segunda-feira, abril 30, 2007

As palavras que ficam

CARTA DO CANADÁ

por Fernanda Leitão

Desde a noite dos tempos o culto da palavra, o respeito pela palavra, fizeram chegar até nós a noção do peso e importância da palavra. Nenhuma filosofia, literatura, ciência, religião ou cultura poderiam ter chegado até nós sem o precioso contributo da palavra. De tal modo que, olhando para trás, compreendemos facilmente que se perderam civilizações, países, povos e guerras, por não se ter honrado a palavra dada ou por se terem derramado sobre eles palavras venenosas. Mas também, e com que alegria o verificamos, podemos usufruir da herança de palavras que nos foi legada através dos séculos.
Porque assim é, sempre os escritores, de todas as épocas e raças, de todos os credos e culturas, assumiram uma importância imensa no património de cada nação, e no final, da humanidade. Refiro-me, claro, aos que escreveram as palavras que ficam, as palavras que atravessam a memória dos tempos, ressoando sempre na alma humana como campaínhas de prata. Essas palavras e esses escritores que quem ama a palavra guarda como amigos queridos a vida inteira, e os transporta consigo, vá para onde vá, e os tem à cabeceira da cama para reler, ano após ano, na intimidade sem defesas que antecede o sono. Poderá lembrar alguns escritores que deixaram más palavras, apenas porque elas foram escritas com génio, mas não terá com eles a intimidade dos amigos que se levam para o quarto onde se repousa, onde se ama, onde se sofre ou mesmo se morre.
Se um escritor consegue gravar as suas palavras na memória das pessoas, esse é um escritor que fica na história da literatura do seu país, esse regato que vai engrossar o vasto mar da humanidade. Quando chegamos a uma idade avançada, e levamos de longada muitos anos de leituras, de teatro, de palestras, de conferências, sabemos bem que é assim. Quantos publicaram livros às catadupas, como coelhas parideiras, quantos gozaram dos favores de regimes políticos ou de críticos compráveis, quantos foram ensopados em prémios e em sucessivas edições, quantos o tempo cruel lançou ao esquecimento. Porque é o tempo quem avalia um escritor.
Causa um certo desgosto entediado observar a torrente de livros que se publica em Portugal, por exemplo, com direito a lançamentos mundanos e badalados, o que logo dá direito aos autores mais insípidos a serem catapultados a oráculos de quem se espera saberem tudo o que diz respeito à digestão fácil, desde a bondade do governo, a legitimidade (ou não) do planeamento familiar ou o fashion style do ano imposto pelos gurus da alta costura. Causa tédio, porque é garantido que, antes mesmo de terem netos, já ninguém saberá quem eles são. Em contrapartida, este tsunami editorial tem a virtude de obrigar os leitores a escolher entre a quantidade e a qualidade.
Entre o escritores de alta qualidade em Portugal, Lídia Jorge é uma escritora que ficará. Percebi isso quando, em 1980, li o seu primeiro livro, O Dia dos Prodígios. Foi um ano atormentado e estranho, por causa daquele avião em que perderam a vida Francisco Sá Carneiro, Adelino Amaro da Costa e seus acompanhantes, porque na nossa terra estas tragédias políticas não são familiares nem frequentes. Aquele livro, no seu enredado encanto, trazia a força da palavra. Era até premonitório. E que bem escrito! Pensei para comigo que tinha nascido uma grande escritora. Não me enganei. Aí está a sua obra para o demonstrar eloquentemente.
Lídia Jorge acaba de publicar um livro que será um marco luminoso para todos quantos acreditam que a palavra pode redimir, todos quantos se recusam a aceitar os aleijões sociais como norma: Combateremos a Sombra. Numa escrita despojada e limpída, forte e cheia de cor, num estilo imbatível, Lídia Jorge dá a medida do seu enorme talento e do seu vertical civismo ao contar uma história que nos agarra, entre luzes e sombras, em que se resume este nosso tempo de corrupção, crime organizado, morte encomendada, e também do dever da indignação da paz imensa do serviço à comunidade.
O livro lê-se com repugnância de parar. Vem no momento certo. A corrupção estendeu-se, como uma sombra maldita e contagiosa, por todo o mundo. Tudo se compra e se vende. Não se respeita a vida de quem tenta travar os interesses dessas multinacionais do crime e da ganância. Há povos inteiros envenenados por este estado dentro dos estados. O fenómeno também tem farto lugar em Portugal , porque grande número de pessoas, moralmente desarmadas, esquecidos os princípios do Ser na corrida ao Ter, foram de concessão em concessão, de silêncio em silêncio, de jeitinho em jeitinho, e o resultado foi este terreno fecundo onde a corrupção medrou e estendeu raízes. Se dissermos às pessoas que meter cunhas é corrupção, que dissipar os dinheiros públicos em promoções pessoais é corrupção, que ocupar de favor lugares para os quais não se está habilitado é corrupção, que copiar páginas inteiras de livros e revistas e publicá-las, apondo o seu próprio nome em baixo, é corrupção, que mentir para abocanhar subsídios, reformas indevidas e mordomias várias, é corrupção, enfim se dissermos tudo isto e muito mais às pessoas, elas ficarão chocadas e nem acreditarão. No entanto, estão a contribuir, de facto, para o avanço desta sombra maligna que está a enegrecer o mundo. Portugal incluído. O maior inimigo da Liberdade, o inimigo fatal da Democracia é a corrupção, porque ela leva à cedência moral, ao abuso e por fim ao crime, quase sempre abrindo a porta larga à Ditadura.
A História da Literatura Portuguesa registará Lídia Jorge em lugar cimeiro. Os portugueses que amam a Liberdade, os que querem a Pátria limpa e servida com verdade, ficam a dever a esta escritora mais do que um belo livro: devem-lhe a exigência consigo próprios, a tarefa nobre de exercerem o direito à indignação, o brio de perderem o medo e falarem alto e claro. Este livro, a exemplo de alguns que foram publicados durante a Ditadura que os portugueses sofreram durante 48 anos justamente por não terem, em massa, exercido o direito à indigação, pode representar uma viragem entre os mais jovens. O futuro a este livro.

sábado, abril 28, 2007

Os bufos virtuosos

por João Miranda


O Ministério da Justiça lançou um guia para prevenir a corrupção que incentiva os funcionários públicos a denunciar casos de corrupção às "autoridades". Esta é mais uma das muitas ideias voluntaristas de combate à corrupção propostas por entidades públicas nos últimos meses. Recorde-se que, no seu discurso de 5 de Outubro de 2006, Cavaco Silva apelou a uma batalha pela "moralização da vida pública" e à "instauração de uma cultura de dever e responsabilidade". Quando tomou posse, em Setembro de 2006, o novo procurador-geral da República apelou à "maior participação dos cidadãos" no combate à corrupção. Em Março de 2007, Jaime Gama apelou a uma "aliança de convicções" entre deputados, magistrados e governantes. Nada de novo na iniciativa do Ministério da Justiça, excepto o aspecto pidesco.

Estes apelos vindos de políticos com responsabilidades públicas há dezenas de anos não deixam de ser irónicos. A corrupção é essencialmente o resultado das debilidades institucionais dos organismos públicos concebidos por esses políticos. A corrupção deve-se a um conflito de interesses que afecta qualquer servidor público. O servidor público tem, como qualquer ser humano, interesses privados. Apesar disso, tem a penosa obrigação de colocar o interesse público à frente dos seus interesses privados. No entanto, os arranjos institucionais prevalecentes no sector público colocam grande poder nas mãos dos funcionários, mas não lhes dão incentivos para o usar correctamente. A burocracia e o poder discricionário do Estado abre-lhes mesmo muitas oportunidades para tirarem proveito pessoal da sua posição.

Espera-se que os servidores públicos sejam especialmente virtuosos, mas eles são apenas humanos. É um tanto ingénuo pensar que os servidores públicos deixarão subitamente de se aproveitar dos bens públicos porque decidem aderir a uma "cultura de dever e responsabilidade" e participar numa "batalha pela moralização da vida pública". Ou pensar que sectores potencialmente minados pela corrupção podem formar uma "aliança de convicções" para a combater. Ou pressupor que existem entidades designadas por "autoridades" que são imunes à corrupção e que por isso estão em condições de fiscalizar as restantes instituições.

A filosofia oficial de combate à corrupção parece partir do princípio que os funcionários públicos são uma espécie de bufos virtuosos, gente incorruptível, incapaz de fazer intriga ou denúncias caluniosas, mas perfeitamente capaz de trair os colegas. O apelo à denúncia é, na melhor das hipóteses, um sinal de impotência e degradação moral das "autoridades" que supostamente deviam combater a corrupção. E na pior, um sinal de que essas "autoridades" estão tão minadas pela corrupção que não conseguem mais do que anunciar medidas irresponsáveis.


Investigador em biotecnologia - jmirandadn@gmail.com

In Diário de Notícias

sexta-feira, abril 27, 2007

Aquilino Ribeiro - Um regicida no Panteão Nacional

Segundo resolução da Assembleia da República, aprovada em 20 de Março de 2007, o corpo de Aquilino Ribeiro vai ser colocado no “Panteão Nacional”

Mendo Castro Henriques

COLOCAR UM REGICIDA ao lado de Amália Rodrigues, João de Deus, Almeida Garrett, Guerra Junqueiro, e dos Presidentes da República Manuel de Arriaga, Teófilo Braga, Sidónio Pais e Óscar Carmona é um grande erro porque o Panteão Nacional, como escreveu MR, “não se fez para os génios da literatura mas para os que conjugaram a genialidade com o bem-comum, a res-publica”. Para dizer a verdade, é uma manobra preventiva perante o centenário do regicídio que se avizinha em 2008 e que merece a reprovação de 78,2 % dos Portugueses.
Aquilino Ribeiro poderá ter sido um grande escritor; isso é uma questão de gosto e exige um debate entre especialistas saber se ele foi um génio literário ou um escritor talentoso. Mas Aquilino foi decerto um activista na conspiração para assassinar um Chefe de Estado de Portugal e o seu filho, pelo que não cumpre a segunda condição exigida aos “moradores do Panteão”. Todas as fontes comprovam que foi um anarquista envolvido nas conspirações de 1907 e 1908 para a mudança de regime; é vox populi, e sobretudo ele próprio o admite - ao mesmo tempo que omite outros grandes pormenores - nas suas memórias Um Escritor confessa-se.
Um Escritor Confessa-se - Memórias 1, é uma obra estranha e muito desigual nas suas 406 páginas. Aquilino morreu em Maio de 1963. Composto e impresso com data de 1972, o livro é brochado em 1973 mas só é posto à venda após Abril de 1974. Em capítulos sucessivos vemos o escritor talentoso que nunca deixou de ser um camponês astuto, a enredar-se em meias verdades sobre as suas andanças com os regicidas. Como diz José Gomes Ferreira, em prefácio primorosamente redigido mas ideologicamente cúmplice, Aquilino sabe “mentir a verdade”. “Mentir a verdade!” é uma literatura de justificação. E que vem tarde. E que de nada se desculpa. E com uma frieza brutal para com os seus antigos correligionários regicidas como Buíça e Costa e mesmo ódio e malícia para outros como José Nunes e Virgílio de Sá, personagens menores já mortos e esfumados para todos, mais de cinquenta anos após o 1 de Fevereiro mas que ainda eram esqueletos no sótão da memória de Aquilino.
No essencial, Aquilino era o rapaz das serras de Sernancelhe e com o 2º ano de Teologia, de bom latim e educado por jesuítas radicais, mas com escassa experiência que abandona o Seminário de Beja em 1903 - e fixa-se em Lisboa, para conhecer mundo. Após uma curta estadia volta a Soutosa em 1904 mas regressa em Lisboa em 1906, para conviver com a mole humana dos pequenos burgueses revolucionários da capital que almoçam “meia desfeita” nas tascas, conversam até altas horas nos cafés, e conspiram, com variados graus de responsabilidade, sobre o fim do “estado de coisas”. Entre esta gente talvez de ideais generosos mas de actuação brutal - o bas-fonds da conspiração e de modo algum os “meios literários e revolucionários” de que falam as biografias oficiosas de Aquilino - está Alfredo Luís da Costa e Manuel Buíça; do primeiro torna-se amigo íntimo e do segundo é “compadre”, como este confessa nas suas derradeiras disposições da madrugada do 1 de Fevereiro.
Entre os múltiplos biscates desta fase da sua vida, Aquilino é uma pena mercenária. Enfeudado à acção anarquista, dá-se a redigir, com nomes falsos, traduções de publicações intervencionistas e folhetins escandalosos. Ao que ele próprio dá a perceber em Um Escritor Confessa-se, colaborou com um publicista (que foi depois Ministro da República) num romance intitulado A Filha do Jardineiro, que, no género de O Marquês da Bacalhoa, difamava o Rei D. Carlos. Essa obra, de que saíram apenas três fascículos, editados e financiados por Alfredo Costa - o futuro regicida -, apareceu sob o pseudónimo de Miriel Mirra. Ao contrário do que dizem as biografias oficiosas, o primeiro livro de Aquilino não é Jardim das Tormentas, de 1913 mas sim A Filha do Jardineiro, de 1907. É também possível que Aquilino tenha ajudado a redigir O Marquês da Bacalhoa porque as obras seguintes de António de Albuquerque não têm o polimento literário desse livro escandaloso.
Atrás dos folhetins subversivos surgem outros contactos, sendo iniciado na Carbonária e convidado para a Loja Montanha, após falar com o bibliotecário Luz de Almeida. Por detrás dos contactos, adivinham-se muitos conciliábulos e compromissos e, uma vez mais, a eterna “opinionite” da pequena burguesia, o complexo denunciado por Flaubert em Bouvard et Pécuchet. Aquilino, como escreveu Gomes Ferreira, sabe “mentir a verdade”.
A sua filiação nos grupos “intervencionistas” – assim se chamavam os anarquistas que colaboravam com os republicanos para o derrube do regime - leva-o a albergar em casa caixotes de bombas explosivas de fabrico artesanal a serem preparadas pelo dr. Gonçalves Lopes e pelo prof. Rebordão para uma conjura contra o regime. Evocando ainda depoimentos, vimos eles surgirem nas pró¬prias palavras do intervencionista Aquilino Ribeiro, ao relatar o caso do Carrião: «Tinha (Aquilino) até cooperado na organização do ataque aos quartéis e às forças da [Polícia] Municipal, indo com Alfredo Costa e outros alugar quartos em vários pontos estratégicos, de onde projectávamos dinamitar essa legião fiel ao regime monarchico.» (.) Manipulador de bombas para a conspiração anarquista-republicana em marcha desde o Outono de 1907, e que terá os pontos altos na intentona do 28 de Janeiro e no regicídio de 1 de Fevereiro, Aquilino é preso em flagrante delito no seu quarto da Rua do Carrião em 28 de Novembro de 1907, após a explosão desajeitada dos explosivos provocada por um dos cúmplices. A explosão de engenhos atingiu mortalmente um deles, que esperavam uma visita de inspecção ao fabrico de explosivos, a ser feita por António José de Almeida, encarregado da ligação entre o PRP e os grupos anarquistas.
Aquilino escapa ileso e vai preso para a Esquadra do Caminho Novo. O inevitável Joshua Benoliel, esse “espião da história”, aparece para lhe tirar a fotografia em flagrante, mas Aquilino repele-o com um abanão. Os seus correligionários elaboram planos para lhe facilitar a fuga. Segundo o chefe intervencionista José do Vale, descrevendo a fuga de Aquilino, Alfredo Costa estava disposto a dinamitar com outros as forças da Munici¬pal, disposto ainda com outros, e em convívio sempre com os intervencionistas, a operar pela força o acto de evasão dos envolvido nas explosões de Novembro. Afinal, após sessenta dias de detenção, Aquilino diz que conseguiu desmontar a fechadura da porta da prisão com engenho e paciência, e evadir-se em 12 de Janeiro de 1908. A segurança prisional nunca foi o forte da monarquia liberal.
Após evadir-se da prisão é acolhido em casa de umas senhoras amigas do jornalista Meira e Sousa, director de O Dia e cúmplice do regicídio. Aí se mantém a par da evolução da conspiração do regicídio. É voz corrente que nela participou e segundo numerosas fontes conversou com Alfredo Costa na manhã do regicídio. Segundo um agente duplo ao serviço dos juízes Veiga e Alves Ferreira, Aquilino Ribeiro foi visto no Largo do Corpo Santo, com um revólver, uns minutos antes do atentado, como fazendo parte de um grupo que se preparava para o assalto à carruagem com D. Carlos que por ali passaria a caminho das Necessidades, caso falhasse o atentado no Terreiro do Paço. Ao ser reconhecido por um polícia, fugiu. Segundo outras fontes, esteve no Terreiro do Paço com um revólver. Divagando por Lisboa após o regicídio foge em data incerta para Paris onde é acolhido pelos meios radicais. Sucedem-se as informações sobre o seu paradeiro; da Polícia Francesa e dos agentes portugueses em Paris; do ministro Sousa Rosa; do escrivão Abílio Magro. Mais do que uma vez o juiz do Juízo de Instrução Criminal solicita a D. Manuel II e ao Presidente do Conselho que se desloque um enviado a Paris para apurar de Aquilino Ribeiro quem são os regicidas. É a “brandura dos nosso costumes” a funcionar. Uma dessas diligências é efectuada a 13 Maio 1910, como consta da publicação oficial de 1915, Documentos Encontrados nos Paços Reais após o 5 de Outubro. O conhecimento internacional do envolvimento do Aquilino na chacina do Terreiro do Paço foi imediato. Raul Brandão, futuro seareiro ao lado de Aquilino, escreveu em Janeiro de 1909 (Memórias, I): «Um dos regicidas está em França, mas Clemenceau (primeiro-ministro francês,) recusa-se a extraditá-lo». De facto todos os interessados no caso sabiam do envolvimento de Aquilino no regicídio e foi essa “proeza” que o tornou um protegido das forças radicais europeias no poder, ou em vias de o adquirir. Nos seus exílios, Aquilino não experimentou dificuldades.
É em Paris que conhece Grete Tiedemann com quem vive em 1910 antes de voltar a Lisboa. Regressado a Paris, frequenta a Sorbonne e vai residir alguns meses na Alemanha durante 1912. Em 1913 casa com Grete Tiedemann e regressa a Paris, onde nasce o seu primeiro filho em 1914, de seu nome Aníbal Aquilino Fritz Tiedemann Ribeiro. Segundo algumas fontes, Aquilino é um exaltado germanófilo nesta fase da sua vida. Declarada a guerra, Aquilino regressa a Portugal, sem ter terminado a licenciatura e é colocado como professor no Liceu Camões em 1915. Em 1919 entra para a Biblioteca Nacional, a convite de Raul Proença onde convive com personalidades como Jaime Cortesão e integra em 1921 a direcção da revista “Seara Nova”. É na Biblioteca Nacional que Aquilino Ribeiro é procurado por pessoas de suas relações para lhe mostrar uma “Acta do Regicídio” Seria para Aquilino atestar a veracidade dos factos constantes no documento, acrescentar um pormenor? Tudo atesta a sua cumplicidade com os criminosos…
E é então que escreverá: «Porque é desnecessário demonstrá-lo, a República implantou-se no Terreiro do Paço naquela tarde trágica de Fevereiro; outros vêem sacudir as mãos na varanda de Pilatos.» É nas páginas da revista que traça os perfis românticos e laudatórios de Costa e Buíça (Seara Nova, I, pág. 103 e seg e 163 e seg.). Segundo a narrativa de justificação, o regicídio pertence à categoria de acto inopinado, decidido no local, por Buíça e Costa. Contudo, Aquilino admite a existência de um grupo de 5 regicidas no Terreiro do Paço, formado por Costa, Buíça, Ribeiro, Nunes e Adelino.
Sobre Alfredo Luís da Costa diz o seguinte:
“Foi em 1906 que R* P* apresentou no Gelo Alfredo Luiz da Costa, esse rapaz de vinte e tal anos, alto, desengonçado de corpo, duma fisionomia séria, quase triste, a que ninguém ligou importância. Grandes olhos castanhos, lentos a mover-se, com uma fixidez por vezes de desvario, um dedo de barba loura no queixo, o nariz levemente amolgado sobre a esquerda. Provavelmente uma tuberculose descurada, que traiçoeiramente seguisse caminho, achatara-lhe o tórax aguçando-lhe os ombros e imprimindo-lhe já às costas uma quebratura perceptível.”
É quase inacreditável como omite que Alfredo Luís da Costa, a grande alma da sua fuga da esquadra do Caminho Novo, foi o regicida, que recrutou os camaradas para o crime.
Sobre Buíça escreve:
“Buiça era frequentador do Café Gelo, esse café muito arrumado a meio do Rossio tumultuário, que, não obstante o berrante das fardas, conserva um ar todo plácido de botequim provincial. De corpo, era um homem de estatura meâ, rosto fino, tez branca, que mais realçava a barba preta com tons de fogo, na qual as suas mãos tinham o vício de passear-se, de embrenhar-se, quando a cólera o tomava ou ouvia alguém do seu agrado. A testa era longa, com as arcadas supraciliares marcadas sem de mais, as linhas fisionómicas duma delicadeza que, fora das mulheres, desagrada. A aparência, toda ela de franzino, mascarava-lhe inteiramente o génio assomadiço e a coragem que não era lenta nem jamais foi receosa a medir-se.”
O problema desta peça é que omite o passado criminoso do ex-sargento de Cavalaria, saído do Exército após expiar crimes de agressão a subalternos pelos quais esteve preso, e mais do que uma vez condenado no civil por crime de ofensas corporais, variando a sua vida entre a demência criminosa e a vontade de um revoltado. Aquilino preferiu ignorar esse fatal destino do seu antigo compadre e correligionário, filho de Maria Barroso e do abade de Vinhais, Abílio da Silva Buíça.
Ainda mais revelador é o que Aquilino admite e omite sobre José Nunes, contra o qual esgrime argumentos sem fim, considerando-o um mitómano. Muito sucintamente, José Nunes era um intervencionista do grupo “Os Mineiros”. Esteve no Terreiro do Paço e disparou sobre o Príncipe D. Luís Filipe, sendo nele que a rainha D. Amélia bateu com um ramo de flores e ele o retratado pela rainha em esboço. Sobre o regicídio deixou importantes revelações após 1915 que esclarecem o atentado em livros como A Bomba Explosiva e Para quê? Outros escritos ficaram inéditas, já que a sua publicação imediata traria apaixonados debates, envolvendo algumas personagens ainda vivas (nomeadamente Aquilino) e a maioria de vultos então recentemente falecidos. Fugido para S. Tomé e Moçâmedes e depois regressado a Lisboa, a polícia nunca o encontrou. Antes de morrer, segundo Casimiro da Silva, «no quarto de dormir, tinha, sobre a cómoda, voltado para o leito um grande retrato de D. Luís Filipe» - o Príncipe a quem ele tirara a vida. «Todos os dias, ao despertar, para ele olhava, repetindo a pergunta - título do seu livro: E Para Quê? José Nunes era um arrependido e não foi o único. Aquilino Ribeiro nunca se arrependeu. Sob a paródia religiosa do título do seu livro Um Escritor Confessa-se não ressuma qualquer sentimento de penitência; é apenas uma inquirição divertida ao passado confortavelmente longínquo do anarquista ex-seminarista e do agora relativamente celebrado escritor. Como quem diz, já um pouco senil e babado de ternura por si mesmo: “As coisas que eu era capaz de fazer!”
Em 1927 após a revolta de 7 de Fevereiro, Aquilino exila-se em Paris. No fim do ano regressa a Portugal, clandestinamente e morre a primeira mulher. Em 1929 Aquilino Ribeiro casa com D. Jerónima Dantas Machado, filha de Bernardino Machado e em 1930 nasce o segundo filho, Aquilino Ribeiro Machado. Em 1931 vai viver para a Galiza mas a partir de 1932, já com 47 anos, permanece no país e recebe reconhecimento pelas suas obras literárias. Em 1960 é proposto para o Prémio Nobel da Literatura. Tendo a família de Sofia Mello Breyner, próxima do Paço, documentação sobre o regicídio, a própria Sofia disse em comentário a um livro escrito por JMR que “o Aquilino esteve no Terreiro do Paço com um revólver e tal facto fora do conhecimento internacional mas a família Breyner decidiu não incluir essa informação no livro de memórias do avô… E depois rematou: - «Porque é que acha que nunca lhe deram o Nobel? Eles sabiam que ele participou no Regicídio e a sociedade não dá prémios Nobel a assassinos»
Aquilino morre em 27 de Maio de 1963.

segunda-feira, abril 16, 2007

Juventude Monárquica na "Expojovem"




Este retrato de autoria do Mestre António Homem Cardoso servirá de tela de fundo para o "stand" da Juventude Monárquica na " Expojovem ", de 18 a 21 de Abril.

Os jovens são alguns dos membros da Juventude Monárquica. Em frente à Torre de Belém, lembram o universalismo lusíada, fruto das nossas descobertas.

A presença da Família Real simboliza a ligação do nosso passado com o futuro.

sexta-feira, abril 13, 2007

Crise de regime?

O actual regime criou uma oligarquia que se vai alternando no controlo do Estado, distribuindo entre si poderes e privilégios.

Por João Cardoso Rosas

Primeiro, foi a vitória de Salazar no famigerado concurso. Depois, foi a notícia da homenagem a Marcelo Caetano, organizada no Brasil por académicos portugueses. A seguir veio o cartaz, o ataque aos imigrantes, a visibilidade da extrema direita. Estaremos mesmo diante de um renascimento do saudosismo anti-democrático? Estaremos a caminhar para uma crise de regime?

Se por crise de regime se entende a possibilidade real do fim da segunda república e um qualquer regresso ao passado autoritário, julgo que não. Se os apologistas de Salazar e Caetano ou os torpes aspirantes a um ‘Front National’ à portuguesa fossem a votos ninguém daria por eles. Neste aspecto, têm razão aqueles que notaram terem sido as reacções excessivas de alguns comentadores a conferir-lhes uma representatividade que eles não têm na realidade.

No entanto, se por crise de regime se entende uma insatisfação difusa com a nossa democracia, julgo que estamos a caminhar para aí. Não estou a referir-me à crise da participação política. Essa é uma outra história. Ela é hoje em dia comum a todas as democracias avançadas e existe mesmo nos países com fortes tradições democráticas. Refiro-me antes à insatisfação difusa em relação a aspectos da sociedade portuguesa que a generalidade das pessoas associa, bem ou mal, ao regime democrático.

Em primeiro lugar, figura a ideia de que a democracia não tem conseguido garantir a segurança e tranquilidade públicas. O uso demagógico do tema da imigração está relacionado com este. Mas um facto é real: Lisboa e Porto tornaram-se lugares desagradáveis e desassossegados. Deixou de ser possível sair de casa à noite ou até mesmo estar tranquilo em casa. Daí o sucesso dos centros comerciais – eles são um lugar de refúgio. Infelizmente, os políticos democráticos ainda não interiorizaram que o discurso forte da segurança e tranquilidade públicas não é contrário ao da liberdade. Isso deixa-me estupefacto. Se não conseguem aprender com a experiência interna, podiam pelo menos aprender com o que se passa noutros países. Se eles próprios não fizerem esse discurso a sério, outros bem piores o farão.

Em segundo lugar, está a sensação de que a nossa democracia não passa de uma plutocracia. Alguns governos – como o actual – dão sinais de querer enfrentar alguns interesses instalados (os sindicatos, as profissões, os poderes regionais...), mas nunca enfrentam os interesses dos mais ricos. Apesar da inegável melhoria das condições de vida das classes trabalhadoras, Portugal continua a ser, mais de trinta anos depois do 25 de Abril, o país mais desigual da Europa. Esse desequilíbrio é um problema, mas não se resolve com mais subsídios. A classe política devia reflectir sobre a razão pela qual o crescimento da função assistencialista do Estado no decurso dos últimos trinta anos não conseguiu diminuir o fosso entre ricos e pobres. Pelos vistos, um Estado maior não faz uma sociedade mais justa.

Em terceiro lugar, existe a percepção de que o funcionamento da nossa democracia é de tipo oligárquico. O actual regime criou uma oligarquia que se vai alternando no controlo do Estado, distribuindo entre si poderes e privilégios: nos cargo políticos, na administração pública, nas empresas públicas, etc. Existe a sensação de que estas pessoas, muitas vezes sem terem feito prova de mérito, vão circulando nos corredores do poder e das empresas a ele ligadas, acumulando cargos, indemnizações e reformas. A classe política democrática tinha a obrigação de fazer melhor na definição de um ‘spoils system’ (os cargos que devem depender das mudanças políticas) e na abertura de todos as outras funções e posições a sistemas de concurso público ou aos mecanismos de mercado.

É claro que todas estas acusações também poderiam ser voltadas contra o regime autoritário que precedeu a democracia. Ele era oligárquico, plutocrático e não garantia a segurança (pelo menos dos que se lhe opunham). Mas o certo é que muitos dirigem hoje estas acusações contra a democracia e, na medida em que é este o nosso presente, é legítimo que o façam. Por isso cabe aos políticos democráticos fazer melhor. Não basta encenar a sua indignação de cada vez que aparecem sinais de saudosismo anti-democrático.
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João Cardoso Rosas, Professor de Teoria Política na Universidade do Minho

(In Diário Económico)

quinta-feira, abril 12, 2007

Os nossos ricos são uma fraude

por José Eduardo Agualusa

(no semanário angolano "A Capital")

Espero sinceramente que esta crónica pareça completamente ridícula daqui a meia dúzia de anos. Trata-se de uma crónica que tem por tema a inauguração – com a presença do Presidente da República! – de um centro comercial de média dimensão nos arredores da capital. Num país minimamente desenvolvido, com um saudável sistema de economia de mercado, a inauguração de um novo centro comercial representa, quando muito, uma notícia relevante para o bairro onde o mesmo se situa. O facto de um tal acontecimento nos entusiasmar tanto (a mim entusiasma) diz bem do lamentável atraso em que nos encontramos – é o espanto do camponês ao ver pela primeira vez uma televisão (ou, ao invés, do menino da cidade diante de uma galinha). Daqui a meia dúzia de anos espero, pois, que a notícia da inauguração de um centro comercial já não alvoroce ninguém. Olhando para trás haveremos todos de sorrir, com certa auto-ironia, ao lembrarmo-nos do tempo em que não havia em nenhuma cidade angolana um bom cinema, com filmes actuais, ou sequer uma boa livraria. Nessa altura o Presidente da República, quem quer que seja, há-de estar a inaugurar grandes bibliotecas públicas, bons hospitais, auto-estradas, escolas em bairros carentes, e então nós teremos orgulho nesse Presidente da República.

Os nossos ricos – por falar em centros comerciais – são igualmente reveladores do terrível atraso em que três décadas de guerra, corrupção e incompetência deixaram o país. Não temos ainda ricos como os ricos dos países ricos. Os ricos dos países ricos são charmosos e elegantes. Praticam musculação em casa, uma hora por dia, com a ajuda de um personal trainer, e ainda lhes sobra tempo para o yoga, a escalada, a esgrima, ou a equitação. Os nossos ricos, esses, luzem de gordura. Acham que assistir ao futebol, sentados num sofá, é a forma mais confortável de fazer desporto. Os ricos dos países ricos morrem de velhice perto dos cem anos. Os nossos sofrem crises de malária e morrem vítimas de doenças ligadas a maus hábitos alimentares, como os pobres dos países ricos, antes dos setenta. Os verdadeiros ricos têm no escritório uma tela de Miró ou de Picasso. Os nossos têm uma fotografia do Presidente da República a inaugurar centros comerciais. Os verdadeiros ricos coleccionam a grande arte do nosso tempo – Paula Rego, David Hockney, Portinari, Basquiat, etc.. Os nossos ricos coleccionam "arte africana", o que quer que isso seja, comprada muitas vezes nos mercados populares. Os verdadeiros ricos assistem em Londres ou em Nova Iorque a concertos dirigidos por grandes maestros. Os nossos assistem em Luanda a desfiles de misses. Os ricos legítimos almoçam num dia com Mário Vargas Llosa, em Paris, e no outro com Barack Obama, em Washington. Os nossos almoçam com o Pierre Falcone em algum recanto escondido. Os verdadeiros ricos lêem o Times Literary Suplement e a New Yorker. Os nossos lêem a "Caras", na versão nacional, e sorriem felizes de cada vez que encontram o próprio rosto (encontram sempre, é inevitável) iluminado por uma aura de gordura.

Resumindo: os nossos ricos são uma fraude. São tão duvidosos, enquanto ricos, tão refutáveis e mal-amanhados, quanto eram enquanto comunistas. Precisamos, urgentemente, de novos novos ricos. Ou então resignamo-nos a que estes envelheçam. Porém, como disse antes, receio que a maior parte morra antes de envelhecer decentemente.