Carta do Canadá
por Fernanda Leitão
Não vou repetir o que, numa assinalável e feliz unanimidade nacional, foi dito de Artur Agostinho, enquanto profissional da comunicação e ser humano, aquando do fim da sua passagem por este mundo. Todos os elogios foram mais do que merecidos por este lutador de 90 anos. Mas permito-me recordá-lo, no seu esplêndido senso de humor, durante os anos em que convivemos de perto no Bairro Alto, que era então território de jornais e fado e não lugar da moda para barulho fora de horas, isto é, muito antes de 1974.
Eu almoçava e jantava no restaurante Rina, na Travessa dos Fiéis de Deus, e comigo faziam o mesmo vários jornalistas, gente da rádio e da televisão, do cinema e do teatro, do fado e das artes plásticas, das profissões liberais e do corpo diplomático, empresários e despachantes marítimos, e também os que cabem na misteriosa designação de gente da noite, que é assim uma espécie de morcego boémio. Rina era a patroa do restaurante, uma mulher bondosa e simpática de São Pedro do Sul que tinha uma paciência angelical para aturar os caturras que todos nós eramos, muito especialmente os jornalistas sempre furiosos com a censura que faziam uns coronéis da confiança e privança do ditador Salazar. Eramos todos um bocado doidos e a Rina foi-nos porto de abrigo e teatro de pândegas memoráveis. Eu morava ali perto, mais para os lados do Príncipe Real, e também vivia por ali o pintor António Soares, um muito engraçado e descarado que, de copo erguido, declamava quando ali jantava a fadista Lucília do Carmo: “Casa comigo! Com o teu dinheiro e o meu talento, era um sucesso garantido”. Garantido era o riso de Lucília e o ralhete do cartoonist José de Lemos, do Diário Popular, no meio da galhofa da rapaziada.
Uma vez por semana jantava na Rina o Artur Agostinho e a sua equipa do jornal Record, e logo se lhes juntavam os fotógrafos desportivos Nuno Ferrari e António Capela. Também se pendurava um tipo do teatro, creio que encenador, a quem o Artur Agostinho ajudava e protegia, tendo ficado na memória de nós todos porque, após a abrilada, o traíu de forma baixa por conta dos fiéis de São Lenine. Mas como quem adivinha vai para a casinha, essa noite era então de tal reinação, com o Artur a dar o lamiré, que ninguém queria faltar. Um pagode completo.
Ora num belo dia de verão, atravessava eu o território que vai de Sâo Pedro de Alcântara até à Calça do Combro, rumo à Rina para almoçar, quando dou de caras com o Artur Agostinho. Cumprimentámo-nos e perguntei-lhe se ia para casa do António Soares. E diz-me ele com uma expressão carregadíssima:
- Vou. Nem sabes o que aconteceu, uma grande desgraça... Morreu o Zé de Lemos...
Fiquei siderada, aflita, as lágrimas a saltarem-me, e o Artur, sempre compungido, a dizer-me:
- Nem te digo mais nada... Estou mesmo em baixo...
E desandou. Pesadamente, tristemente, cheguei à Rina. E que vejo eu? O Zé de Lemos sentado à frente de uma bela travessa de bacalhau com grão. Eramos muito amigos. Cheguei-me a ele de manso, mas a ferver: Zé, não me faças perguntas, é coisa séria. Larga já isto e vem comigo.
Atarantado, mas confiando sempre em mim, seguiu-me. Na rua, disse-lhe: O safado do Artur Agostinho matou-te há bocadinho e ia-me matando do coração. O desgraçado está em casa do António Soares e nós agora vamos lá almoçar com eles, pagam eles que devem estar a rir-se.
E assim foi. Batemos e o António assomou à janela a ver quem era.
- Abre, António, que estou aqui mais o morto. Põe dois talheres na mesa e diz ao Artur que à sobremesa lhe arranco as orelhas.
Acabámos, como se calcula, numa bela almoçarada, cheia de riso e piadas. E o Artur Agostinho deliciado por eu ter caído na esparrela.
Foram tempos felizes. Por isso se compreenderá que, anos depois, o Artur e eu nos tenhamos abraçado comovidamente, sem palavras, em pleno Chiado, tinha ele acabado de vir do exílio no Brasil, para onde o ódio mascarado de política o tinha atirado. E se compreenderá que hoje diga adeus ao Artur como quem diz adeus a um pouco de mim.