prostituta, aborto, suicídio, manifestação, liberdade e outras que já não lembro. Eu trabalhava numa agência noticiosa estrangeira, com delegação em Lisboa, cujo chefe colocou logo a lista numa parede, com a mesma rapidez que punha nos pedidos de notícias no estrangeiro que Mário Soares lhe fazia por carta, entregue em mão, num alvoroço que deixava todos a sonhar com o golpe de estado para essa noite. Eu tenho montes de defeitos, mas gosto de ajudar: acrescentei na lista as palavras estudante, repressão, nacionalista africano. Porque, recordo, nas universidades e nas colónias o tempo era de bumba no toutiço.
Nos arraiais da comunicação desejava-se o fim da censura como quem deseja o fim do cancro. Foi um entusiasmo quando os deputados da ala liberal, liderados por Francisco Sá Carneiro, apresentaram um projecto de Lei de Imprensa na Assembleia Nacional, no consulado de Marcelo Caetano. Uma noite, no restaurante Rina, ao Bairro Alto, poiso certo de jornalistas e radialistas, a discussão em torno do assunto foi de tal ordem que, já passava das 23 horas, a patroa nos veio pedir, naquele seu jeito meigo, se podíamos ir conversar para outro lado que ela tinha de levantar-se muito cedo para ir à Ribeira fazer as compras. Levantámos ferro e ancorámos numa leitaria, daquelas que estão abertas toda a noite, e o berreiro continuou. Estava connosco José Carlos Ary dos Santos que nos tinha acompanhado ao jantar. No meio daquele temporal de argumentos, Ary dos Santos levantou-se para ir aos lavabos, ia andando e sempre a voltar-se para traz, o corpanzil imenso, o vozeirão que estremecia tudo, a dizer de sua justiça, quando o tasqueiro o chamou, aflito: “Oh sor Ary, por aí não, aí é para senhoras”. O poeta agarrou a rábula no ar, pôs a mão na anca e declamou: “E eu sou alguma galdéria”? O riso apagou o incêndio.
Como podem calcular, o 25 de Abril foi para nós, em termos de liberdade de expressão, um maná. Quando vi o Manecas das Intentas (Manuel Serra), à janela da censura, deitando para a Rua da Misericórdia pastas e papéis soltos, gritei-lhe cá de baixo:”Pára com isso, burro! Esses papéis são a memória do povo”. Sempre o guardar dessa memória me pareceu obrigatório. E é por nem sempre ter havido esse cuidado que, como num aviso de muito mau prenúncio, registo as palavras proibidas que este governo tem feito saber: estado social, subsídio de férias,subsídio de Natal, feriados com grande significado histórico, empobrecer, cortes desiguais, obediência a Merkel, desobediência civil à troika,escola pública, carnaval, etc. etc.
Gerações sofreram, choraram lágrimas de sangue, encheram as prisões e os exílios, numa luta desigual, para o povo alcançar os direitos que há muitos anos lhe eram devidos. Não podemos consentir no que se está a passar e no que se está a preparar.
Nos liberi sumus; Rex noster liber est, manus nostrae nos liberverunt... [Nós somos livres; nosso Rei é livre, nossas mãos nos libertaram...]
segunda-feira, abril 30, 2012
As palavras proibidas
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sábado, abril 21, 2012
Cinquenta anos depois
Carta do Canadá
por Fernanda Leitão
Participei da greve nacional de estudantes universitários, começada em Lisboa em 24 de Março de 1962, lado a lado com largos milhares de outros estudantes. A greve foi consequência da proibição, pelo governo de Salazar, das celebrações do Dia do Estudante. O aparato policial foi impressionante a cercar a Cidade Universitária. Perante o facto, Marcelo Caetano, então Reitor da Universidade Clássica de Lisboa, falou aos milhares de estudantes concentrados frente às Faculdades de Letras e Direito: verificava que, lamentavelmente, de novo o poder executivo pisava o poder legislativo e, visto isso, estavam todos os estudantes convidados a jantar no restaurante Castanheira de Moura, ao Lumiar. Ordeiramente, muitos estudantes dirigiram-se ao restaurante e, quando ali chegaram, foram violentamente espancados pela polícia de choque. Estava aberta a guerra entre academia e regime, que rapidamente alastrou a outras universidades do país. Como seria de esperar, surgiram líderes: Eurico Figueiredo, Jorge Sampaio, Victor Wengorovius, Joaquim Mestre, José Medeiros Ferreira e outros. O Prof. Lindley Cintra, por ser solidário com os estudantes, foi barbamente espancado mas não desistiu. Foi então que se ouviram as vozes de José Afonso, Adriano Correia de Oliveira e Manuel Alegre. Nasceram as baladas de protesto. A repressão foi brutal: foi a hora de (triste) glória do capitão Maltez e de polícias de uma aterradora boçalidade. Dali a poucos meses, muitos daqueles jovens eram mobilizados para a guerra de Angola e colocados nas linhas da frente, depois de umas recrutas que ficaram célebres pelo abuso e brutalidade. Teve então lugar uma emigração a salto, que foi uma verdadeira hemorragia para o país, pois o regime só tinha para oferecer a guerra em África ou a penúria em território europeu.
Um ano antes, quando rebentou a guerra em Angola, um nutrido grupo de membros da Casa dos Estudantes do Império, de que fui a sócia 450, apareceu numa manifestação (de voluntários à força) em apoio a Salazar, e foi espancado com requintes de brutalidade pela GNR a cavalo porque resolveu acompanhar a palavra de ordem orquestrada pelos mentores do regime: Angola é Nossa. Ficámos a perceber que Angola não era nossa, era “deles”. E passámos a chamar à GNR a cavalo a “fracção imprópria”. Nos meses que se seguiram, ondas de estudantes ultramarinos rumaram ao exílio e radicalizaram a sua posição, o que redundou em perda para Portugal e para as colónias.
Julgou-se, ingenuamente, que a revolução de 1974 traria o bom senso elementar de educar as forças policiais, apelando à inteligência e ao facto de serem os seus elementos pessoas do Povo, tornando-os de exemplar civismo e fazendo deles pessoas compreendendo cada situação, de modo a saberem que a mão pesada é para criminosos e terroristas, a exemplo do que se passa em países civilizados. Enganámo-nos.
No consulado de Cavaco Silva, o nunca por demais louvado Dias Loureiro, esse varão impoluto, que era então ministro da Administraçáo Interna, mandou a polícia de choque espancar emigrantes idos de países da Europa e do Canadá, por se terem manifestado em frente do Ministério da Justiça pelo facto de todas as suas poupanças terem sido roubadas pela Caixa Económica Faialense, cujos dirigentes eram barões do PSD.
Volta e meia, em bairros problemáticos, as forças policiais carregam forte e feio sobre pessoas que desesperam de encontrar trabalho, escola, dignidade.
E agora, no Porto, no problemático bairro da Fontinha, de novo foi a brutalidade cega da polícia sobre um grupo que ocupou um imóvel abandonado e o transformou num espaço onde os moradores podiam ler, ver filmes, pintar, fazer teatro, cantar, aprender a ler e escrever, um espaço de generosidade e solidariedade. Um grupo como devia haver às centenas pelo país, sobretudo nesta hora de incerteza e escassez, que congregava as pessoas pelo saber, o conhecimnto, e não pela violência. Depois de baterem à farta, as chamadas forças da ordem partiram portas e janelas, destruíram tudoo que encontraram naquele espaço, numa raiva irracional.
Resumindo: para mal de todos, polícia incluida, a boçalidade continua. Provavelmente porque é uma emanação de quem tutela. E porque quem tutela tenta não sentir medo promovendo a violência.
por Fernanda Leitão
Participei da greve nacional de estudantes universitários, começada em Lisboa em 24 de Março de 1962, lado a lado com largos milhares de outros estudantes. A greve foi consequência da proibição, pelo governo de Salazar, das celebrações do Dia do Estudante. O aparato policial foi impressionante a cercar a Cidade Universitária. Perante o facto, Marcelo Caetano, então Reitor da Universidade Clássica de Lisboa, falou aos milhares de estudantes concentrados frente às Faculdades de Letras e Direito: verificava que, lamentavelmente, de novo o poder executivo pisava o poder legislativo e, visto isso, estavam todos os estudantes convidados a jantar no restaurante Castanheira de Moura, ao Lumiar. Ordeiramente, muitos estudantes dirigiram-se ao restaurante e, quando ali chegaram, foram violentamente espancados pela polícia de choque. Estava aberta a guerra entre academia e regime, que rapidamente alastrou a outras universidades do país. Como seria de esperar, surgiram líderes: Eurico Figueiredo, Jorge Sampaio, Victor Wengorovius, Joaquim Mestre, José Medeiros Ferreira e outros. O Prof. Lindley Cintra, por ser solidário com os estudantes, foi barbamente espancado mas não desistiu. Foi então que se ouviram as vozes de José Afonso, Adriano Correia de Oliveira e Manuel Alegre. Nasceram as baladas de protesto. A repressão foi brutal: foi a hora de (triste) glória do capitão Maltez e de polícias de uma aterradora boçalidade. Dali a poucos meses, muitos daqueles jovens eram mobilizados para a guerra de Angola e colocados nas linhas da frente, depois de umas recrutas que ficaram célebres pelo abuso e brutalidade. Teve então lugar uma emigração a salto, que foi uma verdadeira hemorragia para o país, pois o regime só tinha para oferecer a guerra em África ou a penúria em território europeu.
Um ano antes, quando rebentou a guerra em Angola, um nutrido grupo de membros da Casa dos Estudantes do Império, de que fui a sócia 450, apareceu numa manifestação (de voluntários à força) em apoio a Salazar, e foi espancado com requintes de brutalidade pela GNR a cavalo porque resolveu acompanhar a palavra de ordem orquestrada pelos mentores do regime: Angola é Nossa. Ficámos a perceber que Angola não era nossa, era “deles”. E passámos a chamar à GNR a cavalo a “fracção imprópria”. Nos meses que se seguiram, ondas de estudantes ultramarinos rumaram ao exílio e radicalizaram a sua posição, o que redundou em perda para Portugal e para as colónias.
Julgou-se, ingenuamente, que a revolução de 1974 traria o bom senso elementar de educar as forças policiais, apelando à inteligência e ao facto de serem os seus elementos pessoas do Povo, tornando-os de exemplar civismo e fazendo deles pessoas compreendendo cada situação, de modo a saberem que a mão pesada é para criminosos e terroristas, a exemplo do que se passa em países civilizados. Enganámo-nos.
No consulado de Cavaco Silva, o nunca por demais louvado Dias Loureiro, esse varão impoluto, que era então ministro da Administraçáo Interna, mandou a polícia de choque espancar emigrantes idos de países da Europa e do Canadá, por se terem manifestado em frente do Ministério da Justiça pelo facto de todas as suas poupanças terem sido roubadas pela Caixa Económica Faialense, cujos dirigentes eram barões do PSD.
Volta e meia, em bairros problemáticos, as forças policiais carregam forte e feio sobre pessoas que desesperam de encontrar trabalho, escola, dignidade.
E agora, no Porto, no problemático bairro da Fontinha, de novo foi a brutalidade cega da polícia sobre um grupo que ocupou um imóvel abandonado e o transformou num espaço onde os moradores podiam ler, ver filmes, pintar, fazer teatro, cantar, aprender a ler e escrever, um espaço de generosidade e solidariedade. Um grupo como devia haver às centenas pelo país, sobretudo nesta hora de incerteza e escassez, que congregava as pessoas pelo saber, o conhecimnto, e não pela violência. Depois de baterem à farta, as chamadas forças da ordem partiram portas e janelas, destruíram tudoo que encontraram naquele espaço, numa raiva irracional.
Resumindo: para mal de todos, polícia incluida, a boçalidade continua. Provavelmente porque é uma emanação de quem tutela. E porque quem tutela tenta não sentir medo promovendo a violência.
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