quarta-feira, março 17, 2004

O REGRESSO DO REI

Por Teresa Maria Martins de Carvalho

Com este último filme, completou-se a trilogia épica do «Senhor dos Anéis». Sabemos que, depois de exibida, continuará a acontecer em DVD, para encanto e distracção de famílias saudosas, mas, apesar disso, nasce e permanece secreta melancolia, inerente aos finais das grandes proezas, não se decidindo donde decorre, se do facto, simples e infantil, de não haver mais história para contar que subjugue e entretenha, se do acordar súbito para outra realidade muito menos entusiasmante.

Os mitos não são de leitura fácil e imediata e enquanto o encadeamento febril dos acontecimentos e a beleza extrema dos cenários perduram na memória, vai começando a dissipar-se o enleio estético e a impor-se à consciência o exercício quase mecânico de encontrar situações reais ou sonhos acalentados que se possam encaixar nesta never ending story.

Há quem veja na aventura do corajoso e fiel Frodo uma alusão directa à missão de Jesus Cristo que, arrastando-se na sua Paixão, consegue, com a colaboração de alguns dos seus habitantes, trazer finalmente a paz à Terra Média. Frodo até acaba por escapar à condição humana da morte, embarcando com Gandalf no navio que conduz à eternidade. Já não pertencia a este mundo.

Tal interpretação até condiz com o conhecido e intenso catolicismo de Tolkien, mas como não sabemos que ideia conduziu realmente a sua imaginação, pois não nos deixou chaves nenhumas, o mito que ele criou também nos pertence e é nossa liberdade de o querermos ler ao nosso jeito.

A salvação da Terra Média joga-se – e isso é evidente – na destruição do poder absoluto, totalitário que a ameaça. Realiza-se através da generosidade, da fidelidade, da coragem, do esforço e do espírito de sacrifício do pequeno povo, personificado pelo hobbit Frodo e seus amigos. Nessa caminhada, cega e teimosa, desenha-se a mesma procura, a mesma busca de algo, seja do Graal ou do Preste João, que contrarie a imobilidade sem esperança e aponte para caminhos misteriosos de sonho e ultrapassagem do viver humano.

Nesta belíssima metáfora, minuciosa e divertida, que é a Terra Média, onde convivem, com naturalidade, hobbits, elfos, anões e o mágico Gandalf, aceitando-se mutuamente nas suas diferenças, só o aparecimento do homem – de princípio encapuçado, escondido, friorento – irá desencadear a vocação da irmandade para a difícil tarefa de, através da eliminação do terceiro anel, ou seja do poder do mal então imperante, alcançar a conquista da pacificação.

Esse poder monstruoso, de alianças tenebrosas, parecia indestrutível se não fosse, ao lado de Frodo, dar-se a transformação do homem, adquirindo ele a sua expressão real, a herança que recebe do seu nome, Aragorn. É uma herança de sangue, essa, que irá, através dele, reunir, numa identificação de destino, os povos da Terra Média, ameaçados pelo medo e pela dispersão.

Nesta saga, não é o rei que se impõe ao povo mas é a gente da Terra Média que o impõe a ele próprio. Não é uma tomada de preeminência, orgulhosa e auto-satisfeita, mas o reconhecimento do dever que nasce da situação e a que ele não pode renunciar, porque lhe é indicado, conferido para a salvação de todos. Recupera para as suas mãos o seu destino mas que é um destino comum e é porque é comum que esse destino é o seu.

Mas a colaboração do povo pequeno é imprescindível, tanto que, no final do filme, são os hobbits que recebem a grande ovação de gratidão e louvor, por indicação do próprio rei.

Não sei se o escritor (e no caso o realizador do filme) estaria de acordo com esta extravagante explicação mas a mim muito me calha aqui, para iniciar uma meditação sobre a fragilidade da monarquia, tema que há muito me rói o pensamento.

Exactamente porque é investida pelo povo, a monarquia é frágil. Com isto não quero significar que esteja em desacordo com as inteligentes deduções que sempre conduzem à fatal escolha da monarquia como a chefia de Estado mais lógica, tanto nos aspectos económicos e estéticos, como na aceitação de uma dinastia que traz consigo a herança e a garantia da história, tese racionalmente indestrutível.

Nos seus estudos e descobertas, o controverso e fascinante antropólogo René Girard, quando depara com o gesto primitivo que executa a vítima escolhida para pacificar a multidão que se destrói a si mesma no desenrolar da violência mútua, vê que essa escolha nunca é arbitrária, como se julga acontecer na tragédia do linchamento, forma moderna dessa execução. A escolha obedece a supostos sinais incriminatórios, visíveis na diferença, física ou moral, da vítima a abater, investida por isso e para isso pela multidão infeliz e enraivecida que assim encontrou quem era culpado da desgraça.

Assim é na morte do Rei, quando é violenta e ofensiva. Pouco tem a ver com disputas de poder, embora possa encobrir conspirações e manipulações oportunas. Assenta na inversão súbita de valores que aponta, como vítima perfeita, aquele que mais se diferencia na multidão anónima.

O regicídio faz saltar as garantias dadas, de parte a parte, pelo investimento sentimental e fiel do povo no Rei, ferindo, do mesmo modo, a instituição real, como muito bem sabem os seus adversários e inimigos. Provoca, ao mesmo tempo, um vazio emocional, um choque desestabilizador, mostrando o Rei assassinado na sua fragilidade de ser humano. Foi exorcismo inútil, portanto. E uma ofensa profunda à fidelidade popular que se vê enganada a si própria, num equívoco aterrador.

Ninguém diz da mesma maneira “Mataram o Presidente!” ou “Mataram o Rei!” O presidente da República é negociável. O Rei morre com o povo que nele morre, no mesmo segundo.

Mas a instituição real não acaba. É mesmo da sua essência não acabar. A Dinastia é a árvore do Reino. Abate-se a árvore mas ficam as raízes. Há sempre um herdeiro que renova a esperança e poderá regressar. E isto é perfeitamente legível neste último filme da trilogia do «Senhor dos Anéis» que se intitula exemplarmente «O Regresso do Rei». É tão entusiasmante! Lá vem ele, a impor-se à desordem maléfica e a tornar alcançáveis a esperança e a salvação. Como diz o Salmo: “Ó herói, coloca a tua espada à cintura; ela é o teu adorno e a tua glória. Avança e cavalga triunfante, em defesa da verdade, da misericórdia e da justiça; a tua direita realizará prodígios (Salmo 45, 4-5).

Quando os israelitas pediram ao profeta Samuel: “Dá-nos um rei”, o profeta ungiu, como escolhido do Senhor, primeiro a Saul e depois a David. O sistema teocrático não ficou assim diminuído porque ao Rei foi dada a unção que o tornava sagrado, vigário de Deus, intermediário e depositário do poder divino, intrometendo-se como vigia do Senhor, como seu representante inviolável. Assim, Deus governa Israel por interposta pessoa, o seu ungido. Aqui é conferido ao Rei o poder religioso, acrescentando-se ao seu poder intrínseco a aura religiosa que o legitima mais profundamente e que tornará sacrilégio o atentado à sua vida. Quando David teve à sua mercê Saul adormecido e era incitado a matá-lo, respondeu indignado: “Quem poderia, sem pecado, estender a mão contra o ungido do Senhor” (1 Sm 26, 9). Na Idade Média, esta sagração continuou a usar-se em quase todos os países da Cristandade. E os Reis, depois da unção, adquiriam o poder de curar e à volta destes reis taumaturgos se apinhava a multidão dos afligidos para serem tocados e sanados.

Não é visível, na monarquia portuguesa, a unção real, embora existam testemunhos escritos de que essa unção se dava em restritos círculos clericais. A eleição do Rei era normalmente feita por aclamação em Cortes. A nossa monarquia era profundamente cristã. Sem apoio religioso, a monarquia portuguesa dependia do coração do povo.

Já não se usa matar o Rei. Carlos I de Inglaterra, Luís XVI de França, El-Rei D. Carlos, o Arquiduque Fernando, herdeiro do trono austríaco, o czar Nicolau II da Rússia serão heróis escusados, mártires para nada? Nem com o tempo saram as feridas da consciência, ensombrando a memória.

Para que se saiba, depois de readquirida a sua liberdade, a Igreja Ortodoxa Russa, canonizou como mártires o último czar e os seus familiares com ele barbaramente fuzilados.

A Academia de Hollywood distinguiu o filme de Jackson com todos os Óscares (11 !) nas categorias para que tinha sido nomeado. Um recorde. Os dois filmes anteriores a este, a saber «A Irmandade do Anel» e «As duas Torres» não levaram nada nos concursos em que apareceram. Só este, «O Regresso do Rei», foi assim tão profusamente premiado.

Mas, os nossos miríficos fazedores de opinião, que dominam os meios de comunicação social, insistem em dizer que foi «O Senhor dos Anéis» que recebeu tanto prémio. Não foi. Foi «O Regresso do Rei». Dir-se-ia que certo resquício jacobino flutua no ambiente e impede que alguém pronuncie ou sequer sussurre: «O Regresso do Rei». Parece que lhes queima a boca.


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