OS REIS DA TERRA
Por Teresa Maria Martins de Carvalho
Não eram reis. Nem três. No seu Evangelho, S. Lucas, subitamente vago e impreciso, como se tivesse medo de descrever melhor a situação, diz-nos que eram “uns magos vindos do Oriente”. Pacientes prescrutadores dos céus, estavam habituados a escavar na escuridão silenciosa e aterradora do espaço estelar, atentos a qualquer sinal que lhes desfizesse a angústia de uma vida, até ali, enigmática, algo que anunciasse, finalmente, aquele que estava para vir, o Rei dos judeus, o Messias, cuja estrela luminosa haveria de rasgar os céus fechados. Agora Ele tinha chegado. “Vimos no céu a sua estrela”, disseram.
Não eram reis. Foi a lógica popular que os sagrou, dando-lhes a realeza. Se eram magos eram sábios, eram donos de poder, portanto mereciam ser reis. E três, como se poderia deduzir do número das ofertas, descrito no texto evangélico, ouro, incenso e mirra. O ouro, próprio das galas da realeza, o incenso, sinal silencioso da presença da divindade, a mirra, o balsamo dos mortos, a lembrança da morte no destino humano.
Vinham na demanda desse Messias total, acabado de nascer, e que ligava a terra e o céu, a eternidade à morte, à esperança. Também não eram seres indefinidos, aceno de mão displicente, “eram magos”. Comoveu-se o povo com a adoração rendida, sem hesitações ou estranhezas, por esses três viajantes, o jovem, o homem feito, o ancião, todo o homem e toda a idade.
Então o povo, ajeitou o escrito apócrifo e nomeou-os com à-vontade alegre, como quem tem a certeza de que se a verdade se esconde, também se pode desvendar: Gaspar, Melchior, Baltazar, o branco, o asiático, o negro. Eram três e eram toda a terra.
Magos, diz-nos S. Lucas e provavelmente da Babilónia, a pátria dos ziggurater e dos astrónomos e assim não tão longe de Belém. Aqui, magos significa sabedores e não manipuladores da realidade ou criadores de enganos como os poderosos porventura podem ser. Eram sábios. Nunca a sabedoria, o poder e a humildade se tinham assim juntado para reconhecer o Outro, o Grande, que é omnisciente e omnipotente e que é também um Menino ao colo de sua Mãe.
O mundo em que vivemos, em que a força é a linguagem entendível, tem de engolir este espectáculo, todos os anos, pela Epifania, a ligação inesperada – e, a nossos olhos parvos, contra-natura, da sabedoria, do poder e da humildade.
A filósofa Hannah Arendt escreveu que nada há de mais perigoso do que um filósofo no poder, pois tende, in extremis, seduzindo as massas, a obrigá-las a aceitar os seus ditames como a verdade política, quando apenas são a sua opinião de ditador. Não merecerá talvez o filósofo o epíteto de sábio, tantas vezes enredado nos sistemas que engendra para domesticar o mundo. A sabedoria tem mais a ver com o discernimento, com a firmeza nas escolhas e a generosidade nos actos, mão leve e segura ao leme do navio, embora também se possa enganar nas tempestades sociais, diante do clamor dos injustiçados, sem perceber a liberdade comum que desperta a responsabilidade dada e aceite.
O Império americano não sabe acabar a guerra que desencadeou no Iraque, lugar da antiga Babilónia, berço dos sábios do Oriente, mas, por outro lado, consegue, com extrema habilidade e poder técnico, atirar para Marte um engenho de prospecção que tira fotografias como os turistas. Gesto de orgulho do poder ou gesto do sábio que procura sempre saber mais? Por enquanto, o maravilhoso artefacto enviou-nos, com definição apuradíssima e incrível, a imagem de uma paisagem desolada e morta. Marte não é, decididamente, a estrela do Messias, esse a quem o profeta Isaías chamou, com antecedência, “conselheiro admirável, Deus forte, Pai eterno, Príncipe da paz”. Nem a salvação está perto.
Todos os anos, em 6 de Janeiro, celebramos o Dia de Reis, quando o Messias recém-nascido chamou à sua presença os sábios e os reis (e sob esta palavra embriagante se designam todos aqueles que detêm poder) para que, junto dele, se lembrem que são homens falíveis por mais sabedores e homens ao serviço dos outros homens quando têm mais poder, correndo o risco, a todo o tempo, de se desumanizarem e já não serem capazes de não confundir a estrela do Messias que os alia e conforta, com Marte, o deus da guerra. E que é, afinal, um planeta.
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