O FIM DA RURALIDADE
Por Teresa Maria Martins de Carvalho
Quando, aqui há mais de quarenta anos, o autor do romance O rato que ruge (adptado depois ao cinema, com Peter Sellers) veio, com a família, passar as férias de verão à Malveira da Serra, gostou da aventura portuguesa que retratou num outro livro Não ponham alho na sopa! (não percebo porque é que tanto estrangeiro tem a mania de que nós, portugueses, pomos alho em tudo! Se calhar é verdade...)
A Malveira da Serra era, nessa altura, uma aldeia rural, embora já tivesse boas moradias de veraneio. Foi uma delas que a agência de turismo lhe alugou, contratando, ao mesmo tempo, pessoal doméstico, com chauffer e tudo. Nesse livro, o autor conta-nos da paz e serenidade dessa estadia, do nascimento do seu terceiro filho na maternidade do Monte Estoril, dos subtis entendimentos e aflitivos desconcertos com aqueles que os serviam.
A certa altura, andando a passear a pé, pelos campos adjacentes, com o filho mais velho, faz-lhe notar algo de extraordinário:
- Olha, meu filho. Esta cena nunca mais a verás.
Era apenas um homem lavrando o seu bocado de terra com uma junta de bois. Mas o modo como se dirigia aos animais, falando-lhe com sons apropriados, na difícil tarefa de darem a volta no fim da leira e recomeçarem a lavra, compunha, de facto, na serenidade da tarde, um quadro admirável, a comunhão conjunta do homem com a sua terra e os seus animais.
De facto, estas cenas estão a acabar ou já acabaram. Não tenho nada contra tractores, é óbvio. Vieram facilitar grandemente a agricultura mas, na troca, alguma coisa se perdeu... Não vale a pensar que o “antigamente” era melhor. Não era. Com a mecanização muitas das duras servidões dos trabalhos agrícolas desapareceram.
Lembro-me do discurso veemente do indomável Gonçalo Ribeiro Telles que, já sentindo essa perda inevitável da ruralidade e dos valores que trazia consigo, continuava vendo, nos limites da cidade, não tristes terrenos “espectantes”, cheias da animação do cultivo e dos bichos, enfiando-se sorrateiramente pelo meio dos prédios mais afastados do centro... Meu caro Gonçalo! Há um vandalismo inerente ao bairro pobre, “social” e periférico, arremessado para o subúrbio do subúrbio, que lhe proporciona terrenos circundantes, rapados, encharcados, sujos. “Hortinhas” não se dão ali facilmente.
Depois do referendo sobre a regionalização percebeu-se que o “não” tinha ganho por duas razões: em primeiro lugar havia os que queriam mais centralismo com medo de que um país tão pequeno, dividido em três grandes regiões, estas penderiam para a autonomização e talvez para parcerias com as zonas autônomas de Espanha, acabando-se Portugal. Não é um cenário muito remoto pelo que se está vendo no sonho iberista, desta vez económico mais do que político. O que nos dias de hoje vem a dar no mesmo. A segunda razão assentava na desconfiança dos municípios em relação aos vizinhos mais fortes que lhes queriam impingir e que lhes iriam engolir o seu actual poder local. Acrescia ainda o “choque de culturas” (também as há em pequena escala...) entre uma região e outra, o que impedia que se ajeitassem em programas comuns, ditados pelo governo.
No fundo, o que se aceitaria melhor era que esse gesto administrativo começasse de baixo para cima, por iniciativa dos próprios municípios, como até estava a acontecer, com os novos hospitais de Abrantes, Torres Novas e Tomar (cada cidade com o seu...) triplicando o pessoal médico que rareia!... Agora as valências têm de ser distribuídas, olhos aqui, coração acolá, reumatismo ali. Reconhecidas algumas destas faltas de sensatez, muitas vezes batida pelo orgulho bairrista, já foram digeridas pelo povo e não veio impedir que o movimento inter-municipal continuasse, com projectos interessantes, como os aterros sanitários, por exemplo.
Para se assegurar do poder e exercê-lo, a administração central lançou então o seu programa de delimitação regional, de modo mais atento à sensibilidade das gentes. Já existiam Áreas Metropolitanas de Lisboa e do Porto, facilitadas pela ausência de rivalidades com o poder central por parte dos concelhos limítrofes, às vezes poderes quase coincidentes e que estavam desinteressadas das “hortinhas” do Gonçalo Ribeiro Telles. Melhores comunicações (o Metro...), serviços integrados e mais eficientes colaboravam nesta vocação urbana da periferia.
Faltava ainda o resto da paisagem que não tinha lugar nestas áreas metropolitanas. Então, por sobre os municípios que se estavam movimentando, o governo lançou outro cartão de identidade: as Comunidades Urbanas Inter-municipais, tendo sido já inaugurada, com chinfrim e flautinhas, a primeira, a do Vale do Ave.
Repare-se no adjectivo “urbana”. A vocação do território passou da ruralidade para o tecido urbano ou urbanizável. Tudo é urbanizável e preferentemente, agradavelmente, urgentemente urbanizável... Nem todo o território terá densidade urbana suficiente (ainda não terá...) para entrar neste esquema. Não faz mal. As cidades e as vilas estender-se-ão pelos campos à volta, rapidamente, quer em torres (a última moda...) quer quadriculando o terreno em casinhas e quintais. O ideal de pequenas Singapuras.
E a lavora? Dirão. O campo já não interessa, nem o trigo, nem o milho, nem as macãs. Vêm da América do Norte, do Chile. As florestas ardem e as agro-indústrias substituem com vantagens, a lavoura do antigamente, embora quando tremem as pernas às vacas se matem milhares ou quando se constipa um frango se sacrifiquem milhões... E até o leite enlatado que faliu na Itália, por malfeitorias do patrão, irá prejudicar a mesma indústria em todo o lado, Portugal ou Brasil.
Mas é assim. Dir-me-ão que não é assim. Ainda há gente, gente nova, em Lisboa que vai aos fins-de-semana “à terra” para ajudar os avós na apanha da azeitona. E até o Senhor Marques da “Drogaria Pérola Azul” passou a loja para o restaurante contíguo. Foi para Fernão Ferro, semear batatas “num terreno que lá tenho” e deixou o balcão, onde, nos intervalos das visitas dos fregueses, ia escrevendo versos num caderno. Quando se ouve o reformado que, no Gavião, louva os pimentos que cultiva na sua horta e ao mesmo tempo se regozija com o neto que “sai” engenheiro nesse Verão, perguntamo-nos quem tratará da horta quando o dono já o não puder fazer. Não será o neto engenheiro, com certeza. Quem vai criar galinhas, mesmo e quando só meia-dúzia? É muito caro. Vale mais comprar os frangos e os ovos no super-mercado. Não se ouvirá mais, no calor da tarde, cantar o galo, por hortas e quintais. É pena.
Os restos da ruralidade que sobrarem (talvez sobrem...) são mais valias para o turismo rural, com saudades ou sem elas.
Post scriptum (vai por extenso para evitar confusões). Não sei o que haverá entre mim e o meu canalizador. Nunca lhe fiz mal e paguei-lhe sempre quando devia algum trabalho. Mas agora não sei. Deixo o meu nome e morada lá na loja. Passo por lá e rogo e peço. Sempre inútil. Há mais de três anos que o convoco para me salvar das pequenas avarias que, se não impedem a rotina diária, são muito martirizantes... Vão-se acumulando e vão-se aguentando com remendos temporários e frágeis. E muita paciência. Mas agora quero queixar-me. O que ele terá contra mim? Desconfio que já conhecedor dos problemas cá de casa (que lhe parecem insolúveis ou que não tem pachorra para os consertar) resolveu não mais aparecer... O que hei-de fazer? Quem me acode?